Publica-se aqui um tema já publicado noutro blog ( lojadeesquina), em 2007. Em tempo de férias, dá tempo para ler.
Os magistrados, maxime os juízes, administram a justiça em nome de quê e de quem?
A
seguir, transcreve-se um artigo publicado numa colectânea de
comunicações apresentadas no Colóquio internacional "modelos de Formação
e Carreiras Judiciárias", promovido pelo SMMP, em 2 e 3 de Outubro
2003.
José Joaquim Gomes Canotilho
Professor Catedrático da Faculdade
de Direito de Coimbra
§ 1° - As provocações não formam magistrados
O
modo provocatório como prólogo de livros e colóquios parece estar in...
Nada mais fácil neste Colóquio Internacional sobre Modelos de Formação e
Carreiras Judiciárias do que estar na moda começando por palavras
ásperas. Iremos ver que é preciso navegar para além das criticas e
provocações.
Num recentíssimo artigo publicado na revista italiana
Studium luris (revista dedicada às formações jurídicas), Giorgio
Spangher (') começava assim:
"Affrontando recentemente i temi delia
crisi delia giustizia penale è stato affermato che il piú basso livello
di fiducia si registra in quei Paesi che presentano magistrature di tipo
napoleonico, cioè con magistrati reclutati in giovane età, senza
precendenti esperienze professionali, una forte separazione fra le
professioni legali, un rapporto difficile con Ia política e, di recente,
1' istituzione di organi di auto-governo e una forte sindicalizzazione.
È quindi evidente che questo modello di magistratura, che fino a oggi è
prevalsa in Italia, è in crisi e non risponde alle ricl dei propri
cittadini" (Guarnieri, Prima i giudici, poi le leggi, in Il 22 Ore,
6.1.2003).
Alguns anos antes, um outro autor - Alain Minc - num
livro i conhecido (2) fazia afirmações ainda mais provocadoras quanto à
formação de juízes.
"Os juízes são formados como os militares; são
recrutados após o termo dos estudos e colocados numa caserna onde são
formados por outros juízes como os militares são formados por outros
militares”
Dentro dos quadrantes culturais portugueses, o Autor que,
de forma mais incisiva, se pronunciou relativamente à formação e
recrutar de magistrados foi Paulo Rangel. No livro intitulado Repensar o
1 Judicial (3) analisa o arquétipo de "juiz funcionário" que reconduz
aos seguintes traços:
(1) integração orgânica no aparelho administrativo e burocrál
(2) recrutamento com base exclusivamente técnica;
(3) socialização profissional dentro da máquina judicial;
(4) ordenação interna hierarquizada, com carreira, disciplina e moções;
(5) inspecções internas e progressão com base no mérito/antiguidade:
(6) ingresso genérico e não para certo e determinado cargo.
A
nossa posição relativamente a estas provocações está resumida na
epígrafe: as provocações não formam magistrados. Repensar as
instituições é sempre necessário, mas o mais difícil é avançar com
propostas alternativas satisfatórias dentro dos quadros do Estado de
Direito democrático e da nossa cultura judiciária. Neste sentido, o
caminho que vou seguir nesta conversa é bastante diferente. A nossa tese
fundamental, será esta: a formação dos magistrados não é indissociável
da formação dos juristas em geral. Precisamente por isso devemos
perguntar-nos se a montante da "crise do judiciário" não haverá outra
"crise" tanto mais profunda que a da formação dos juízes. A nossa
opinião é afirmativa. Vamos procurar explicitá-la.
§ 2° - A ruptura da articulação da teoria com a prática
Avançaria
com o mote inspirador: o "schock" da prática e a miséria da metodologia
jurídica. Um ponto que se nos afigura central na problematização das
formações profissionais diz respeito à ruptura da teoria com a prática.
Não deixa de ser significativo que a revista alemã Rechtstheorie (4)
tenha dedicado um número especial a esta ruptura. Os organizadores deste
número - Werner Krawietz e Martin Morlok - colocavam assim a questão:
segundo o common sense dos juristas práticos (juízes, advogados) as
teorias e os teoremas para a interpretação e aplicação das normas
jurídicas que se ensinam a propósito da exposição das matérias de
direito positivo são de fraco préstimo na vida quotidiana do direito e
raras vezes são seguidas. Verificar-se-ia uma espécie de "schock-Praxis"
traduzido na sensação profunda de que o trabalho diário dos juristas e o
seu mundo do direito pertencem a outra galáxia do universo jurídico
muito distanciada da dos metodologo-teóricos. Em sentido contrário, os
académicos doutrinários acusam os juristas profissionais de esquecimento
das regras hermenêutico-metodológicas elementares. Colocadas assim as
coisas, é lógico que se pergunte: em que é que reside afinal o problema?
