sábado, março 17, 2018

O político Feliciano e o ensino superior em Portugal

 Sobre o caso do político Feliciano já li o bastante para perceber que há tantos felicianos por aí que é preciso saber se um político pode chamar-se Feliciano Barreiras Duarte, como é o caso.
Não julgo que este Feliciano seja o pior e por isso não possa ser o que lhe destinaram politicamente. Afinal tivemos um primeiro-ministro, com uma licenciatura fantástica, inventada a um Domingo e que o Ministério Público do tribunal Administrativo de Lisboa entendeu que era para manter por não se detectarem irregularidades académicas de vulto. Não foi por isso que esse aldrabão saiu de cena política. A outro de quilate académico menos mau que aquele, tiraram-lhe o epíteto doutoral no tempo que demora uma acção administrativa de anulação de um acto, no caso um diploma. O critério díspar é o retrato da isenção de quem o aplicou. Foi o Relvas, cujo pecado consistiu em conseguir, sabe-se lá como!,  que lhe fizessem equivalências académicas que depois se tornaram inadmissíveis para os bem-pensantes da hipocrisia universitária, acicatados pela opinião de redes sociais e política rasteira de oposição.

Depois de alguns dias reflexivos encontrei o discurso certo para lidar com o assunto e que foi agora publicado por outros, com a dimensão adequada e o comentário ajustado:

Primeiro no  Observador, por  Alberto Gonçalves:

