João Miguel Tavares no Público de hoje:
O artigo é dedicado ao mesmo tema já por aqui mencionado: a relevância dos pareceres catedráticos na ecologia do Direito e no desenvolvimento das prerrogativas.
A Ricardo Salgado, perante o conhecimento público do recebimento de uma prenda privadíssima, factor de escândalo e fonte de potencial crime, colocou-se uma questão de como recuperar a honorabilidade idónea ao exercício do cargo de dono daquilo tudo, ludibriando o BdP.
A "indoneidade" de um bancário é coisa que tem que se lhe diga e não é apenas do senso comum. Ou será?
O economista Miguel Cadilhe, antigo ministro parece saber do que fala quanto escreveu, em 25 de Junho deste ano:
O artigo 30.° do RGICSF diz-nos, em genérico, quem pode, ou se quisermos, quem não pode,
num banco, ser administrador executivo ou não-executivo, ou ser membro
dos órgãos de fiscalização, ou pertencer a conselhos gerais e de
supervisão. O Banco de Portugal (BdP) tem poderes de vetar nomes, com
base em requisitos exclusivos e subjectivos. Desses órgãos, "apenas
podem fazer parte pessoas cuja idoneidade e disponibilidade dêem
garantias de gestão sã e prudente, tendo em vista, de modo particular, a
segurança dos fundos confiados à instituição". Vendo bem, poucas
mas fortes são as palavras desta norma que marcam realmente o poder de
veto do BdP. Sublinhemos estas quatro: idoneidade, sã, prudente, segurança.
A idoneidade
da pessoa reúne, por exemplo, condições de ética, integridade,
seriedade, responsabilidade, inteligência, competência, experiência,
maturidade, equilíbrio, legalidade. O requisito da idoneidade diz
tudo, quase não seria preciso pôr mais na escrita. O legislador
preferiu, porém, e bem, desenvolver e relativizar o conceito de idoneidade,
tendo em vista os fins da banca. As outras três palavras que citei são
uma espécie de redundância explicativa dos grandes critérios da pessoa idónea
nos bancos, ainda que esta não se esgote nos critérios: a "gestão sã e
prudente" e a "segurança dos fundos" chamam por solidez, rentabilidade,
crescimento, ponderação, precaução, verdade patrimonial, etc.; e afastam
riscos exorbitantes, temeridades, produtos complexos e ignotos,
divagações patrimoniais, etc. Afastam voos de Ícaro.
A idoneidade vista à lupa...
Não contente com isso, o legislador do artigo 30.° acrescenta que, na apreciação da idoneidade, o BdP e os bancos devem ter em conta "o modo como a pessoa gere habitualmente os negócios ou exerce a profissão", em especial nos aspectos de capacidade de decisão, cumprimento das suas obrigações, preservação da confiança do mercado.
O mesmo artigo 30.° concretiza alguns dos mais graves e flagrantes indiciadores de falta de idoneidade, os quais incluem, por exemplo, a
condenação "por furto, abuso de confiança, roubo, burla, extorsão,
infidelidade, abuso de cartão de garantia ou de crédito, emissão de
cheques sem provisão, usura, insolvência dolosa, insolvência negligente
(...), falsificação, falsidade, suborno, corrupção, branqueamento de
capitais (...), abuso de informação, manipulação do mercado de valores
mobiliários, ou pelos crimes previstos no Código das Sociedades
Comerciais". Sublinhemos aqui duas palavras: crimes, condenação.
Seria preciso explicitar todo este obscuro rol de marcadores? Sim, acho
que sim. Todavia, chamar-lhe meramente "indiciador" é que não parece o
mais apropriado.
Ora estes critérios são canja interpretativa para os catedráticos do Direito, como o dito Calvão, especialista em "direito bancário" e dos seguros, certamente. Alguém terá mencionado a Salgado: vira-te para a "cidade do conhecimento". É lá que está o saber salvífico nas horas de aperto jurídico. E terá sido assim que telefonou, conversou, almoçou ou jantou com o professor doutor. "Preciso de um parecer que me devolva a idoneidade sem mácula", pode muito bem ter dito depois de explicar o inexplicável: 14 milhões de euros pela porta do cavalo que cairam na conta suíça de modo que só um RERT livrou da apreensão por crime fiscal.
