É corrente, no pensamento jurídico, designar-se como burla de etiquetas, em sentido figurado, a justificação de uma solução utilizando um conceito legítimo mas inadequado. No recente debate sobre a criminalização do enriquecimento injustificado, estar-se-á a praticar a burla de etiquetas quando se justifica a solução dizendo que ela corresponde, afinal, à consagração de um crime de perigo abstracto e que um crime dessa natureza não é inconstitucional.
Na verdade, num crime de perigo abstracto o perigo de lesar um bem como a vida, a integridade física ou outro de relevante valor é apenas o motivo da incriminação e não necessita de ser provado no processo. Por exemplo, a condução em estado de embriaguez corresponde a um crime de perigo abstracto, porque não há necessidade de provar o perigo efectivo para os outros automobilistas ou peões – o perigo associado a tal conduta é tão normal e elevado que se presume.
O chamado enriquecimento injustificado não tem a estrutura de crime de perigo abstracto. Com efeito, não estamos aí perante o perigo de corrupção porque o enriquecimento é posterior à eventual actuação do corruptor e do corrompido. Não há, pois, qualquer perigo mas as consequências de um presumível dano. Assim, o que fundamenta a incriminação não é o perigo de corrupção mas sim a dificuldade de provar a corrupção – ou outro crime aparentado.
Se o enriquecimento injustificado pudesse ser caracterizado como um crime de perigo abstracto, chegar-se-ia ao extremo, para se ser coerente, de presumir a corrupção e nem sequer admitir prova em contrário. Na verdade, é isso mesmo que acontece num crime de perigo abstracto. É claro que nenhum tribunal consideraria admissível que alguém provasse, para conseguir a absolvição, que ao conduzir embriagado não colocou em perigo qualquer bem.
Este é, sem dúvida, um assunto muito árido. Mas os juristas têm o dever de não ultrapassar as dúvidas sérias sobre a constitucionalidade, através de um conceito mal aplicado. Ao presumir a corrupção, estaremos a violar a presunção de inocência e a inverter o ónus da prova. E o problema não se resolve classificando a chita como seda, ou seja, trocando as etiquetas. Desse modo, a criminalização do enriquecimento injustificado não deixaria de ser inconstitucional.
A não inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstracto, em que se dispensa a prova judicial do perigo pela acusação, depende sempre da importância dos bens protegidos e da elevada probabilidade de a conduta incriminada criar um perigo para esses bens. A utilização (abusiva) do Direito Penal para resolver problemas de funcionamento do sistema, esquecendo exigências de Justiça, é sempre um caminho perigoso – mesmo que pareça a solução mais fácil.
Na verdade, num crime de perigo abstracto o perigo de lesar um bem como a vida, a integridade física ou outro de relevante valor é apenas o motivo da incriminação e não necessita de ser provado no processo. Por exemplo, a condução em estado de embriaguez corresponde a um crime de perigo abstracto, porque não há necessidade de provar o perigo efectivo para os outros automobilistas ou peões – o perigo associado a tal conduta é tão normal e elevado que se presume.
O chamado enriquecimento injustificado não tem a estrutura de crime de perigo abstracto. Com efeito, não estamos aí perante o perigo de corrupção porque o enriquecimento é posterior à eventual actuação do corruptor e do corrompido. Não há, pois, qualquer perigo mas as consequências de um presumível dano. Assim, o que fundamenta a incriminação não é o perigo de corrupção mas sim a dificuldade de provar a corrupção – ou outro crime aparentado.
Se o enriquecimento injustificado pudesse ser caracterizado como um crime de perigo abstracto, chegar-se-ia ao extremo, para se ser coerente, de presumir a corrupção e nem sequer admitir prova em contrário. Na verdade, é isso mesmo que acontece num crime de perigo abstracto. É claro que nenhum tribunal consideraria admissível que alguém provasse, para conseguir a absolvição, que ao conduzir embriagado não colocou em perigo qualquer bem.
Este é, sem dúvida, um assunto muito árido. Mas os juristas têm o dever de não ultrapassar as dúvidas sérias sobre a constitucionalidade, através de um conceito mal aplicado. Ao presumir a corrupção, estaremos a violar a presunção de inocência e a inverter o ónus da prova. E o problema não se resolve classificando a chita como seda, ou seja, trocando as etiquetas. Desse modo, a criminalização do enriquecimento injustificado não deixaria de ser inconstitucional.
A não inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstracto, em que se dispensa a prova judicial do perigo pela acusação, depende sempre da importância dos bens protegidos e da elevada probabilidade de a conduta incriminada criar um perigo para esses bens. A utilização (abusiva) do Direito Penal para resolver problemas de funcionamento do sistema, esquecendo exigências de Justiça, é sempre um caminho perigoso – mesmo que pareça a solução mais fácil.
Esse escrito destina-se exclusivamente a impedir teoricamente, um projecto de lei que vem da oposição ao Governo que está e que diz assim, reformando mais uma vez o Código Penal, nessa parte e ainda legislação avulsa sobre a matéria:
“Artigo 386º
(Enriquecimento ilícito)
O funcionário que, durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, adquirir um património ou um modo de vida que sejam manifestamente desproporcionais ao seu rendimento e que não resultem de outro meio de aquisição lícito, com perigo de aquele património ou modo de vida provir de vantagens obtidas pela prática de crimes cometidos no exercício de funções públicas, é punível com pena de prisão até 5 anos.
Para efeitos do número anterior entende-se por património todo o activo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, acções ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias a prazo, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito.