O problema maior é a crença generalizada de que a universidade – a exacta universidade que aceita sumidades como o dr. Vale de Almeida – é um abrigo de inquestionável erudição. E de “prestígio”.
Tenho tantas saudades da universidade quanto da varicela, com a agravante de que, ao contrário do que sucedeu com a segunda, ainda não esqueci a primeira. Lembro-me dos professores, na maioria semi-alfabetizados. Lembro-me das aulas, repetições de cartilhas caducas e puras alucinações. Lembro-me das “referências teóricas”, quase sempre maluquitos franceses, argentinos e até portugueses. Lembro-me das ocasiões em que me perguntei o que fazia ali. E lembro-me de desistir de fazer: a partir de certa altura, decidi dedicar-me a conversas com um punhado de colegas, nas horas livres e nas restantes.
Passei os últimos três anos do curso no café vizinho, a trocar impressões, livros e cassetes. Ao longe, no interior de um barracão lindíssimo, decorriam prelecções fascinantes em redor de trabalhos com as palavras “subsídios” ou “contributos” no subtítulo. À aproximação dos exames, eu folheava anotações alheias e fotocópias de maoistas parisienses, despejava o entulho nos testes e, menos devido à inteligência própria do que à boçalidade daquilo, obtinha uma nota distinta. Um magnífico dia, o suplício acabou. O vetusto barracão emitiu um diploma em pergaminho a declarar-me licenciado. Por mim, nunca levantei o diploma e jurei, embora não fosse preciso, que a experiência académica terminaria ali.
É verdade que a minha “formação” (digamos) aconteceu em sociologia, matéria propensa ao burlesco. Nos anos seguintes, porém, aprendi (a aprendizagem é um processo) que, por incrível que pareça (e parece), há pior. Não desejo a ninguém o contacto directo com a realidade: um passeio pelos sites dos “estabelecimentos” disponíveis, com consulta dos cursos disponíveis, dos programas disponíveis e dos docentes disponíveis, é suficiente para esclarecer os incautos. Se os incautos insistirem, eles que se inscrevam em certas coisas que há por aí.
Não valeria a pena dar exemplos. Mas dou um. Nas últimas semanas, causou escândalo a notícia de que Pedro Passos Coelho iria providenciar lições num tal Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP). As patrulhas ideológicas, sob a forma dos professores que subscreveram um protesto alusivo, correram logo a chamar a atenção para a falta de credenciações do ex-primeiro-ministro. Conseguiram chamar a atenção para a falta de juízo de quem confunde educação com o evangelismo das “causas”. Na tentativa de denunciar uma hipotética fraude, recordaram a fraude real a que, com as excepções da praxe (sem trocadilho), se chama “ensino superior”.
Dos indignados, o mais “público” é talvez o deputado, ou antigo deputado, socialista Miguel Vale de Almeida. Dos estudos que publicou, destaco “Ser mas não ser, eis a questão. O problema persistente do essencialismo estratégico”; “A teoria queer e a contestação da categoria ‘género’” e “O esperma sagrado: algumas ambiguidades da homoparentalidade em contextos euro-americanos contemporâneos”. Cito um resumo do último, escarrapachado na página “Ciência-IUL – A excelência da investigação e ciência no ISCTE”: “Igualmete (sic), quanto menos provisâo (sic) legal exista, menos parece haver una cultura de como fazer e proceder em situaçoes (sic) de disputa de paternidade entre gays e lésbicas, assistindo-se ao recurso ou à normativade (sic) legal, ou à normatividade moral (e necessariamente heteronormativa (sic), androcêntrica e patrilinear) a ela associada.” Concedo uma pausa para o aplauso da forma e do conteúdo. E depois um minuto de silêncio para evocarmos o abaixo-assinado e reflectirmos na “dignidade dos profissionais da ciência e do ensino”.
O problema não é o dr. Vale de Almeida achar que Pedro Passos Coelho não serve para leccionar na universidade. O problema é o dr. Vale de Almeida achar que o dr. Vale de Almeida serve. Outro problema é a universidade concordar. E o problema maior é a crença generalizada de que a universidade – a exacta universidade que aceita sumidades como o dr. Vale de Almeida – é um abrigo de inquestionável erudição. E de “prestígio”. Pela parte que me toca, só não escondo que frequentei semelhante antro na medida em que seria ridículo, e provavelmente escusado. Mesmo assim, inúmeros compatriotas ostentam as habilitações com orgulho. E uma razoável quantidade finge habilitações com empenho.
Já é rotina. De vez em quando, destapa-se um político que, a bem do gabarito, falsificou o currículo. Esta semana, o destapado foi um Feliciano Barreiras Duarte, pelos vistos o novíssimo secretário-geral do PSD. Evito os detalhes, entretanto divulgados com abundância, e noto apenas que, em lugar de inventar uma licenciatura, o prof. dr. Feliciano optou por inventar um emprego numa universidade californiana, a de Berkeley. Ah, Berkeley… Também andei por lá – durante dez minutos, perdido após escolher a saída errada para o aeroporto de São Francisco. Ao que consta, o prof. dr. arq. Feliciano nem isso: as suas conexões à instituição especializada em censurar oradores pró-Trump são meramente platónicas, o bastante para definir um carácter e, em Portugal, uma carreira.
Repleta de maluquices (“…tem 21 livros publicados, prefaciou vários trabalhos de investigação, foi conferencista e moderador em 164 conferencias, seminários e afins, publicou cerca de 750 artigos e cronicas em jornais e revistas, e tem variadas intervenções no plano profissional, extraprofissional, publica, política e de outras tipologias”), dadaísmo (“…a elaboração deste relatório, com os fins e objectivos anteriormente referidos, pretende-se que seja consabido, o relacionamento entre a primeira e a segunda parte do mesmo, com a evidência principal, que de entre a multiplicidade do currículo do seu autor, poderá sobressair e outrossim destacar, o fio condutor de que…”) e desafios à língua (ver acima), a “Conclusão” da tese de mestrado do prof. dr. arq. juiz Feliciano, avaliada com 18 valores pela ex-ministra dos incêndios,  é um regalo.
A moral da história é que, com frequência, um percurso académico simulado não produz resultados muito diferentes dos percursos académicos autênticos. Sobretudo no vago universo das “humanidades”, onde a distância da trafulhice à pertinência é subtil, não há escassez de vultos incapazes de amanhar uma redacção da “primária”. Curiosamente, essas limitações não suscitam engulhos até ao momento em que o vulto saltita para a política, por acaso das raras áreas do saber que não carece de saber nenhum. Quem a sabe toda é o bastonário da Ordem dos Médicos, que há tempos, por vergonha, pediu alternativas ao tratamento por “dr.”. O homem tem a mania e tem razão.

