A Anomia
Em sociologia, anomia designa um enfranquecimento das ligações sociais. À letra, dizem que significa a ausência de leis ou normas.
Sem entrar muito por estas veredas das tretas, porque a discussão continua em livros pesados, de Durkheim a Merton e Leo Srole, sempre se arrisca dizer numa retórica despreocupadamente empírica que o conceito é importante e refere-se a um desvio dos indivíduos, às leis e à própria moral.
O que temos de anómico no tempo que passa, em Portugal, afigura-se algo tenebroso.
Hoje, o Expresso, em nota editorial de primeira página, aninha o conceito no segundo parágrafo, a propósito da perda de vitalidade e espírito combativo, frente ao terrorismo. Talvez tenham dado demasiada importância ao artigo de um insensato socialista, na Visão de quinta-feira, agora virado para os tacticismos eleitorais e ao ataque a tudo o que mexe à sua direita.
Porém, o espírito anómico não se rende apenas ao terrorismo. A debilidade de raciocínio face aos princípios e valores morais, espalhou-se já a outras camadas da cebola social e ameaça o bolbo central da consciência colectiva.
Temos vindo a deparar, ao longo dos anos, com uma cada vez mais ampla indiferença a determinadaos fenómenos que deveriam suscitar alarme e preocupação em quem distribui os recursos de combate a determinados males penalmente tipificados.
A desatenção de quem manda ao que é ilegítimo, confunde a democracia legitimada. Quem elege, começa também a perder a noção de limites éticos e as fronteiras morais são arredadas para os manuais de catequese e códigos que servem de cardápio às “meras sugestões legais” e ao difuso temor, do preceito azarento bater um dia à porta. Porém, como se tornou sabedoria corrente a noção de a espada não ser lei e o mal acontecer sempre aos outros, a nódoa não pára de alastrar.
Só por este estranho fenómeno de fuga, cada vez mais colectiva, às responsabilidades individuais, se compreende o desinteresse generalizado, votado a quem desvia em proveito próprio, bens que são de todos e a quem aldraba regras que são claras e imperativas.
A corrupção em Portugal, como factor perturbador da vida social, não interessa a ninguém que se preze. Quem tem o poder de decidir, não vê a perturbação e desvaloriza a preocupação de alguns, muito poucos, que aí vêem o caminho da perdição dos valores democráticos.
Só assim se explica que o actual governo e a polícia judiciária que dele depende, tenha dado nenhuma atenção séria ao combate à corrupção fiscal que tudo indica ser generalizada em certos quadros de inspecção e direcção vir de há muito tempo. A desvalorização dos meios a atribuir à respectiva investigação e o desinteresse na detecção e detenção dos presumidos implicados, notoriamente demonstrada pelos resultados da investigação publicada, é disso exemplo eloquente.
Mas não é apenas na administração fiscal que a nódoa s espalha.
Há pelo menos dez anos que a consciência colectiva do legislador entendeu que havia necessidade de pôr termo ao desmando e desvario do roubo generalizado do que é de todos, criando-se uma específica legislação anti-corrupção. O esforço de propaganda que na altura se gerou, não se fez acompanhar dos braços para fazer a obra necessária e ficaram os caboucos e alguns alicerces à vista , até hoje. Os meios para a obra, definharam, a par da vontade de quem tem o poder de os disponibilizar.
Há alguns anos, na antiga JAE, os indícios de corrupção entranhada nos quadros dirigentes eram tão visíveis que motivaram intervenções públicas de altos responsáveis. Foi o caso de Pedro Ferraz da Costa e do dirigente da própria instituição, o general Garcia dos Santos, em meados dos anos 90. Poucos ligaram e agiram em conformidade. Um procurador geral com toda a carga de responsabilidade que o cargo lhe emprestou, despediu sumariamente o impetrante general, com um altivo gesto desvalorizador e remeteu-o à frustração das entrevistas de jornal, onde contou as mágoas de ouvir o mazarino dizer que se não tinha provas que se calasse! Mesmo assim, a anomia deste caso, abrange a própria PJ que na condução de um juiz Negrão, negou agentes à investigação, o que motivou disputa azeda e a por fim, a demissão, a contento daquele.
Porém, é este mesmo personagem dum certo teatro de sombras, quem através de interpostos mensageiros, vem agora avisar que está para vir aí o lobo do desmoronamento da estrutura do Estado anómico, pela mão inepta do seu sucessor. A atitude reflecte, parece, uma discordância na condução dos “affaires de l´État”, a propósito de um caso de costumes caseiros proibidos. Contudo, o assunto da Casa Pia é dos mais reveladores de um alto índice anómico que durante anos a fio perpassou em vários sectores da sociedade, com destaque para as camadas instaladas no poder, seja ele político ou mediático.