O professor doutor saberia disto? Então para que serve um catedrático? Para dar pareceres e ensinar direito, sabendo os factos. O problema resumia-se a dar um aspecto respeitável a algo que evidentemente o não era e toda a gente, incluindo a família, já tinha percebido que o não era. Um empreiteiro entrega 14 milhões de euros a um banqueiro para este guardar e fazer coisa sua. E o banqueiro nem sequer podia dizer aos sócios porque era segredo e tinha vergonha. Isto abona alguma idoneidade, mesmo jurídica, a um banqueiro de um banco que estatutariamente rejeita este tipo de esquemas negociais?
Como é que o direito bancário pode resolver um problema que é do senso comum e pouco tem a ver com leis a não ser para as tornear?
Com um parecer catedrático, voilà! Transformar pelo processo alquímico do direito um mistério inexplicável em algo perfeitamente corriqueiro. "Liberalidade", foi a palavra mágica encontrada.
O empreiteiro ofereceu ao banqueiro 14 milhões de euros, não interessa porquê e que este arrecadou numa conta secreta na Suíça. E por lá ficaria muito caladinha não se dera o caso de poder tratar-se de um crime. De branqueamento, pois claro, por causa da fraude fiscal inerente. E de um RERT salvífico que permitiu repôr algum ao Fisco.
O catedrático apenas deu um conselho, tal como o beneficiário dos milhões tinha dado o seu conselho... e o BdP aceitou o conselho como bom para atestar a idoneidade do banqueiro. Perfeito. A fome de idoneidade juntou-se à vontade de comer da credulidade. E ficaram saciados.
Então o que falhou neste esquema catedrático? Falhou a própria essência do parecer: e se os 14 milhões não fossem uma liberalidade, uma prenda? E se o catedrático soubesse disso? E se tal valor por si mesmo fizesse desconfiar, como desconfiou a família do banqueiro? E que devia então fazer o catedrático? Dar o parecer, sem o vender? Uma "liberalidade"?
E como interpretar juridicamente, à luz desses factos, as palavras que nunca se diriam noutro contexto e com um significado saboroso a conferir dimensão catedrática a uma ingenuidade proibida- "o bom princípio geral de uma sociedade que quer ser uma comunidade – comum unidade –, com espírito de entreajuda e solidariedade"?
É esta a questão coimbrã do momento: para quê, pareceres destes?
E de resto continua por responder a questão que vale vários milhões de euros: e para quem eram realmente os 14 milhões? Eram mesmo para o Salgado? Essa é que não está respondida...e Salgado, católico praticante é caridoso. Porém, a caridade verdadeira começa por nós mesmos e não devemos assumir o que não nos pertence, principalmente por caridade porque antes disso está a Justiça. Mesmo a dos homens...
Este, o perdulário, é que poderia dizer...se quisesse. E então saberíamos muito mais.Mas também não vai dizer porque até agora não disse nada. De nada. Mesmo nada. Não pode dizer nada.
Excelente texto ( excelente raciocínio ) . Humor refinado .
ResponderEliminarum texto requintado sobre duas partes:
ResponderEliminaro banqueiro e o prof dr
a conversa fiada de ambos devia terminar com a frase
'hay! mi gabardine'
Vive-se uma espécie de socialismo real,
ResponderEliminarA voz Portalegrense
uma variante menos tenebrosa do comunismo, porque ainda é permitida a propriedade privada, se bem que com uma carga fiscal que torna os possidentes como financiadores desse estado providência e simultaneamente vistos como delinquentes ou criminosos pelos radicais esquerdistas.
in, Rádio Portalegre, Desabafos, 01/12/2014
Mário Casa Nova Martins
Vivo, vivo. É preciso esclarecer porque impediu sócrates a venda da PT, porque logo a seguir foi vendida a Vivo, porque foram distribuídos os milhões, muitos, da venda. Sócrates tinha, tem, uma renda mensal do bes, do sr. salgado, do sr. guilherme? Só há uma razão para um político tomar decisões contrárias ao bom senso, ao interesse público, aos seus próprios interesses políticos: o recebimento de vantagens materiais. Foi isso que aconteceu? Fale sr. salgado. Ameace sr. pinto de sousa. A indústria dos pareceres é velha: o velho Eduardo Correia no meu tempo passeava o jaguar que lhe saira num parecer...