O
problema reside, por um lado, na formação académica. Sabemos bem que o
ensino não substitui os estágios profissionais e os estágios não
substituem a vida. No entanto, deve perguntar-se se a qualificação
profissional não depende, desde logo, de uma formação académica
adequada. Neste contexto, observou-se acertadamente que no plano da
metodologia e das teorias metódicas ensinadas nas faculdades se
verificam duas transferências dos métodos e teorias para fora da
realidade: (1) a metodologia e a metódica do caso pretende ter uma
qualquer conexão com a prática mas raramente com a prática judicial; (2)
a teoria dos métodos e as teorias jurídicas transferem para as teorias
e, consequentemente, pouca influência podem ter quer na formação quer na
prática judicial. Sendo assim, talvez se possa dizer que a ruptura da
teoria com a prática seja, desde logo, da responsabilidade dos
académicos. Mesmo quando estas teorias e métodos não estão completamente
esquecidos. Verifica-se que os profissionais se defrontam sobretudo com
o"trabalho do caso", com o trabalho em torno do Tatbestand ou da
fattispecie que raras vezes mereceu reflexão teórico-prática apurada no
plano dos estudos.
Se as metodologias académicas falham na sua
aproximação à praxis, voltemo-nos para o plano da praxis judicial para
verificarmos se aqui, pelo menos, se verifica algum impulso para a
revivíficação da teoria e praxis. Aqui verifica-se que quem triunfa não é
o método mas a aceitação da decisão judicial pelas instâncias judiciais
- ganhando, assim, confiança institucional. O problema central reside
aqui: a aceitação institucional por colegas e instâncias não significa
bondade metódica da decisão ou decisão de grande qualidade (jurídica ou
social). Decide-se no plano do poder e da autoridade do sistema
judicial, mas isso não implica necessariamente nem justiça do caso
concreto nem qualidade da decisão. De qualquer modo, e não obstante a
diversidade das decisões, existe um certo consenso institucional entre o
que é profissionalmente defensável e o que não é. Diríamos que o
consenso e aceitação profissional assenta numa outra ideia de coerência
das decisões intersubjectivamente testada. Como qualquer outro
pensamento institucional, o pensamento judicial-profissional não é uma
compreensão individual do direito e da aplicação do direito. Aqui
radicam, porém, - ou podem radicar - alguns dos problemas da ruptura da
teoria com a prática, agora do lado dos próprios práticos. A prática
judicial tem como lógica intrínseca: concentrar-se exclusivamente nos
aspectos do caso que se afiguram com relevância jurídica, com desprezo
dos outros mundos da vida presentes no caso. Os profissionais tornam-se,
assim, técnicos do direito, correndo o risco de se divorciar quer da
"realidade da norma" quer da "realidade do caso". Bastarão esquemas de
decisão processualmente correctos. Aproximamo-nos, assim, de uma questão
decisiva para a a formação dos juristas, sobretudo dos magistrados.
Como articular a teoria com a praxis, a partir da praxis judicial? A
resposta aponta para uma arte da praxis jurídica (').
§ 3° - Para uma teoria das jurisprudências
Na
sequência da problematização que vimos fazendo, é altura de vos
apresentar algumas observações sobre observações que fornecerão
o"pretexto" para vos falar em jurisprudências em vez de jurisprudência.
Propor-vos-ei uma breve suspensão reflexiva em torno de três jurispru¬dências:
(1) jurisprudência "multifuncionalista";
(2) jurisprudência "principialista";
(3) jurisprudência "precedentalista".
(1) Jurisprudência multicontextual
Colhemos
este conceito num sugestivo artigo de Doris Lucke (6) intitulado: "Doxa
e Prudentia: conflitos de racionalidade e problemas de comunicação como
paradoxos jurídicos de profissionalização". Sob uma perspectiva
sociológica, a jurisprudência multicontextual aponta para a
indíspensabilidade de os profissionais do direito estarem dentro (in)
das situações de vida e das respectivas experiências primárias. Para
isso, carecem de competência para uma comunicação multicultural que não
se esgota no uso de linguagem profissional nem na interpretação
profissionalizante da lei. Dir-se-ia, por outras palavras, que o código
binário do direito justo-injusto carece de informações outras (de caríz
sociológico, etnológico-jurídico) que lhe permitam captar a aceitação
/não aceitação, adequação/não adequação das decisões jurídico-formais.
