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quinta-feira, agosto 05, 2010

A negação da autonomia?

Este postal de Artur Costa ( incidentalmente conselheiro do STJ) no Sine Die, suscita várias questões importantes, a meu ver:

Tive, por opção, uma vida longa no Ministério Público, só interrompida por um curto período na judicatura, até que concorri ao Supremo Tribunal de Justiça.
Conheci vários procuradores-gerais da República: Pinheiro Farinha, Arala Chaves, Cunha Rodrigues, Souto Moura, este agora meu colega no STJ. Pinheiro Farinha foi o magistrado escolhido para fazer a transição da ditadura para a democracia. Arala Chaves foi o que estabeleceu a transição do velho para o novo Ministério Público, em que este foi dotado de um estatuto que lhe conferiu as características de uma carreira própria, independente da magistratura judicial e servida por quadros próprios.
Cunha Rodrigues foi não só o continuador da obra começada por Arala Chaves, como aquele procurador-geral sob cujo “consulado” foi conferida ao Ministério Público a sua estrutura actual, dotando-se esta magistratura de verdadeira autonomia em face do poder político, a qual só veio a ter consagração constitucional na revisão de 1989. Claro que nisso jogaram papel importante várias forças (políticas: PS, PSD, PCP e outras; jurídicas, onde campearam juristas e constitucionalistas de vários quadrantes; sindicais, sobretudo o sindicato do Ministério Público).
Souto Moura deu continuidade à estrutura herdada do antecedente procurador-geral da República.
Nenhum destes procuradores-gerais se sentiu mal com os poderes que tinha; nenhum deles se sentiu impedido ou peado para os exercer, através dos canais próprios da hierarquia, que nunca foi tolhida no exercício das suas competências. Mais: todos eles conviveram com o Sindicato do Ministério Público, muito embora fossem equidistantes dele e não se impedissem de o criticar (a este título, foi paradigmática a atitude de Cunha Rodrigues). Isto mesmo em épocas mais conturbadas politicamente e de mais forte pendor ideológico do Sindicato.
Se há uma crise actual no Ministério Público, estou certo que ela não se deve apenas à actuação em “roda livre” dos seus magistrados (acusação antiquíssima de muitos detractores do Ministério Público), ou, pior, à sua “indisciplina” e “insubordinação”; deve-se também à falta de exercício das competências da hierarquia. O apelo ao acréscimo de poder de autoridade não passa, talvez, de uma máscara para essa insuficiência.
Quando passei pelo Ministério Público, um qualquer caso relevante, como o “Freeport” (ainda para mais tão mediático) não se desenrolava à margem da hierarquia. Os magistrados encarregados do caso eram “fatalmente” orientados, supervisionados e estreitamente acompanhados pelos superiores hierárquicos. Nenhum passo era dado sem que eles o soubessem ou do qual não fossem informados. E o procurador-geral não era alheio a esse controle. Um despacho final num quejando processo não podia colher de surpresa a hierarquia. A menos que um grave desfasamento afectasse o relacionamento de um tal ou qual magistrado com a estrutura hierárquica. A autonomia do Ministério Público não era idónea para justificar situações dessas.


O último período, sublinhado a negrito, suscita de facto a interrogação sobre o modelo de autonomia real que o MP tem ou tinha, no caso, no distrito judicial do Porto onde Artur Costa foi procurador-geral adjunto durante anos.
Não me parece que o recorte legal sobre a intervenção hierárquica no MP, face à disposição legal do Estatuto, mormente o artº 79 no que se refere aos limites dos poderes directivos dos superiores hierárquicos, comporte uma interpretação informal como a que resulta do escrito:
1 - Os magistrados do Ministério Público podem solicitar ao superior hierárquico que a ordem ou instrução sejam emitidas por escrito, devendo sempre sê-lo por esta forma quando se destine a produzir efeitos em processo determinado.
2 - Os magistrados do Ministério Público devem recusar o cumprimento de directivas, ordens e instruções ilegais e podem recusá-lo com fundamento em grave violação da sua consciência jurídica.
3 - A recusa faz-se por escrito, precedendo representação das razões invocadas.
4 - No caso previsto nos números anteriores, o magistrado que tiver emitido a directiva, ordem ou instrução pode avocar o procedimento ou distribuí-lo a outro magistrado.
5 - Não podem ser objecto de recusa:
a) As decisões proferidas por via hierárquica nos termos da lei de processo;
b) As directivas, ordens e instruções emitidas pelo Procurador-Geral da República, salvo com fundamento em ilegalidade.
6 - O exercício injustificado da faculdade de recusa constitui falta disciplinar.

Segundo Artur Costa, no seu tempo ( no tempo dos PGD ´s Herculano Lima e Arménio Sottomaior, entenda-se) os problemas hierárquicos, se existiam eram afinados pessoalmente através de uma atitude voluntarista em que "Os magistrados encarregados do caso eram “fatalmente” orientados, supervisionados e estreitamente acompanhados pelos superiores hierárquicos. Nenhum passo era dado sem que eles o soubessem ou do qual não fossem informados. E o procurador-geral não era alheio a esse controle. Um despacho final num quejando processo não podia colher de surpresa a hierarquia."

Não entendo e gostaria que Artur Costa explicasse se este modelo informal de autonomia é preferível ao legal e existente no Estatuto. Uma coisa é o voluntarismo e até paternalismo em assuntos de carreiras e hierarquias de lugares. Outra, bem diferente é essa atitude aplicada aos processos que devem ser investigados pelos magistrados com plena autonomia nos termos da lei de processo e estatutária. E não me parece que o escrito de Artur Costa reflicta essa perspectiva.

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