Em 28 de Junho de 2013 escrevi um postal sobre o julgamento dos fassistas que não se conseguiu fazer por causa das contradições democráticas.
Vem isto agora a propósito do estudo mencionado em baixo acerca da alta percentagem de "vítimas do fassismo" que ainda se julgam injustiçados.
Fica aqui o postal de então com algumas alterações e acrescentos:
Um dos problemas surgidos com o levantamento militar em 25 de Abril de 1974 e que depôs o regime de Marcello Caetano foi o que fazer com os seus representantes. Caetano foi para o Brasil, depois de passar pela Madeira. Tomás idem. Outros foram presos logo no dia 26 de Abril de 74 como César Moreira Baptista ou o comandante Tenreiro, o temível manda chuva do bacalhau que teve tanto poder que não ficou com um tostão no bolso para si próprio, que não fosse devido. Enfim, houve outros "fascistas" que acabaram presos no dia 28 ou 29 de Setembro de 1974, na sequência do "golpe" da "maioria silenciosa", oportunamente denunciada pelos antifascistas e comunistas em geral e que obrigou Spínola a fugir.
O programa do MFA não aludia a nada que se assemelhasse a qualquer caça a bruxas fassistas ou quejandas, mesmo da PIDE/DGS, desmantelada na hora. Nada. Não obstante as prisões dos "facínoras" do fassismo, pides que foram para a grelha em dois tempos e sem qualquer imputação de culpas concretas a não ser essa, sucederam-se logo no dia 25 de Abril. Às dezenas, na "grelha" e sem culpas concretas de imputação de qualquer crime a não ser o de pertenceram à famigerada polícia política.
Porém, nas semanas seguintes, com o aparecimento do PCP e outras forças "democráticas", "sempre, sempre ao lado do MFA", tornou-se objectivo do primeiro governo provisório reorganizar o Estado. Só em 7 de Junho de 1974 foi criada uma "comissão" que só foi extinta em...1991:
O Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e LP, criado a 7 de Junho de 1974, na dependência directa da Junta de Salvação Nacional, era uma entidade essencialmente de justiça, encarregado de instruir os processos crime pelos quais os responsáveis, funcionários e colaboradores das extintas PIDE/DGS e LP eram apresentados a Tribunal Militar para julgamento.
A incriminação dos agentes e informadores da PIDE/DGS e LP, o levantamento das redes de informadores, as ligações e o envolvimento daquelas organizações com acontecimentos de interesse ou repercussão nacional, a colaboração nos processos de reclassificação, saneamento e reintegração eram atribuições e competências deste serviço. Para efeitos de contagem de .tempo de serviço ou de reabilitação, este serviço devia facultar as declarações e os certificados que lhe fossem solicitados, quer por parte dos antigos funcionários e agentes da ex-PIDE/DGS e LP, quer pelos indivíduos perseguidos pela PIDE/DGS.
O Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e LP, era composto pela Presidência, por um Gabinete de Instrução de, Processos e por um consultor jurídico. Da Presidência dependiam a Repartição de Apoio e Serviços, a Repartição Judicial, a Repartição de Análise e Investigação Documental, a Delegação de Coimbra e a Delegação do Porto.
Esta imagem do Século Ilustrado de 1974 mostra o aparato bélico na prisao de um PIDE/DGS no dia 25 de Abril de 1974. O desgraçado tem mesmo cara de réu... e por isso precisou de meia dúzia de G-3 apontadas e empunhadas por tantos magalas, mais alguns vigilantes em riste, não fosse o perigoso fascista da PIDE fugir dali.
Não obstante, em 19 de Maio de 1974 o Expresso mostrava com erros ortográficos que o país carecia da "irradicação definitiva do fascismo", uma nova expressão nascida por aqueles dias, talvez na primeira semana daquele mês e que pegou de estaca junto de todas as personalidades públicas que prestaram juramento no primeiro governo provisório presidido por um mação de gema, Palma Carlos.
Em 13 de Julho de 1974, o Século Ilustrado mostrava pela primeira vez imagens dos perigosos fascistas encarcerados por malfeitorias ao povo português. Tenreiro era um deles. Moreira Baptista e Silva Cunha outros.
Em 28 de Setembro de 1974, nova leva democrática de fascistas. Desta vez, "numerosos" que foi para aprenderem com a democracia.Moreira Baptista que tinha sido preso da primeira vez e fora solto entretanto, voltou para a grelha. E Silva Cunha também.
Evidentemente que se criou logo um problema não previsto pelo antifassismo militante: os "numerosos fascistas" que crime tinham cometido? O Diário de Lisboa tinha um código penal particular, usado pelo director Ruella Ramos e que definia o crime como "envolvimento na tenebrosa conspiração que pretendia roubar a liberdade ao povo português". Tal e qual e chegava-lhe muito bem porque não precisava de outro.