Depois uma crónica no Sol de hoje, de Filipe Pinhal, um antigo bancário/banqueiro cuja cultura não é vulgar nessa profissão e muito menos a sabedoria que costuma expor.


 Porém, lendo isto, também de hoje, no Público:



E isto,no Sol de hoje:


 Pode concluir-se com alguma aproximação à realidade que quem escreveu dissertação de mestrado, em 2014 e quem escreveu este artigo no Sol, publicado hoje, não seria a mesma pessoa.

Uma coisa é certa: quem aprovou a tal tese de mestrado com 18 valores foram as sumidades nomeadas: Diogo Leite de Campos e Constança Urbano de Sousa.

Estas sumidades é que precisam de se sumir do lugar onde estão, porque o que este caso mostra, já à saciedade é que a universidade portuguesa não se honra a si mesma e caiu nas ruas da amargura. E vai de mal a pior. Daqui a algum tempo serão os Politécnicos a atestar o grau de doutor, por extenso.

A corrupção nesta área parece ser tão extensa quanto a que existe em qualquer lado...

25 comentários:

José Domingos disse...

Esta naçãozinha, não merecia nada disto, é vergonhoso o que se passa, parece um esgoto a céu aberto.
Em relação ás universidades, sem generalizar, estão em roda livre.
Desde a tragédia do meco, que não deu em nada, vergonhosamente, para todos nós.

aguerreiro disse...

Se eles ao menos pudessem exibir o diploma do exame do 2º grau (4ª classe), com o "lusito" a tocar trompeta eu dava-lhes de barato um "master" em polimento de esquinas e de cadeiras de faculdade, sem excluir um curso acelerado de incêndios florestais e dança de varão, podia ser por Berkeley ou Bakery ou Aguada de Cima, já que a de baixo está protegida por cinto de castidade inviolável.

David disse...

José,

Acompanho-o e aos que aqui reproduziu a escrita, nas preocupações sobre a Universidade. Escrevi no singular...
Sobretudo a forma como atribuem diplomas e a forma como atestam o que não deviam.
Percorri algumas universidades, pelo menos 3, e vi muitas coisas incorretas, parecidas com as que são descritas nos textos que publica. Sobre algumas protestei e ganhei inimizades traduzidas em vingança na nota.
Numa delas fui brindado com uma média final mediocre, porque não despejava os manuais "marxistas leninistas".
Todavia, parece-me que parte do problema, hoje, é a necessidade de emitir diplomas para terem dinheiro para pagar salários.
Isto vai muito ao arrepiio do que é a "Ideia de Universidade".
A publicação de artigos em empresas editoriais parece ir no mesmo sentido: Faturar

Floribundus disse...

já aqui informei sobre o estado caquético da universidade
idêntico ao do rectângulo

em Espanha 21 universidades estão entre as melhores 50 europeias

arrepio-me de contar o que me sucedeu há uns 8 anos ao tentar apresentar uma tese que devia ter defendido num país civilizado

por isso prefiro dizer que possuo a
4ª classe de ensino primário elementar obtida em Nisa em 1940

Floribundus disse...


Congrès du PS : l’aile gauche déplumée

La gauche du Parti socialiste a obtenu 25 % des suffrages lors du vote des militants pour la présidence du parti.

LE MONDE | 17.03.2018 à 10h44 |


zazie disse...

EHEHEHE O AG deu-lhes em cheio

« Ah, Berkeley… Também andei por lá – durante dez minutos, perdido após escolher a saída errada para o aeroporto de São Francisco.»


josé disse...

Eh! Bem vinda! Já estava a pensar em perguntar o que se passava...

altaia disse...

Para os defensores do Passos dar lições numa Universidade até vos compreendo.porém dá-me um gozo tremendo ver um cavalheiro que tanto mal fez e disse da Função Pública,não encontrar outro emprego que não seja na TETA dessa mesma função pública.

zazie disse...

Olá José

Obrigada pelo cuidado.

Beijocas

jkt disse...

«tanto mal fez e disse da Função Pública,não encontrar outro emprego que não seja na TETA dessa mesma função pública»

Normal. Com o curso dele emigrava (como sugeriu aos portugueses)... para as obras como os outros.
Cansa pois é. Na FP é melhor!

