Águas de Março- Tom Jobim, 1972
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
É peroba no campo, é o nó da madeira
Caingá candeia, é o matita-pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto um desgosto, é um pouco sozinho
É um estepe, é um prego, é uma conta, é um conto
É um pingo pingando, é uma conta, é um ponto
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manha, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É um resto de mato na luz da manhã
A canção de Tom Jobim é de 1972 e a genial interpretação de Elis Regina, também.
Em Março de 1975, já nos meus últimos “teens”, ouvia música, como os “teens” de hoje. E lia. Livros, jornais e revistas- que guardei.
Em dois dias do mês, a 6 e 7, tinham tocado os Genesis, em Cascais, num pavilhão desportivo.
A imprensa da época ligou menos ao assunto do que a de agora, trinta anos passados sobre a efeméride. O Expresso, no seu suplemento ( excelente, aliás) Actual, de 5.3.05, dá-lhe quatro páginas, em que César Avó tenta explicar o fenómeno musical e o acontecimento desse mês de há trinta anos, nada parco doutros acontecimentos historicamente marcantes. A crítica musical do Expresso de há trinta anos, num quadradinho de fim de página do segundo caderno do dia 1.3.1975, intitulado Pop Corner, sem assinatura, dizia assim:
“ Nas próximas quinta e sexta feiras ( 6 e 7 de Março) o calmo meio musical português vai ser abalado por um grande acontecimento: a actuação de um importante grupo britânico em dois concertos que constituirão porventura os mais altos momentos de “rock” ao vivo no nosso país, depois dos concertos dos Procol Harum há dois anos atrás. O nome desse grupo é Génesis.” E continuava por mais umas linhas a apelar à presença nos concertos, porque “perder os Genesis é seguramente perder uma das raras oportunidades de ver um bom concerto de “rock” em Portugal.”
Mesmo ao lado da crónica, Pedro Pyrrait assinava a recensão crítica dos discos de Leonard Cohen, “New Skin for the old ceremony” , um disco single dos ELP( Emerson Lake and Palmer) e o primeiro dos Bad Company que continha “Can´t Get enough”!
Seria de esperar que na semana seguinte, viesse a reportagem com fotos e entrevista…mas quem folhear o número do Expresso de 8.3.1975, lerá muita coisa; porém, sobre música, e sobre o concerto dos Génesis, a melhor metáfora vem no fim da página VIII, sob a forma de um anúncio a um filme de Igmar Bergam: “O Silêncio” . Nem uma linha sobre o concerto que seria um “grande acontecimento”!
Silêncio que se redrobou na semana seguinte, para dar conta de “O 11 de Março passo a passo” e perguntar “ Quem armou a mão de Spínola?”, cuja resposta, ao fim de umas linhas se adivinha: “ ainda não encontrámos uma resposta cabal”! Contudo, fala-se em “ ambiente de profunda tensão, com rumores de golpes,inclusivé anunciados na imprensa estrangeira” “Nós próprios”, diz o Expresso no artigo não assinado, “alertámos através do noticiário apresentado, descrevendo as correntes divisionistas no seio das Forças Armadas. E essas divisões eram tais e tantas que conduziram ao que se viu”, escreve o Expresso então dirigido por F. Balsemão, Augusto de Carvalho e…Marcelo Rebelo de Sousa!
Quanto à imprensa estrangeira, basta dizer que o L´Express francês capeou a 1ª página da edição de 10 a 16 de Fevereiro desse ano de 75, a vermelho vivo e com uma foto severa e determinada de…Álvaro Cunhal, aureolada pela foice e martelo de um amarelo desbotado, mas luminoso! Só nesse ano essa revista e a TIme americana fizeram três capas sobre Portugal e o seu inexorável caminho para o abismo comunista. O L´Express de 24 a 30 de Março desse ano, titulava a primeira página com o título expressivo “L´Offensive communiste”, mostrando um tinteiro vermelho com tinta espalhada sobre o mapa da Europa e salpicada na parte desenhada da Itália e de Portugal! A Time de 11 de Agosto de 1975, em desenho passado a aerógrafo e emoldurado a vermelho e amarelo da foice e do martelo, mostrava as caras de Otelo, Vasco Gonçalves e Costa Gomes e apunha-lhes o título de “A troika de Lisboa-Ameaça vermelha em Portugal”. Assim, sem dúvidas!