Ora o jornal Expresso, em 19 de Maio de 1974 tinha apresentado um esquisso sobre a nova legalidade vigente, relativamente aos elementos da PIDE/DGS: tortura, "todo o castigo cruel, desumano ou degradante dos presos". Portanto à PIDE/DGS imputar-se-ia tal crime se fosse possível enquadrá-lo em provas e haveria certamente algumas relativamente a alguns agentes e inspectores, como Sachetti ou outros próceres da política política do antigo regime. Mas...e os outros que não tinham torturado ou mandado torturar e que foram simplesmente chefes, presidentes, responsáveis politicos? Seria possível, legalmente, incriminá-los nos mesmos termos?
E ainda subsistia outro problema de base, teórico é certo, mas pedra de sapato insuportável numa democracia: nullum crimen sine lege. Não poderia haver incriminações de ninguém sem que houvesse previamente lei a suportá-la. E não havia. O que havia era o Código Penal fassista, vindo de 1886 e não se estava a ver o regime democrático a usar o argumento da actividade subversiva usado pelas leis "fassistas" ( entretanto revogadas) para incriminar os novos presos políticos...
Este dilema só provocava coceira de cabeça aos "socialistas democráticos", porque aos comunistas o assunto tinha sido resolvido em dois tempos e à maneira soviética e sem grandes sobressaltos cívicos e de consciência.
E de resto, aos novos antifassistas não interessava por aí além condenar um Sachetti com provas irrefutáveis e deixar à solta uma miríade de outros "pides" que passaram pela grelha mas não se chamuscaram. O que lhes interessava mesmo era condenar criminalmente um regime e meter na grelha, durante anos, os seus representantes directos e disso não faziam segredo pelo que a frustração em não o fazerem logo, como queria o director do Diário de Lisboa e outros, era grande e dolorosa.
Portanto, como diria Lenine- que fazer?
Uma lei, ora. E assim nasceu a Lei 8 / 75 de 25 de Julho, em pleno PREC. Legalizar era o caminho, mesmo retroactivo, mascarando-o com outras leis "universais" dos direitos humanos que legitimariam a aplicação para o passado de factos com importância no futuro, como se fizera na Segunda Guerra mundial com os facínoras nazis. Os fassistas portugueses mereciam tratamento idêntico, claro está, porque o crime era imprescritível e atentatório da Humanidade em geral.
Portanto, para harmonizar legalmente tudo, já havia a Convenção de Genebra ( para crimes de guerra); a Declaração Universal dos Direitos do Homem ( para tudo e mais alguma coisa); a Convenção internacional sobre direitos cívicos e políticos ( para se aplicar a factos passados mas não ao então presente...) e a Convenção sobre o Genocídio ( é mesmo...) e ainda a Convenção Europeia os direitos do Homem. Parece que havia convenções não ratificadas por Portugal mas que era isso para um caso destes, de julgar o "fassismo"?
Para se resolver o problema teórico, em primeiro lugar era preciso saber o que era isso de "fascismo", ou como diria Domingos Abrantes, o "fassismo" que para o indivíduo de dentes raros era coisa mais clara que o futuro radioso dos amanhãs a cantar.
O República de 13 de Janeiro de 1975 dava uma ajudinha para se perceber o que seria o tal de fassismo...à falta de melhor caberia lá tudo o que fosse "reaccionário" e estava a definição dada.
É certo que estes conceitos não eram suficientes para algumas almas complicadas que gostam de estragar tudo, como por exemplo um advogado como Joaquim Pires de Lima, conhecedor profundo do processo do "Ballet rose" e que escrevia no Expresso de 15 de Fevereiro de 1975 algo que qualquer jurista sabia de cor: "se em 25 de Abril não houve uma revolução, mas um golpe de poder, só será possível sancionar pessoas ligadas ao regime anterior através da lei antiga". E mais: " após a revolução do 25 de Abril e a libertação nacional do regime fascista, ou se destruíam os inimigos da revolução ou não é admissível sancioná-los com leis criadas e mantidas naquele regime". Um dilema, portanto.
Quase todos os que mandavam no poder político-militar, com excepção dos comunistas e socialistas, estiveram mancomunados com o tal "fassismo", a começar pelo próprio presidente da República. E como resolver o dilema?
Fazendo uma lei à medida e arranjando justificação plausível para a sua aplicação retroactiva com base naquelas convenções gerais e abstractas que tinham aplicação directa nesses casos mas não nos entretanto criados com a prisão dos tais "numerosos fascistas".