A atitude do antigo procurador geral, de paternidade reconhecida nos rebentos legais enformadores da organização judiciária, é tanto mais grave quanto desvaloriza uma inversão nessa anomia e um despertar colectivo que condena agora o que antes tolerava.
E atitude tanto mais séria que não é isolada; antes se faz acompanhar de um cortejo de agravados pelos desenvolvimentos do caso que atinge notoriamente o cerne de um certo poder político escondido a olhos profanos.
Em vez da manobra de bastidor, tudo aconselharia o sentido de Estado para além da pose de príncipe, no reconhecimento de uma evolução da consciência colectiva no sentido certo e que urge repetir no pântano da corrupção económica.
No fim de contas e apesar de todas as faenas processuais, a lição da Casa Pia é de esperança numa sociedade melhor. Como disse o actual procurador geral, hoje em dia é mais difícil abusar de crianças em Portugal. E é esse o sinal de inversão que deveria ser apoiado e não vilipendiado. Porque não há muitos mais.
O que impressiona nesta anomia, é a sua profunda penetração nas camadas do bolbo que legisla e executa orçamentos e políticas criminais.
O que todos revelam, com muito poucas excepções e todas elas escondidas, é um diagnóstico de arranhão quando à vista está uma pústula.
Todos os anos, os orçamentos são rapados de meios e cercados de dificuldades. Não há qualquer incentivo para desfazer a anomia enrodilhada e o povo apercebe-se do logro, e mantém no poder, à vez, quem tem alimentado a besta.
Os jornais bem noticiam, mas fazem-no em papel demolhado e no dia seguinte, já nem se lê. Além disso, os escândalos sucedem-se a um ritmo tal que alimentam, por sua vez, a indiferença paradoxal. Quanto mais se lê e vê tv, mais se desfaz o sentimento colectivo, acerca da utilidade em fazer alguma coisa para o bem geral.
Os sinais anómicos estendem-se por todo o lado, desde o Parlamento ao sotavento.
Há anos, um presidente da Assembleia, responsável importante pela paternidade de leis e regulamentos, aconselhou a nada fazer quanto aos deputados que viajaram à custa do erário público para lado nenhum, embolsando as tarifas. A razão para tal, disse-o o republicano laico, estava no escândalo proporcional. Todos sabiam o que se passava, desde a contabilista ao senador vitalício. Ninguém se preocupou, durante anos a fio de anomia latente e agenciada conta corrente. Foi preciso um deles dar a volta ao mundo em menos de 24 horas, para se rasgarem as vestes da indignação hipócrita e alterar o hábito paradoxal da viagem em lugar sentado e parado. A conclusão a retirar é mais um paradoxo: o incansável viajante devia ser condecorado, pelos bons serviços prestados ao país!
Agora, recentemente, um director da polícia judiciária vem declarar em privado a quem queria investigar as razões do enriquecimento sem causa de responsáveis do fisco, que a investigação dava em nada.
Adivinha-se nesta atitude, senão uma cedência a interesses obscuros, uma razão bem pior: a que advém do descrédito no que se deve fazer para cumprir um dever.
A detecção e isolamento de quem faz “inside trading” no fisco, só é possível com medidas drásticas que implicam alterações radicais nos hábitos usuais de investigação. Havia quem se dispusesse a fazê-lo e se prestasse a tal, sem pedir mais do que apoio moral. Não teve. O que conseguiu foi uma cabala de esforços conjugados para o afastamento do lugar. Por muito que os responsáveis desmintam, foi esta a verdade e é mais sintomática que todas as confissões de inoperância e lamúrias de falta de meios.
Não é demais exaltar o papel da investigadora em causa. Para quem quiser ver o caminho, para o seguir, cumprindo aliás os preceitos legais, é a atitude certa para desfazer o novelo que vai engrossando. Dê-se-lhe oportunidade e revejam-se os métodos se forem ultrajantes, mas não se corte cerce a raiz da mudança, com medo de assustar os pardais que debicam o que a todos pertence. Já há melros a mais e corvos em bandos, como fauna protegida. A caça grossa está á espera do caçador, para repor o equilíbrio do eco-sistema social.
Há uns meses atrás, um bispo do Porto atestava a inocência de uma paroquiana de Felgueiras, em caso de corrupção rosa, com saco azul à mistura.
A atitude do prelado só se compreende pela exigência cristã da caridade. A virtude suprema, que suplanta a honestidade na hierarquia de valores canónicos, diz a Igreja que começa por nós mesmos...
Contudo, a gravidade do atestado público, de báculo em riste, mostra até que ponto o cidadão pode confiar nestes valores deliquescentes e onde já vai a anomia!
Quanto à actividade de recolha de donativos para os partidos, regulada a preceito, os esquemas são de tal forma engenhosos que há uns anos atrás, figuras gradas e constitucionais recolhiam malas diplomáticas em aeroportos do Oriente, para trazer as especiarias das notas verdes, para as caldeiradas eleitorais. Sem consequências que não fossem as promoções no partido para as partidas para a Europa das comunidades e mais comendas para outros cargos de nomeação.