O Expresso do dia seguinte ao último concerto dos Genesis, dedicava duas páginas a uma “mesa redonda “ sobre o “Programa Económico”onde, além dos mais, intervinha um tal Vasco Pulido Valente, que sobre “os processos revolucionários originais“ dizia: “ Num certo sentido, todos os processos revolucionários são originais. Noutro sentido, muito poucos o foram. Há só três modelos básicos. Portanto, quando se fala em originalidade é preciso saber do que se está a falar.”
Pois, o gajo já nessa altura falava assim! E tem mais umas coisas interessantes. Sobre populismo, por exemplo: “Normalmente entende-se por populismo um tipo de política que pretendendo embora alterar as relações de força de classe, o não faz. Isto é, tendo por objectivo demagógico( no sentido próprio da palavra) fortalecer as classes trabalhadoras – não vamos discutir aqui o que são classes trabalhadoras- o não faz. Não me parece que este programa esteja compreendido nesse caso. De facto, há nele, muito claramente, uma vontade de alterar as relações de força existentes neste país.”
“Neste país”, era , nessa altura, expressão de bordão, para quem se pronunciava publicamente. Neste país, isto; neste país, aquilo. No mesmo número do Expresso, em quatro páginas do 2º caderno, perguntava-se “Que Gulbenkian queremos?” onde se fala de tudo, menos daquilo que a Fundação significou para muitos anónimos frequentadores das carrinhas Citroên que por vilas e aldeias de todo o Portugal, periodicamente, emprestavam livros a quem queria: as bibliotecas itinerantes, verdadeiros e únicos agentes culturais da época e já por aqui e também por aqui, devida e notavelmente foi assinalado.
Em 1975, a Fundação editava o seu boletim informativo, já em série II começada em 1964 com um número muito interessante sobre "o Romance", com artigos sobre os antepassados, passando no séc XIX naturalista e realista e entrando no séc.XX de Proust e Joyce, com visita aos clássicos. O boletim serviu-me nesses anos como um blog avanta la lettre dedicado à cultura das humanidades. No número de 1975, começava a série III, reintitulado "democracia e cultura" e logo a abrir a pág. 3, uma imagem de crianças a espreitar para o interior de uma das carrinhas e o título: "as bibliotecas itinerantes devem ser feitas por todos". Melhor paráfrase para o colectivismo nascente não há! E a seguir, Vítor Silva Tavares fala-nos do "cravo lírico e do revolucionário" , com a imagem ícone do 25 de Abril, um cravo numa espingarda. Mais para o interior, imagens da "Dinamização Cultural", a qual doutrina que a "labuta dos soldados", não deve, "evidentemente, circunscrita ao específico da "cultura" que é onde a pretende encerrar a ideologia burguesa: há que a tornar, para que seja útil e consequente, instrumento de trabalho político".
Este trabalho, fazia-se também noutras frentes:
No número de 18 de Abril de 1975, a revista Flama, com capa dedicada à campanha eleitoral e aos partidos, epigrafada pelos símbolos da UDP e do partido de Unidade Popular, trazia uma entrevista a Vasco Gonçalves, com o título “Pretendemos, de facto, construir uma sociedade socialista” e ainda uma outra a…Jean Paul Sartre, por ocasião da sua visita ao nosso país, para “in loco, compreender a evolução social de Portugal”, no dizer de Dionísio Domingues que assina a reportagem.
Sartre, que este ano faria cem anos, diz: “ a revolução ainda não foi feita! Está em vias de se fazer!” “ As relações económicas da sociedade portuguesa continuam a ser dominadas pelo capitalismo, razão por que ainda não se vive uma situação propriamente revolucionária.” E ainda: “ Considero a revolução portuguesa o acontecimento mais importante destes últimos anos. Assistiu-se ao derrube fulgurante do fascismo com o apoio de toda a população.”