Ainda por outra palavras, porventura mais expressivas: a prudentia
jurídica, que outra coisa não é senão a arte de decidir em situações
difíceis, só está em condições de se afirmar como prudentia se estiver
atenta às exigências da aceitação dóxica. Isto significa estar atento a
vontades, sentimentos, opiniões que, mesmo de forma indirecta, possam
contribuir para o acesso à justiça.
Façamos acompanhar estes
preâmbulos multicontextuais por observações sobre observações. Estamos a
recordar-nos de uma discussão sobre a lei de saúde mental em que os
profissionais da medicina sugeriram que as sentenças sobre internamento
forçado fossem proferidas nos próprios hospitais. Estamos a recordar-nos
de um debate sobre prisões preventivas em que um jovem juiz lembrou que
muitos juízes não sabem o que é uma penitênciária.
Temos presente um
apelo de um advogado sugerindo o "direito fundamental à fuga" se o juiz
não tomasse em consideração, num juízo de avaliação prospectiva, as
consequências dramáticas da imposição da medida de coacção mais
excepcional.
(2) Jurisprudência principialista
Como
o próprio nome indica, a jurisprudência principialista significa dizer o
direito no caso concreto mediante a aplicação de princípios. Com isto,
estamos a retomar uma aula que há alguns anos dirigimos no Centro de
Estudos Judiciários. Nessa altura, uma jovem auditora duvidou da bondade
jurisprudencial dos nossos ensinamentos. O discurso em torgo de
princípios - disse ela - é encantatório mas traz uma enorme insegurança
aos operadores jurídicos. Vale a pena retomar o diálogo aqui neste
colóquio.
Os exemplos que fornecemos tinham tido enorme impacto nos
meios políticos e sociais. Desde o "caso do crucifixo" na Alemanha até
ao "caso Serena" na Itália, tentámos demonstrar que esses casos não são
colocados logo em sede de Tribunais Constitucionais mas perante juízes
de primeira instância.
Quando se fala de jurisprudência de princípios
- convém aclarar este ponto - não significa que a jurisprudência deva
desprezar as regras jurídicas, precisas e densas. Como incisivamente
sublinhou um ex-juiz do Tribunal Constitucional Alemão, Ernst Wolfgang
Böckenförde, o direito não pode ser todo de princípios nem pode
reduzir-se a regras. No entanto, quando se trata de aplicar os
princípios do Estado de Direito, não há código que valha aos jovens
juristas. Não há código em que se densifique totalmente este princípio.
Quando está em causa o princípio da dignidade da pessoa humana, não vale
a pena procurar a "chave silogística" para a aplicação deste princípio.
Acontece, até, que o problema da aplicação de princípios não é apenas
um problema de juristas práticos. Vale a pena referir um exemplo
recentíssimo para demonstrar que todos nós estamos obrigados a um
exercício quotidianamente renovado de compreensão de princípios. O caso é
este. Em Fevereiro de 2003 aparecia a actualização do célebre
comentário à Lei Fundamental Alemã de Maunz-Dürig, com um novo
comentário ao art. 1/1 que, recorde-se, afirma a inviolabilidade da
dignidade da pessoa humana. O fundador do comentário (Dürig) nunca o
tinha actualizado (desde 1958), permanecendo sempre a afirmação da
dignidade da pessoa humana como fundamento de um "sistema de valores"
constitutivo do ordenamento jurídico alemão. O novo comentador - de uma
outra geração - viu-se obrigado a enfrentar o problema da dignidade da
pessoa humana - os novos problemas suscitados pelos embriões
excedentários e pela inseminação artificial, reconhecendo que os
interesses terapêuticos e a liberdade de investigação trouxeram renovada
insegurança quanto a este valor absoluto da dignidade da pessoa humana.
É precisamente aqui que vem residir a objecção fundamental colocada por
um ex-juiz do Tribunal Constitucional Alemão (e já atrás citado). Num
artigo publicado no jornal diário - o Frankfürter Allgemeine - entende
que se expulsou o fundador do comentário. A dignidade valor absoluto é
uma outra coisa diferente das "pretensões de dignidade".
Compreender-se-á, assim, que o princípio da dignidade da pessoa humana
continue o mesmo, mas os jovens juízes, tarde ou cedo, talvez tenham de
decidir se a liberdade de investigação garantida pela Constituição
justifica ou não a existência de embriões excedentários a que não se
atribui um valor absoluto de dignidade da pessoa.