Os grandes empreendimentos públicos e compras de material circulante e voador, produzido por companhias em concorrência, são devidamente oleados nos seus percursos mais sinuosos e protegidos com luvas impermeáveis e invisíveis ao cidadão pagante.
Houve histórias mirabolantes de vírgulas flutuantes em diplomas de amparo. Houve pindéricos de província que encheram os bolsos ávidos e vazios, com o anúncio de que eram ministros e agora se conduzem como comendadores. Empresários de categoria básica e instrução primária que tomaram conta de clubes, depois de contabilizarem em vão de escada e pilharem galinheiros.
Riqueza fundiária que cresceu em altura por via de licenças passadas por baixo de mesas. Iguarias traficadas por influência da palavra amiga e depósitos no exterior. Subsídios para plantar árvores em milhares de hectares no Nordeste transmontano, foram sorvidos na voragem de bulldozers comprados pelo triplo do preço e as árvores definhadas pelas secas e incêndios providenciais.
Em suma, o país, em vinte anos engordou no PIB, mas enredou-se na teia de cumplicidades anómicas e alagou mais um pântano que foi mostrado por um primeiro ministro que não conseguiu drená-lo.
Que fazer?
Perante uma indiferença geral, pouco, para além dos desabafos por escrita, em jornal ou, agora, em blog.
Há quinze anos, um jornal independente lançava escândalos para a primeira página, ao ritmo semanal. Alguns, eram tão artificiais como os autores das denúncias. Mas davam azo a investigações e foi por aí que se começou a olhar para a extensão do lago pantanoso. O caminho, até agora, tem sido percorrido nessa vereda estreita e sem guia. Com resultados desanimadores e raquíticos, pois a investigação de jornal é sumária e imediata.
Invariavelmente, os visados estavam sempre inocentes e a lei processual que temos e foi delineada por dois ou três indivíduos, já aqui apontados a dedo, tem-lhes dado razão. Os processos onde se investiga anomicamente e segundo o ritmo das denúncias anónimas, aportam invariavelmente em becos sem saída, acabando por prescrever ou por garantirem a impunidade constitucional, depois de anos e anos de percursos sinuosos, delineados a régua e esquadro pelos mestres de Coimbra que muitas vezes não se coibem de venderem pareceres com interpretações autênticas. As leis processuais penais, para eles, são perfeitas e inaperfeiçoáveis, apesar da dúzia de alterações que já levam na letra. O cidadão comum não entende as regras e os resultados a que conduzem, mas para eles, leis mais perfeitas não há- em lado algum do mundo e arredores! Pudera!
Por seu turno, os investigadores de polícia do crime económico, têm sido dirigidos por amadores, escolhidos entre apaniguados arregimentados em partidos ou por amizades aleatórias, sem vocação para dirigir seja o que for que fique para além do que os olhos abarcam, em cima das secretárias onde trabalham.
Esse drama anómico ainda é o pior de todos. A juntar a uma cultura de conformismo e de penúria de meios, há o medo de perturbar demasiado as camadas superestruturais do aparelho de Estado e dos partidos adjacentes. Não se investiga o crime económico em gabinete ministerial porque isso é crime de lesa majestade. Não se investiga a complexidade dos negócios modernos, à sombra da bolsa e que envolvem milhões, porque o trabalho seria hercúlio e duvidoso no resultado.
Uma das mais penosas manifestações anómicas é a desvalorização de actos criminalmente tipificados e praticados por correligionários. Chega ao ponto da obscenidade, verificar que se produzem decisões constitucionais, de acordo com a composição do tribunal do momento e das respectivas preferências clubísticas.
E assim, até a inoperância anómica da polícia e do MP, é consensual. Por falta de meios, traduzida em especialistas financeiros e por tradição cultural.
Atraca-se o pilha galinhas que rouba por esticão e o traficante de droga de ocasião e enxameiam-se os tribunais e as cadeias com preventivos em prisão. E fica a consciência tranquila do dever cumprido.
Sempre que esta regra é quebrada e entra em jogo a cabala e o parecer do especialista penal, temos processo para anos a fio e à espera de amnistia ou prescrição.
E conseguimos um paradigma digno de terceiro mundo: temos investigadores excelentes na polícia, prontos ao trabalho e que já deram provas e ninguém para os dirigir e mostrar o caminho.
E um paradoxo: Temos um povo desconfiado dos poderes de políticos que fazem as leis e políticos desconfiados dos poderes dos polícia dessas mesmas leis!
E um resultado: ninguém se importa com ladrões de casaca e corruptos, ao ponto de os pôr a mexer do lugar que ocupam em prejuízo de todos, com o beneplácito de alguns!
Estamos, por isso, em anomia!
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