quinta-feira, fevereiro 28, 2019

A informação e opinião sobre julgamentos de violência doméstica

Há inúmeros casos de violência entre casais, em Portugal. E algures, aliás. Basta pegar num único desses casos em concreto, ouvir queixosas e há pano para mangas de notícias em catadupa, todos os dias. São quase sempre queixosas porque os queixosos têm vergonha de se queixarem das violências psicológicas de que também são vítimas. Quem lida com casos deste género sabe que assim é e que muitas vezes não é possível descortinar quem é vítima de quem, nesse aspecto.
Porém, estatisticamente, são as mulheres quem apresenta queixa dos homens com quem vivem ou convivem, por violência física, associada a ameaças, por vezes de morte.
As queixas são apresentadas nas polícias que lidam com o assunto de modo cada vez mais profissionalizado e ritualmente adequado. As polícias têm agora núcleos específicos de profissionais para lidarem com o assunto, os NIAVE.
Perguntam às queixosas pelos factos, pelas circunstâncias e avaliam, segundo o que ouvem a situação de risco concreto,  de repetição ou de concretização das ameaças mais graves. Assinalam por escrito  e nessas situações as queixosas podem socorrer-se de assistência à distância, através de dispositivos que accionam o alarme junto das polícias se algo puder estiver em iminência de suceder. Podem mesmo usufruir de outras medias de protecção.

As polícias apresentam tais resultados imediatamente, no próprio dia ou dia seguinte ao MºPº que também já rotinou procedimentos para lidar com os casos concretos.

Perante indícios de alguma situação grave que imponha medidas de imediato,  tais medidas são requeridas de pronto ao Juiz de Instrução criminal. Em casos extremos de detenção dos suspeitos, os mesmos são ouvidos por esse magistrado que lhes pode impôr medidas de coacção até à prisão preventiva e a obrigatoriedade de uso de dispositivo electrónico de monitorização de paradeiro, por gps.

Tudo isto é procedimento corrente hoje em dia, em todas as comarcas do país.

Casos como o da última queixosa que foi alvo da atenção mediática suscitada pelo Público são muitos. E é um caso igual a muitos outros, banal, com uma particularidade: não devia servir de exemplo para o que se pretende agora fazer relativamente ao poder judicial que é julgá-lo sumariamente sem ouvir sequer as partes envolvidas. Não existe na opinião publicada qualquer esclarecimento do género que tenho apresentado aqui. Nenhum. Toda a gente se encolhe, tem medo não se sabe de quê, talvez destas pascácias e pascácios que noticiam sem saberem profissionalmente o que andam a fazer e deviam ser castigadas pela falta de profissionalismo e incompetência.

É de uma justiça popular que estamos a falar e da pior que existe porque basta-se com indícios, mesmo com factos falsos, sem ouvir senão a queixosa, para julgar quem julgou.

Quem o faz não sabe ler um acórdão ou uma sentença de modo a perceber o que dizem ou os pressupostos de que partem, mas isso não incomoda ninguém, muito menos os juízes que os elaboraram. Levam no lombo da legitimidade, são apoucados pelos media que julgaram sumariamente o caso e ficam na mesma, num mutismo inquietante.

Repare-se neste caso.

A Visão com a autoridade de um director-executivo, Rui Tavares Guedes, escreve isto sem nexo com o acórdão em causa: " em 2015, apenas 9% dos agressores condenados tiveram pena efetiva – aos outros 91% foi aplicada a suspensão da pena.
O que isto provoca é que os agressores, além de não terem o castigo da pena, também não sofrem, na generalidade dos casos, a censura social a que este crime deveria estar associado." 


A mensagem que transmite é que os tribunais não julgam bem e se fosse ele a julgar não seria assim e as penas seriam de prisão fechada e de castigo para os agressores sem apelo nem agravo. Julga-se o dono do entendimento correcto e os juízes que julgam os casos concretos, uns mentecaptos. Estou a imaginá-lo a ler a prosa que escreveu e a assumir a pose de dâmaso. Salcede, entenda-se.

Na Sábado, o bestunto de uma das redactoras, Mariana Branco, vai um pouco mais longe: dá como assente que o juiz Neto de Moura tirou a pulseira electrónica ao arguido e tira daí todas as ilações do facto falso. Não se incomodará nada se descobrir a asneira...

No Expresso aparece mesmo uma entrevista com a "queixosa". O que se ouve não permite entender que o arguido tinha pulseira electrónica. O que a mesma diz, textualmente é  "só sei que quando soube a decisão que o senhor tomou, só posso dizer é que o senhor... tirou-me a vida." Assim mesmo: tirou-lhe a vida e as pascácias a ver, sem reacção a esta enormidade, antes assentando pelo silêncio que assim será.
E logo a seguir: "Num certo sentido ele tirou-me a vida porque eu sei que ele não ia andar com pulseira a vida toda, mas os três anos podia ser que ele reconstruísse  a vida dele e me esquecesse".

Pois bem. Nem com isto assim tão explícito aquelas duas criaturas que parece são jornalistas e estão na imagem do video perceberam . O que entenderam , aparentemente , é o que esta queixosa queria transmitir: que o senhor, o tal juiz , tirou-lhe a vida.

Será preciso mais comentários a esta estupidez e a este histerismo mediático?

Porventura a mulher queixosa não pode apresentar queixa contra quem a agredir ou ameaçar, quando entender que tal se justifica? O acórdão proíbe-lhe tal coisa?
E entenderão aquelas criaturas que escrevem nos media que tal medida de "pulseira electrónica" é falível e nunca evitará qualquer acto tresloucado de quem o queira praticar?

Mais: já foram ouvir o arguido e saber o que o mesmo tem a dizer, ou para isto o indivíduo é apenas uma coisa, em modo de assim? Não é uma pessoa? Não tem direitos? E tem de ser sujeito a opróbrio, para além da condenação a que foi sujeito, neste tribunal mediático que julga sem ouvir as pessoas?

Que canalha é esta que pensa assim como sendo o modo correcto de exercer uma profissão como a de jornalista? Não sentem vergonha disto?

E já pensaram essas criaturas todas que agora escrevem como grandes juízes dos juízes que as mortes na violência doméstica não diminuíram e porventura aumentaram substancialmente com todas estas medidas de protecção que acabam por não proteger nada?

Já pensaram se isso não será contra-producente e um sinal de que algo terá que ser repensado nestas matérias em vez de andarem a fustigar quem aplica a justiça nos casos concretos que são julgados?

Este é o tom de todas as intervenções mediáticas que tenho lido por aí: a mesma estupidez, a mesma ignorância, a mesma uniformidade de pensamento. A mesma ausência de qualquer contraditório nestes julgamentos sumários, a certeza que lhes advém de conhecerem uma realidade que efectivamente não conhecem e apreendem-na apenas pelo relato de queixosas como a infeliz que se vê no vídeo.

É assim que se faz informação em Portugal.

Sem comentários:

A obscenidade do jornalismo televisivo