Floribundus disse...

putinismo na Fed Russa

putanismo no gulag de antónio das mortes, o rei do churrasco

passei os olhos sobre a cu municação xuxialista reverencial

'a oeste nada de novo'

só velhos

lusitânea disse...

Só velhos, paneleiros e fufas que querem importar a diversidade para terem escravos à ordem... mas numa de todos iguais, todos diferentes ou seja nivelarem o seu tão apregoado zé povinho por baixo...

lusitânea disse...

E quem como o bom do Guterres nos ensina não alinhar pela foice e pelo martelo do "homem novo-raça mista" é xenófobo e claro racista"...

José Luís disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
José Luís disse...

Hoje no Observador excelente artigo de Carlos Maria Bobone sobre este Feliciano.

Ricciardi disse...

Passos irá ser professor universitário. Catedrático.
.
Eu acho muito bem. A experiência que ele ganhou na governança do país deve ser posta à disposição do povo. Creio mesmo que devia ser um imperativo legal.
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O facto de eu achar que foi um mau primeiro ministro, por razoes que agora não interessam, não belisca a capacidade do homem ensinar em Universidade. Nem que mais não seja tem uma cátedra em algumas matérias que só se aprendem quando aprendemos pela experiencia vivida. E nesse capítulo Passos é mestre. Catedrático e jubilado. Ele sabe ensinar perfeitamente, por mérito próprio, aquilo que não se deve fazer.
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Se juntassemos ao corpo docente catedrático da Universidade em questão o Sócrates e o Santana, teríamos uma verdadeira equipa de mestres ex primeiro ministros a transmitir de cátedra aquilo que não se deve fazer na governance.
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Por outro lado, eu acho que se devia abrir as cátedras a pessoal não político. Para compensar os políticos que ensinarão aquilo que não se deve fazer, seria útil ter professores sem cátedra com méritos comprovados.

Empresários de sucesso, por exemplo para, desta vez e para compensar, ensinar aquilo que se deve fazer.

.
Rb

joserui disse...

José, claro que este Feliciano não é o pior, mas não me parece proveitoso esse ranking… isto é intolerável a tantos níveis que seria difícil começar, deixando pedra sobre pedra do ainda apelidado ensino superior. É necessário questionar a quê que é superior. A quarta classe do Estado Novo era superior, era honesta e era honrada.
Como dizia o meu avô, preferia borrar a cara de merda a fazer as figuras que estes Diogo Leite de Campos e Constança Urbano de Sousa (esta vai acumulando, depois do Verão passado com as consequências conhecidas). Este regime tem sido uma descida aos infernos da falta de vergonha.

joserui disse...

Ninguém manda este de volta para o quarto de brinquedos… que emplastro inacreditável.

adelinoferreira disse...

Zazie, folgo em saber que estás viva, muito embora pense que a ausência da bloga não deve ter sido por boa coisa. Por mim fico com a sensação de algo desagradável te aconteceu.Se foi o que presumo... É a vida!força!

hajapachorra disse...

Calma, não foi a universidade a passar canudos felicianos, foi a autonomous university of lisbon. Se sabe o nome dos arguidos, perdão, dos arguentes, também devia saber o nome do tribunal ou da choça em que essa trampa foi passada.

zazie disse...

Folga então, mas não foi nada que presumas. A minha tia ainda por cá anda para lhes dar trabalho ":OP

E eu também...

josé disse...

"também devia saber o nome do tribunal ou da choça em que essa trampa foi passada."

Diga lá, em vez de presumir que sei...

foca disse...

José
Creio que o hajapachorra refere o clube do avental

foca disse...

Li algures que o orientador deste Feliciano para os assuntos americanos foi o Pinto de Abreu, ex Secretário de Estado do Mar, também ligado à Lusofona.
Já agora a escola é a UAL, também por lá circula o Tozé Seguro e o Pacheco Pereira, para citar dois sem carreira académica relevante.

Entre uns copos e outros encontram-se formas de distribuir canudos por jovens ávidos de compor os CV com títulos.

josé disse...

O Pacheco sobre isto é muito frugal...já sobre o Passos é um fartote.

A obscenidade do jornalismo televisivo