E ainda mais: “ As eleições são uma ratoeira para idiotas(…) Defendo, pelo contrário, o exercício da democracia directa, em detrimento da democracia por sufrágio universal.”
Porém, o mesmo Sartre, em Junho desse ano já só jurava pelo “socialismo libertário” e cinco anos depois, pouco antes de morrer, em entrevista por partes, ao Nouvel Observateur, publicada entre nós pelo desaparecido O Jornal, abjurou completamente.
Assim, em Março de 1975, muita gente meteu água…
A capa da revista Vida Mundial datada de 13.3.1975, era sobre os liceus, assoberbados por RGA´s e pichagens nas paredes com símbolos da FREP, da UEC e da CLEP, tendo o MEC ( ministério, entenda-se) como bode expiatório da falta de “ alternativa para a reforma Veiga Simão”, em nome dos 70 mil professores e um milhão e meio de alunos então no activo!
Como a capa estaria nessa data, já feita, a direcção da revista, sob a batuta de Augusto Abelaira embandeirou uma sobre-capa a branco e vermelho e titulada: “11 de Março- A reacção atirou a matar”.
A Reacção! Esta palavra entrou no léxico dos meses e anos vindouros. E os artigos encomiásticos aos revolucionários, eram assinados por Afonso Praça, Fernando Antunes, M.A.P. ( Maria Antónia Palla?), Miguel Serras Pereira e Fernando Dil, alguns deles (AP e FA) a integrarem no futuro próximo do seguinte mês de Maio o novel O Jornal, um jornal de jornalistas que não guardava notícias na gaveta, dirigido por José Carlos Vasconcelos e em cujo nº1, dava direito de livre expressão a um figurão da época: Rosa Coutinho, o almirante vermelho, dizia logo na segunda página que “Nem democracia-cristã nem social-democracia” enquanto nas páginas centrais de dava um panorama alargado do significado nacional e mundial do 1º de Maio, encapado num cartoon( magnífico, aliás) de João Abel Manta sobre a efeméride e com um Marx benevolente a observar por detrás de uma nuvem no céu(!), as tremendas manifestações populares, cá em baixo, ao mesmo tempo que o seu chapéu de coco, servia de base de apoio aos helicópteros do MFA que fustigavam, a metralha, alguns porcos com asas e cifrões nas costas, numa metáfora alegre do capital em fuga.
Na mesma revista de 6.2.1975, assinado por Afonso Praça ( já falecido), vinha um artigo sobre o arcebispo de Braga, que concluía assim:
“ Compreende-se assim que em Braga não haja diálogo, que em Braga não se viva o Vaticano II e que a descristianização seja progressiva. E se alguns destes problemas dizem respeito essencialmente à Igreja Católica e aos católicos, também é verdade que a situação criada tem repercussões na sociedade civil, agora num processo de democratização que não pode parar.” Que processo era esse?! Todos o sabem já: o PREC!
Assim, que poderia fazer um teenager pré-esclarecido destas andanças, nessa época de brasas a saltitar todos as semanas para os jornais? Sim, que poderia fazer se não estivesse virado para os lados desse PREC de MRPP´s, PCP´s ml, FEC-ml,UDP, LCI, FSP, MES e PCP estivesse à espera de um serviço cívico para ingressar numa qualquer faculdade ?!
Pois, poderia projectar um futuro na comunicação escrita ou desenhada e “cristalizar através de “flashes”, “tranches de vie”, uma visão não necessariamente subjectiva, em que transpareça por vezes o ridículo das situações, o fanatismo, a honestidade de actuação também, a ingenuidade, a hipocrisia reinante em todos os sectores de actividade . Estilo de resportagem tipo “Z” com incidência na desmistificação. Basear-se em fotografias por vezes. Não apenas contar uma história com estrutura própria mas sobretudo conseguir pistas possíveis para várias histórias. Textos cuidados. O texto deve prevalecer sobre a imagem, mas a imagem no caso de bem conseguida, deve aglutinar o interesse e procurar jogo constante entre estes dois aspectos: texto-imagem”. Foi esse o propósito escrito por um tal José Miguel, adolescente anónimo, em 17 de Março 1975, numa máquina de escrever da Messa e para além desse propósito piedoso ainda poderia … ouvir música na rádio!