Havia um problema com os famigerados "pides":
A criação de legislação ex novo, para lidar com o problema que não existia e que em 15 de Fevereiro de 1975 o Expresso apresentava assim:
Em Janeiro de 1976 havia já a certeza de que não só "os pides" mas até os "responsáveis pelo fascismo" seriam julgados...
O Jornal de 25 de Junho de 1976 dava o panorama dos julgamentos que poderiam realizar-se ( e que acabaram por não se fazer):
Porém, como o julgamento demorava foram colocados em liberdade provisória, o que suscitou grande escândalo entre os antifassistas porque até o pior facínora entre todos, o Sachetti, fora libertado:
Claro que este tipo de leis atamancadas e materialmente inconstitucionais para todos menos para os que afeiçoam o direito às conveniências políticas, tinha que dar nisto, tratado no O Jornal de 23 1 de 1976: um dos "numerosos fascistas" presos na sequência do 28 de Setembro e que estivera preso sem conhecer auto de culpa alguma, Kaulza de Arriaga acabou solto e até prometia concorrer à presidência da República. Ultraje! gritaram os comunistas.
E houve inquérito para saber como tal foi possível...tal como se conta em 13 de Agosto de 1976:
E surgiu um problema no julgamento. Em Outubro de 1976 O Jornal dava conta: havia a declaração de eventual inconstitucionalidade da lei feita à medida e tal carecia de estudo de tribunal superior:
Tal suscitou dúvidas entre os que não se reviam como antifassistas declarados, como era o caso do jurista Júlio Castro Caldas que escrevia assim no O Jornal de 15.10.1976:
Ainda assim, o grande advogado tonitruante, algoz de homosexuais parlamentares, Carlos Candal de seu perfil, já falecido mas que deixou descendência no hemiciclo, escrevia a sua solução miraculosa no O Jornal de 22 de Outubro de 1976: tábua rasa dos princípios jurídicos mais elementares do direito penal, envoltos no fumo do charuto ocasional:
Infelizmente para os antifassistas, o primeiro julgamento dos tais PIDES na grelha correra mal porque o réu foi absolvido, por uma razão simples e que já deveria ser previsível: a lei 8/75 de 25 de Julho foi declarada inconstitucional por um tribunal. Assim, sem mais.
Tanto bastou para se levantar um coro de protestos de antifassistas encartados nas leis penais e constitucionais ( não encontrei a posição de Vital Moreira mas devia ser conforme...)
E quanto ao juiz que considerou inconstitucional a lei? Atacado logo no O Jornal, com nome posto. Assim:
O Jornal de 26 de Novembro de 1976 mostrava o que era o problema em julgar "pides"...mesmo um dos que estava acusado de crime comum...
Tudo isto acabou por dar em...nada jurídico, para grande desgosto do Candal que não desarmou de "irradicar" o fascismo. E para tal, como para grandes males só grandes remédios, o Candal , passados dois anos de opróbrio jurídico, teve uma ideia luminosíssima como só de um fumador de cachimbo poderia sair:
Porém, já em Abril de 1976 um compagnon de route do comunismo, o director de O Jornal, escrevia assim o que viria a seguir, embora a propósito de outros visados: a amnistia...
E foi assim que nenhum PIDE/DGS foi jamais condenado e os "fassistas" se livraram das garras da grelha e alguns até se inscreveram depois no PS...por inépcia do regime e por incapacidade em provar os crimes que imputaram àqueles. Para resolver o imbroglio que criaram inventaram outra ideia luminosa do tipo daqueloutra: amnistias em catadupa.
Enquanto durou o folclore houve foguetes no ar.
Mas...eu disse que nenhum "pide" foi condenado? Ora vejamos O Jornal de 23 de Dezembro de 1976:
por quererem julgar tudo o que julgavam fascismo
ResponderEliminaros trabalhadores duma grande empresa já falecida
deram uma valente sova num 'Irmão' meu Amigo
resultado 6 meses de hospitalização
sobre o fascismo italiano
tanto quanto pude ler e ouvir em 58 e 59
não passava de 'opera buffa'
o III Reich era uma ideologia de capitalismo misto
Este artigo faz-me lembrar a canção "Bacalhau tenrinho bacalhau Tenreiro" que inundou o éter nos idos 1974/5 e que depois morreu de forma súbita. Quando por "nostalgia" solicito a audição do mesmo ninguém a conhece... Nem existe nos arquivos de nenhuma rádio, fazendo-me lembrar o velho cabeçalho do Avante do defunto Barreirinhas do Cunhal que após o 25 A saneou e mandou para a Sibéria o slogan "proletários de todo o mundo uni-vos e fazei a ditadura".a partir de então no partido da marreta e da foicinha instalou-se a "democracia" que vai durando
ResponderEliminarO programa do MFA redigido de forma científica de forma a ser aceite pelos golpistas foi o primeiro caso de "interpretação" de que aliás todos os "partidos" se apossaram.O que deu numa rica merda diga-se...