(3) A "jurisprudência precedentalista"
Num
trabalho publicado em 1994, o jurista alemão R. Schmidt (') salientava
uma inequívoca tendência na prática profissional dos juízes: positivismo
jurisprudencial jurisdícional. Bastava ler os acórdãos mais recentes
dos vários tribunais constitucionais (e, também, das sentenças do
Tribunal de Justiça das Comunidades) para se concluir que, se, por um
lado, se rejeita decididamente o amparo maiêutico das "grandes teorias"
("razão pública", "discurso racional", "integridade"), também, por outro
lado, se evita qualquer abordagem sobre o método de
interpretação-concretização do direito. E se não há teria nem método, o
que há? A resposta é esta: positivismo jurìsprudencial jurisdicional.
Instalou-se um "precedentismo metódico judicialmente fechado". Há, pois,
prudentia
Sem scientia? Mas de que prudentia se trata? De leading
cases que se transformaram em casos de arte jurisprudencial? Não! De
"assentos" ou de "uniformizações de jurisprudência" propostas por
tribunais superiores? Não! Impõe-se um programatismo do caso baseado
noutras senten¬ças. A remissão de "sentenças para sentenças", o
acolhimento de "dizeres anteriores", o "reenvio de acórdãos para
acórdãos" pode significar, a nosso ver, a morte da própria
jurisprudência. Juris dicere não é repetir o que outros decidiram
noutros casos.
Chegamos assim, ao último tópico da nossa conversa. Na
qualidade de teórico, e afivelando a máscara de professor, o que é que
vos posso sugerir para a continuação do diálogo?
(1) Cfr. Giorgio Spangher, "Riforma dell'ordinamento giudiciario e Separazione delle carriere" in Studium Juris, 2003, p. 819.
(2) Cfr. Alain Mine, Au nom de Ia loi, Paris, 1998.
(3) Cfr. Paulo Castro Rangel, Repensar o Poder Judicial. Fundamentos e Fragmentos- Porto, 2001, p. 161.
(4)
Cfr. Rechstheoie. Sonderheft. Juristische Methodenlehre (vol. 32,
2001), com o título Von Schritern und Wiedralebung juristischer Methodik
im RechtsalLtag - ein Buch zwischen Theorie und Praxis?
(5)
Algumas das ideias aqui expostas inspiraram-se no trabalho de
Hans-Joachin Strauch, "Theorie - Praxis - Bruch - Aber wo liegt das
Problem?", in Rechtstheorie, 32 (2001), p. 197 ss.
(6)
Cfr. Doris Lucke, "Doxa und Prudentia: Rationalitátonkonflikte und
Kommunikationprobleme ais Paradoxien rechtlicher Professionalisíerung",
in Rechtstheorie, 3L (2001), p. 159 ss.
(7)
Cf. R. Schmidt, "Grundrechte", in D. Simon (org.) Rechtswissenschaft in
der Bonner Grundgesetz. Studien zur Wissenschaftsgeschàchte der
Jurisprudenz, 1994, p. 209 ss.
Rationalitátonkonflikte und Kommunikationprobleme ais Paradoxien rechtlicher Professionalisíerung und Rechtswissenschaft in der Bonner Grundgesetz. Studien zur Wissenschaftsgeschàchte der Jurisprudenz.
ResponderEliminarSprechen sie deutsch? Nas pregas dói-te?
Esse deutsche é da Wiki...logo, passo. É de feira da ladra.
ResponderEliminarCopiado do título do Schmidt...
ResponderEliminar"Chegamos assim, ao último tópico da nossa conversa. Na qualidade de teórico, e afivelando a máscara de professor, o que é que vos posso sugerir para a continuação do diálogo?"
ResponderEliminarQuando tiver de enfrentrar a chamada Justiça (*), jogue sempre numa tripla!
(*) Sentimento de um leigo, que já várias vezes referiu que os tribunais (qualquer um) não administram justiça, mas sim a aplicação de articulados produzidos normalmente, por quem pretende fugir a essa mesma justiça.
Silêncio p.f., que o José está na hora do FADO.
ResponderEliminarMargaritas ante porcos
ResponderEliminarTinha que ser a porta-voz "oficiosa" a rosnar! ...silêncio estúpida que o fado é que "induca".
ResponderEliminarP.S.:
ResponderEliminarO termo "estúpida", foi utilizado para ser entendível pela destinatária.
...terá também dito:
ResponderEliminar"...bem-aventurados e cidadãos do reino dos céus as pobres de espírito, isso é, as apoucadas de intelegência, as idiotas e imbecis, as mentalmente medíocres"