A rádio desses anos parecia à procura de um modelo formatado e sem roteiro, tornara-se num local de encontro de quem queria conhecer as novidades na música. Alguns programas, muito poucos, eram um portento de imaginação e diversidade. Não havia play lists; alguns programas passavam álbuns integrais de música que não se ouvia por estas bandas e gravavam-se sonoridades em cassettes com marcas da BASF.
Uma das fontes das águas límpidas de Março era o programa Página 1, da Rádio Renascença que fechou em 19 de Fevereiro de 75, por força do PREC e das lutas dos trabalhadores da rádio contra o Patriarcado proprietário, em greve que durou até 5 de Abril. Com o silêncio do melhor programa de música popular na rádio portuguesa da época, mesmo apresentado por Artur Albarran, acabaram as audições atentas e veneradas, das 7 e meia às nove da noite que foram desviadas para outros programas também interessantes, em formato de 2 Pontos e Espaço 2P, animados pelos Jaimes Fernandes e Lopes, Fernando Balsinha e depois João David Nunes e Nuno Martins.
Ficou assim irremediavelmente prejudicada a audição de discos novos vindos de Inglaterra, de França e doutros sítios. Nunca mais se ouviram os Snafu ou os Splinter; Johnny Nash ou Jonathan Edwards e quanto a Maxime le Forestier só há alguns anos recoligi os LP´s e voltei a ouvir Mai 68…e quanto aos brasileiros do Quinteto Violado, ainda estou para descobrir o Lp A Feira, com A matança do porco. Em compensação, continua a ser um regalo a audição de José Afonso no Coro dos Tribunais; de Fausto P´ro Que der e vier e do Sérgio Godinho de À Queima-Roupa. Os temas faziam coro e davam o mote para outros Operários em Construção da Revolução.
Mesmo assim, na classificação de gostos hierarquizados da altura, influenciado pelas audições da Página 1, os Genesis contavam pouco e abaixo dos Roxy Music de Country Life, saído alguns meses antes; dos Sparks de Propaganda; dos Man de Slow Motion e dos Rolling Stones de It´s only rock n´roll.e sõ não incluo o LP Blood on the Tracks de Bob Dylan porque o ouvi nessa estação e nesse programa, pela primeira vez, em 18.2.1975, precisamente um dia antes do silêncio.
Os trabalhadores da revista FLAMA de 7 de Março desse ano, dirigida por António dos Reis , Edite Soeiro, e outros, exprimiram em telegrama “ aos camaradas Rádio Renascença solidariedade justa luta travada contra prepotências entidade patronal certos que firmeza trabalhadores defesa intransigente seus direitos conduzirá vitória final.”
Assim, foi numa frequência mais ao lado, no rádio Clube Português, prestes a passar.a rádio Comercial, -nacionalizado, nosso – que se puderam ouvir em repetidas audições, os acordes do LP The Lamb lies Down on Broadway dos Genesis.
Lembro bem a primeira vez- como se fosse hoje! Foi algum tempo antes de Março e o convidado de um programa, João Filipe Barbosa ( que será feito dele?!) anunciou uma novidade e pôs o disco a tocar, perguntando misteriosamente aos ouvintes se seriam capazes de adivinhar de que grupo se tratava.
Ao ouvir os primeiros compassos do piano em crescendo galopante, atirei a resposta para mim próprio, numa perspicácia auto-indulgente, de leitor assíduo, há já alguns meses, da Rock & Folk francesa: Genesis! O novo disco! E era. Foi assim que encontrei pela primeira vez os sons dos subterrâneos Carpet crawlers; da misteriosa Lilywhite Lily; e da ainda mais temível Lamia, em tudo diferentes da anterior cantarolice do grupo, I Know what i like que vinha dos tempos do liceu.