Para efeitos do n.º 1 entende-se por modo de vida todos os gastos com bens de consumo ou com liberalidades realizados no país ou no estrangeiro.
Para efeitos do n.º 1 entende-se por rendimento todos os rendimentos brutos constantes da declaração apresentada para efeitos da liquidação do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, ou que da mesma, quando dispensada, devessem constar.”
Fernanda Palma acha que "o chamado enriquecimento injustificado não tem a estrutura de crime de perigo abstracto". Porque, diz a mesma, "Com efeito, não estamos aí perante o perigo de corrupção porque o enriquecimento é posterior à eventual actuação do corruptor e do corrompido. Não há, pois, qualquer perigo mas as consequências de um presumível dano. Assim, o que fundamenta a incriminação não é o perigo de corrupção mas sim a dificuldade de provar a corrupção – ou outro crime aparentado. "
É habilidosa esta ligação da corrupção ao enriquecimento injustificado. Nota-se logo na muda da palavra "ilícito", para "injustificado", a fim do o acantonar sempre à corrupção, como crime. E ainda mais habilidosa a omissão de referência aos demais elementos do novo crime, designadamente os actos concretos, praticados pelo agente concreto, nas circunstâncias concretas que definem o crime concreto e nada abstracto.
Depois, toma por assente que o enriquecimento é sempre posterior a esses actos ilicitos de corrupção quando pode muito bem acontecer que até seja anterior.
Na moderna engenharia financeira, há gente a vender cabritos como futuros para as cabras que os hão-de parir ou até gerar.
O que interessa a Fernanda Palma em mais este escrito de salvaguarda da posição dominante do Governo em matéria legislativa ( por força da maioria absoluta de que dispõe e que tudo aconselha a que seja retirada a qualquer governo) é retirar a legitimidade teórica a uma construção deste tipo.
E vai daí, entra no campo que melhor domina: o da dogmática jurídico-penal. E pelos vistos, política, o que era escusado de todo. Para isso, já temos o Vital Moreira, com o resultado à vista e o interesse ilhargueiro.
Discute, por isso, a matéria "árida" dos crimes de perigo abstracto do modo que se lê no artigo em causa.
Nestes crimes, o perigo do que o agente faz não se individualiza em qualquer bem concreto ou mesmo vítima definida. Por isso se diz que a produção do perigo é independente do tipo de crime. Não é seu elemento. O perigo, nestes casos, é apenas a motivação do legislador para definir o tipo.
Porém, para entender esta matéria, é preciso saber o que são crimes de perigo: aqueles que não precisam de uma lesão efectiva de bens ou interesses, sendo suficiente a possibilidade de ocorrência de um dano, o tal perigo que o mesmo se produza. Ainda se subdividem estes crimes nos de perigo concreto e abstracto.
Os de perigo concreto precisam da ocorrência efectiva do perigo e os de perigo abstracto nem disso necessitam, bastando-se com a presunção dessa eventualidade, derivada da conduta que o potencia ou gera.
Quem domina bem estas matérias "áridas" do Direito Penal, são os teóricos de Coimbra, naturalmente. Faria Costa, por exemplo e que se move nas mesmas águas políticas, segundo se depreende.
Para além disso e para complicar ainda mais, os teóricos do direito penal deram em acrescentar mais uma subdivisão aos crimes de perigo e que Fernanda Palma não fala no seu escrito sumário: os crimes de perigo abstracto-concreto. Ou seja, aqueles em que por ausência demonstrada do perigo, deixa de existir crime.
Serão esses os casos em análise, no meu ver modesto e diletante: os actos que se ligam ao enriquecimento estão na área do perigo ( praticados nas funções públicas), admitindo-se que essa previsão de perigo se afaste com a demonstração de que não foram susceptíveis de o provocar.
É claro que esta presunção de perigo como factor externo de incriminação é perigoso, em si, porque alarga o âmbito de aplicação das normas penais, a limites que podem contender com princípios básicos do direito penal. Mas também é verdade que para grandes males é preciso grandes remédios - e é esse o caso. O enriquecimento ilícito deve ser criminalizado a par de outros ilícitos que atentam contra a transparência democrática e o bom funcionamento das instituições.
Para perceber melhor o fenómeno, basta ver quem se manifesta contra. Ver, reparar em concreto, no perigo que essas pessoas representam para os bens públicos que gerem e administram, quase sem controlo, em boa parte dos casos.
Seja como for, o que se nota no escrito de Fernanda Palma é que esta não quer esse remédio por motivos que escapam ao curioso.
E este é que é o perigo: o de termos professores catedráticos de Direito Penal intimamente ligados ao Executivo e afectivamente relacionados com os seus agentes mais importantes.
Aqui, neste caso, correndo objectiva e perigosamente, o risco de se postarem ao lado da delinquência de alto coturno .
Ora bolas.
Meus senhores:
ResponderEliminarO máximo a que consegui chegar - e mal -, foi a John Rawls. E, mesmo esse, foi quando os animais falavam.
Ainda assim, se percebi bem, a Prof. Dra Fernanda Palma estaria a a teorizar acerca d estrutura de um projecto legislativo, laborando num conveniente paralogismo, para não escrever sofisma. Entendi, bem?
Por favor, respondam porque estas coisas de Direito fazem todas parte da minha ignorância!
Para mim é mesmo um sofisma: querer fazer passar por princípio inultrapassável o que é simplesmente um artifício legal. Mais um.
ResponderEliminarTalvez fosse melhor mandar essa gente para reeducação pelo trabalho e obrigados a lerem Evgeni Pachukanis
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