ResponderEliminar"E de resto continua por responder a questão que vale vários milhões de euros: e para quem eram realmente os 14 milhões? Eram mesmo para o Salgado? Essa é que não está respondida."
ResponderEliminarExactamente José. O Dr. Salgado está metido numa encrenca de primeira. Se revela o destino dos milhões está tramado e fica com a vida por um fio. Se não revela, fica com a reputação manchada para sempre como pessoa e como banqueiro de grande prestígio, sobretudo tendo em conta a família donde provém.
O Dr. Salgado sabe muito e devia deitar tudo cá para fora. Se o não fizer é ele quem perde. Esta é a oportunidade de ouro que tem à sua disposição, provàvelmente a última da sua vida.
O José não quer dar um palpite sobre quem pensa poderá ter sido o beneficiário integral desses tais milhões? Toda a gente tem uma ideia quase precisa de quem terá sido, mas cala-se por prudência. Há contudo honrosas excepções. Rui Mateus, por exemplo, não teve pejo algum em denunciar muita da mega-corrupção em que certa classe política se encontra mergulhada até à raíz dos cabelos desde pràticamente a primeira hora em que este regime entrou em acção e essa mesma classe política se apossou dos comandos da Nação, o que se tem vindo a verificar desde esse dia até àquele em que nos encontramos.
Maria
ResponderEliminarNo final do seu texto creio que responde ao inicio.
De facto o Rui Mateus denunciou, e no fim não aconteceu nada com o Dom Mário e restante camarilha, sendo que o único "condenado" foi o próprio Mateus.
Aliás, essa coisa de Macau ficará para mim que não sou jurista como uma das vergonhas do nosso sistema judicial. Condenaram os corruptores e ilibaram o corrompido, pelo mesmo facto.
"Aliás, essa coisa de Macau ficará para mim que não sou jurista como uma das vergonhas do nosso sistema judicial. Condenaram os corruptores e ilibaram o corrompido, pelo mesmo facto."
ResponderEliminarQuem colaborou nessa farsa portou-se exactamente como o agora Pinto Monteiro fez. Porventura, até pior, mas mantiveram a aura de intocáveis e foram sempre promovidos a lugares de destaque.
Os crimes de denegação de justiça e prevaricação são dos mais graves que podem atingir a pessoas "sérias"...
Torna-se evidente, para mim que Portugal neste aspecto está apenas um pequeno passo à frente de Angola ou mesmo Timor.
Quando o calor chega perto de determinadas pessoas, aparecem logo extintores providenciais de onde menos se espera e isso é o descalabro da credibilidade democrática.
ResponderEliminarHá pessoas no MºPº, até por quem tenho estima pessoal, que reconhecem que isto é assim...
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarMachado da cruz: the butler did it.
ResponderEliminarWhere is the butler, anyway?
"Se não revela, fica com a reputação manchada para sempre como pessoa e como banqueiro de grande prestígio, sobretudo tendo em conta a família donde provém."
ResponderEliminarCom us biliões, deve estar preocupadissimo com a reputação...
Vai tudo lá para fora e os ES começam de novo...depois retornam, mais à frente, excepto o ex-ddt, obviamente.
José, do meu ponto de vista a questão coimbrã não é só essa, nem tampouco se fica por aí.
ResponderEliminarA questão é se quem elaborou esses pareceres tem condições para continuar a ser professor numa Universidade Pública.
Outra questão relacionada é se faz sentido que os professores das universidades públicas, em especial os catedráticos, não serem obrigados a um regime de exclusividade.
Por exemplo outra situação bastante pública, esta na capital, que me faz bastante espécie é a de Marcelo Rebelo de Sousa que aparece semanalmente na TV, muitas vezes no estrangeiro, e ligado a uma série de outras iniciativas que me parecem muito difíceis de compatibilizar com as obrigações profissionais de ensino e de investigação que um professor catedrático deveria cumprir. Em Portugal continua-se a aceitar pacificamente este tipo de situações em que o erário público é sobrecarregado com salários de professores universitarios, que sao elevados para a realidade portuguesa, especialmente no topo da carreira, e em que estes depois não só não cumprem as suas obrigações profissionais como andam envolvidos neste tipo de atividades profissionais ética e deontologicamente duvidosas...
Rui:
ResponderEliminarA corrupção também é isso, mas essa gente não entende.