No dia 14 de Fevereiro de 75, na Página 1, o mesmo João Filipe Barbosa, na época uma espécie de consultor erudito da música popular publicada, esteve no programa, em debate alargado sobre os próximos concertos dos Genesis e aí passou inevitavelmente a então obra prima do grupo, muito falada e pouco escutada, Supper´s Ready ou a faixa de abertura folk de Selling England by the Pound- Dancing with the moonlight mile.
Nesse tempo, a boa música pop era escutada e debatida em programas de rádio, como se debateria a Sinfonia do Novo Mundo de Dvorak. Os Joões Filipes Barbosas, em dia de rei fazer anos, prendavam o auditório sequioso de novas sonoridades, com as suas cópias exclusivas dos LP´s mais procurados nas revistas da especialidade e a audição era de recolhimento religioso em auscultadores. Foi assim que por cá se divulgou obra antiga dos Grateful Dead ou do Captain Beefheart ou mesmo dos Derek and the Dominoes da celebrada Layla de 1970.
Era nesta penúria de bens musicais de qualidade escassa que a rádio se aguentava e os ouvintes sofriam. Em 1975 tinha passado já à história da música popular, todo o acervo fundamental dos ritmos e acordes produzidos pelos melhores autores e intérpretes de expressão anglo-saxónica. Em Portugal, poucos programas de rádio os divulgaram e por isso a excepção tornava-se acontecimento e um deles chamava-se Em Órbita, apresentado por um improvável Pedro Castelo e realizado por um tímido Jorge Gil de quem se diz possuir a gravação integral desse espólio fabuloso da segunda metade dos anos sessenta. Em 1975 o programa já não existia para passar novidades da música popular, mas sim andamentos da erudita.
Essa penúria passava ainda para a imprensa escrita, especializada nas sonoridades e fenómenos da pop.
Em Novembro de 1970 a revista Mundo da Canção, publicada mensalmente, com origem no Porto e distribuída pela Livraria Bertrand, alcançava um ano de vida e para comemorar a efeméride apresentava pela primeira vez a capa a cores.
Outro veículo da música popular, na imprensa portuguesa, era o jornal quinzenal, Disco, publicado em Lisboa e surgido no início do ano de 1971, dirigido por A. de Carvalho e que indicava como “serviço internacional”, a informação obtida nos jornais ingleses Melody Maker, New Musical Express e Disc music & echo, dos quais reproduzia artigos inteiros e a lista de êxitos na música pop na Inglaterra e EUA, geralmente o top 10.
Para dar uma ideia do ar do tempo de uma certa inteligentsia, em Portugal, relativamente à musica popular, cita-se uma parte do artigo de Tito Lívio publicado no número de 15 .4.1971, desse jornal Disco , intitulado ` Algumas considerações sobre a nova canção portuguesa´ : “Até há pouco, a nossa música ligeira era uma amostra cabal de uma indigência poética aflitiva. Música desenraizada para distracção de um público mal (in)formado. Público passivo que não sabia e não podia ( por ausência de educação musical de base que lhe permitisse optar lucidamente) distinguir o bom do mau. Que consumia Calvário e Madalena Iglésias e outros quejandos, fazendo deles “ prato forte” dos programas de discos pedidos, estilo “ Quando o telefone toca”. O tema das suas canções era o amor, mas um amor piegas, cor- de- rosa, deturpado, gasto e cansado. Amor com forma de foto-novela, indo assim, de encontro aos gostos ( não educados e evoluídos) de um predominante sector de público.