ResponderEliminarOlhe José da Loja:
ResponderEliminarVexa tem um trabalho enorme de documentação que eu agradeço.
Contudo, o que me faz rir é a fotografia do homem rodeado por tontos com G3.
Como esta há muitas. Até na World Press Photo que vi na Cordoaria, há anos.
Das duas uma:
a) as G3 não tinham balas (o mais provável)
b) toda aquela gentalha teve muita sorte porque se uma G3 começasse a cuspir fogo, morriam todos em menos de um espirro.
magalas com armas de fogo real, G3 de combate no mato, enquadrados por oficiais vindos do Ultramar...isso foi em 1974 e era esse o ar do tempo.
ResponderEliminarQuanto ao trabalho é um prazer que é todo meu e tenho mais e muito mais que me dá prazer scanear.
ResponderEliminarComo dizia há tempos um amigo que perdi nestas coisas dos blogs, o scanner quando me vê até treme.
É possível fazer História com estes recortes se se souber o contexto e integrar tudo numa narrativa com coerência.
ResponderEliminarLi agora uma entrevista de José Matoso ( ou Mattoso, embora o pai só tivesse um t) num suplemento de uma revista e que é um espanto de sabedoria. Nela fala sobre o que é a História e diz que se assemelha à Literatura. Ou seja, uma récita que interpreta factos ocorridos.
Mattoso diz que o único historiador que se aproveita por ser um pouco mais objectivo será Fernão Lopes.
ResponderEliminarPor mim, tento ser desse modo: relatar com amostragem de factos, mas sempre com uma ideia subjacente e que denoto ao escrever. Essa ideia é fixa: os relatos que leio são quase todos enviesados para a Esquerda e tento mostrar que assim é, para se dar um desconto.
Os 'pides' foram quase todos, senão todos, ilibados de culpa e nunca julgados porque, isto é do conhecimento geral, muitos deles conheciam de ginjeira os também muitos colaboracionistas comunistas e socialistas que faziam política para ambos os lados e traidora para o lado português. Eram oposicionistas ao Regime do Estado Novo e simultâneamente colaboravam secretamente com a PIDE. Por isso mesmo é que os arquivos da PIDE-DGS, denunciadores do jogo duplo dos pulhas, voaram à velocidade da luz para Moscovo. Pois pudera!, o medo dos velhacos que os seus nomes fossem revelados era atroz, a maioria dos quais bem conhecidos dos portugueses e todos eles da esquerda comunista e socialista. Terá sido por este facto sintomático que Marcello Caetano foi tão condescendente para com o passado de Cunhal e de Soares e de certo modo benemérito para com a sua pessoa e a de Soares e a de outros oposicionistas da mesma igualha, tendo em conta as suas gravíssimas conspirações e subversões contra a Pátria? Caetano teve a paga de tanta condescendência pelo modo vil como foi posteriormente tratado, traduzido nas traições contra si posteriormente perpetradas, traições em que esta gentaça é mestre.
ResponderEliminarOs ex-pides ainda vivos deviam falar e denunciá-los um a um enquanto é tempo. Têm o povo português do seu lado. Gente cobarde e traidora à Pátria não merece a menor condescendência nem o mínimo perdão.
Sem palavras, deixo aqui este poema.
ResponderEliminarA Cadeia
A Cadeia é tudo o que me rodeia.
Os muros, as grades, os guardas, as celas, os ferros.
Onde dou berros,
Ninguém me ouve,
Quero de novo juntar-me ao povo.
Não quero morrer
Porque tenho a dizer
Que não matei, não roubei, não maltratei nem transgredi a lei.
Se isto é mentira
Aceito
Que me esfaqueiem o peito.
Com toda a ira,
Com crueldade,
Não tenho medo porque digo a verdade.
Dou voltas, vou à janela.
Que vejo dela?
Vejo as estrelas, a lua a passar, a se esconder.
Volto p`ra dentro não a posso ver.
Sinto-me doente e cheio de medo
Por me ver neste degredo.
Olho em meu redor só vejo teias que não são de aranha.
São ferros de grossura medonha.
Fecho os olhos, obrigo-me a deitar,
Com o corpo estendido
Ponho-me a pensar
Fico perdido.
Adormeço,
Sonho com paredes,
Apalpo o corpo com a ponta dos dedos.
Acordo sobressaltado
Sinto-me vivo
Amarfanhado
Como um farrapo amarrotado.
Penso que apodreço,
Sem me darem o que mereço.
Choro p`la minha filha,
Quero vê-la,
Quero beijá-la,
Quero-a vivente,
Quero-lhe dizer
Que morro inocente.
C.P.Lx, 16-7-74