De repente apareceu quem cantasse algo diferente. Quem remasse contra a banalidade confrangedora do luso-cançonetismo vigente. “Movimento” que teve os seus chefes de fila em José Afonso, Luís Cília, Nuno Filipe, Daniel e Adriano Correia de Oliveira. Simultaneamente, novos compositores de valia têm surgido ( embora aqui o progresso seja bastante mais lento). Pedro Jordão, Fernando Tordo, Fernando Guerra, José Cid, Luís Miguel de Oliveira, Jaime Queimado, Luís Rego, entre outros, sem esquecer autores- ntérpretes como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Luís Cília, Esnesto César, Rita Olivaes, Hugo Maia de Loureiro, Intróito e Nuno Filipe.”
Era este o tom geral da crítica à musica ligeira portuguesa mais popular e os respectivos artistas, apesar de venderem discos e participarem em espectáculos integrados em festas populares e romarias , não só não encontravam lugar para se promoverem nesses jornais, como o Disco, ou a Mundo da Canção, como eram sistematicamente menosprezados e ridicularizados pela inteligentsia crítica dominante. Nomes como Marco Paulo, Trio Odemira, Conjunto de Maria Albertina, Madalena Iglésias, Conjunto António Mafra, e muitos outros, não tinham lugar no firmamento da crítica bem pensante, por não terem a “qualidade” artística adequada.
Porém, a sua música passava com facilidade nos canais de rádio e dominava o mercado.
Esse mercado musical em Portugal, nessa altura, foi analisado numa entrevista à revista Flama de 30.7.1971, por Carlos Cruz que dizia : “ O mercado musical no nosso país deve ser o mais estranho do mundo. Existe uma camada que continua a aderir a uma música fácil, sem o mínimo interesse. Depois, há uma camada que se situa no meio termo, que já não adere facilmente a essa música chamada nacional-cançonetismo , como diz o João Paulo Guerra, mas que ainda não se libertou totalmente duma percentagem de gosto fácil. Esta segunda camada tem vontade de se libertar. Para tanto é necessário que a produção que se dirige à terceira camada, a mais exigente, seja desenvolvida. Em termos de música, o caminho a seguir seria este: tentar acabar, a pouco e pouco, com a música fácil, fazer ver às pessoas que lhe aderem que a música é uma coisa maravilhosa e que elas concluiriam através de uma produção de qualidade "
A música popular de qualidade, na televisão, restringia-se nesses anos e até pelo menos a 1973, a alguns programas de variedades, sem correspondência com o que passava na rádio. Só em 1973, com o programa quinzenal Disco & Daquilo, na RTP, ainda da responsabilidade de Carlos Cruz, Dinis de Abreu e Luís Vilas Boas , se começou a dar alguma atenção aos então chamados telediscos e spots publicitários produzidos pelas editoras e com incidência na música popular , o rock e o jazz.
No mundo editorial, dirigida aos jovens, publicava-se ainda, sob a égide da editora Agência Portuguesa de Revistas, a revista Mundo Moderno, com muita ilustração fotográfica, em tons monocromáticos , é certo, mas com preocupação em arrumar graficamente os artigos, de forma diferente do simples texto em colunas, inserido entre fotografias e ilustrações, com tipos de letra e paginação inovadores e destaque para os espectáculos de vário tipo, desde o teatro de revista e fotografias de coristas e modelos, até letras de canções de música ligeira; artigos e reportagens sobre cinema , moda e outras manifestações no âmbito da cultura popular.
Na televisão,antes de 1970 já tinha ocorrido um fenómeno cultural , com um programa chamado ZIP ZIP, apresentado por três entertainers que se afirmaram profissionalmente nos anos seguintes : Carlos Cruz, Raul Solnado e Fialho Gouveia .
O programa, apresentado em Maio de 1969, até ao fim desse ano, num teatro de Lisboa , o teatro Villaret, misturava pequenos sketches humorísticos e apresentações musicais com entrevistas a personalidades de relevo na cultura nacional ( por exemplo ,Almada Negreiros) e apesar do ambiente cultural e politicamente fechado em que se vivia em Portugal nessa altura, teve um êxito retumbante e marcou a maneira de fazer esse tipo de programas de modo a que os seguintes forçosamente teriam que se lhe referir.
Entre as manifestações culturais e espectáculos populares, dava-se muita importância à volta a Portugal em bicicleta e ao ciclismo; ao rali de Portugal vinho do Porto; às touradas e a algumas séries estrangeira de televisão, como o Daktari, o Casei com uma Feiticeira, o Olho vivo e acima de tudo ao festival da canção.
A televisão assumira uma relevância cultural importante, de modo que se tornou também veículo de promoção de produtos culturais como sejam livros, neste caso de bolso e de parceria com uma editora, a Verbo.
Os livros, lançados a partir do ano de 1970, constituíam uma colecção de obras de diversos autores nacionais e estrangeiros, pretendendo ser uma biblioteca básica a que se deu o nome comercial de livros RTP. Na campanha de promoção, introduziu-se um logotipo( a letra grega omega, achatada, e duplicada em espelho) , grafismo e apresentação uniformes, variando apenas as cores do logotipo, tudo servido a grandes doses – para o tempo - de publicidade, com saída semanal, distribuição nacional, em quiosques e a preço reduzido ( 15$00) e que transformaram a colecção em sucesso imediato, que inspirou outro editor no ano seguinte a publicar uma outra colecção de livros de bolso a que chamou ...livros de bolso Europa América , cuja colecção atingiu algumas centenas de títulos, ao longo de vários anos e que se revelou outro sucesso editorial.
Em 1970, as artes gráficas já estavam suficientemente desenvolvidas em Portugal para que qualquer revista de actualidades apresentasse, pelo menos a capa e as páginas de publicidade, em quadricomia, como era o caso da Flama e do Século Ilustrado, nessa altura as principais revista desse género. Porém, só em 1971, a mesma Flama escrevia em editorial : “ A partir deste número, a Flama surge com um novo rosto – totalmente impressa em offset e composta pelo mais moderno processo electrónico a frio.”
Comparando com o que se passava no estrangeiro, nomeadamente na Europa e EUA, a Life , a Look, a Paris Match, a Stern, a Epoca, mesmo no Brasil, a Manchete e a Cruzeiro, tinham evidentemente outra qualidade gráfica e de conteúdo, mas ainda não tinha chegado o tempo do papel couché generalizado e da profusão da quadricomia e por isso as revistas nacionais, nesse aspecto, não se diferenciavam muito daquelas, até porque alguns dos artigos e reportagens eram publicados originariamente nessas revistas ou provinham das agências como a Gamma ou a Dias da Silva. A Paris Match, por exemplo, já no ano de 1965, publicava a revista com centena e meia de páginas, com algumas a cores e com profusão de publicidade, também geralmente a cores.
Em 1971 surgiu, logo no início do ano, uma revista semanal de actualidades, em formato de newsmagazine, com uma apresentação gráfica cuidada e que se intitulou Observador, e que logo nos primeiros números procurou tratar temas tão diversos como a olivicultura, o problema dos judeus da Palestina ( nº4) e a emancipação da mulher e a barragem de Vilarinho da Furnas que iria submergir a aldeia do mesmo nome ( nº6). A revista assumiu assim um papel inovador no panorama da imprensa portuguesa da época.
Além dessas revistas, outras mais especializadas existiam. Uma delas, a Nova Antena, dirigida por João Coito, dedicava-se à televisão, rádio e actualidade e no número de 7.8.1970, aquando da morte de Salazar, escrevia em editorial aquilo que Marcelo Caetano dissera do mesmo, ou seja um panegírico que destacava as virtudes do “grande governante” e “grande português” e que o mesmo deixara o país “ ordenado, unido, consciente, seguro dos seus objectivos e com capacidade para os atingir.”
Na mesma área, da rádio e televisão, publicava-se ainda a revista Rádio & Televisão, com a tiragem de 30 mil exemplares e que publicava em suplemento a programação semanal dos dois canais de televisão, bem como a apreciação sumária dos programas com maior destaque do dia. Publicava ainda a programação das três estações de rádio mais importantes do país, a Emisora Nacional, o Rádio Clube Português e a Rádio Renascença.
( continua)
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