A foto é de Pedro Marques/MadreMedia- Sapo.
Laborinho Lúcio que conheço há um pouco mais de trinta anos, essencialmente como pessoa ligada à formação do CEJ e avatares posteriores em instituições judiciárias, é um dos cultores mais aprimorados do que se pode apelidar o redondo vocábulo. A expressão provém de um tema de Zeca Afonso, inserido no álbum de 1973, Venham mais cinco e que termina com o verso "inda o ar educa".
Um dos temas da entrevista é precisamente a Educação, cujo modelo é comentado pelo entrevistado com uma inspiração que poderia ter saído desse verso.
Em quase todas as entrevistas, palestras, colóquios e intervenções públicas, Laborinho tem sempre uma história arredondada para contar.
Desta vez são duas: a dos índios e cobóis da sua infância, na qual lhe era reservado o papel de taberneiro, fugindo ao confronto com os índios "maus" que depois descobriu, enganado, que eram "bons" e a história da escola primária, junto dos Pescadores que eram vizinhos na vila da Nazaré. A escola era alternativa à que lhe seria destinada naturalmente, pela pertença de classe à pequena burguesia local. Daí o simbolismo simbiótico com a primeira história. Laborinho fica ao lado dos "bons" e que eram na época os "maus", porcos e feios até.
Estas histórias algo edulcoradas pela memória do tempo, de Laborinho, têm sempre alguma graça e cativam o ouvinte, inevitavelmente, pelo brilho natural que lhe costuma ser emprestado pelo narrador.
A mim, no entanto e desde sempre, deixam-me um travo algo amargo no espírito. Sempre me interroguei: porque é que um tipo que sempre me pareceu "fixe" e "porreiro" precisava de narrar assim e tentar seduzir pelo redondo vocábulo as almas desprevenidas que se deixam fascinar com pouco?
Haverá uma resposta para tal associada eventualmente ao fulgor do raciocínio e à rapidíssima facilidade de expressão. Laborinho é um virtuoso nesse estilo. Já era assim no CEJ, continuou nas entrevistas avulsas que foi concedendo e nas palestras em que participa. Na escrita, tal não resulta e Laborinho enredava-se nos textos para tentar explicar ideias simples. Tem um opúsculo inacabado sobre O Direito, o Judiciário e os Tribunais que é um exercício tortuoso de incapacidade expositiva.
Porém, no manejo falado do redondo vocábulo é um mestre prestidigitador que confunde palestrantes maçudos e exaspera debitadores de saberes escolásticos.
Um bom exemplo disto é o que explica sobre a legitimidade dos juízes e dos tribunais perante a opinião pública e o "povo" em nome do qual se aplica justiça, constitucionalmente.
Quem ler isto precisa de ler mais que uma vez para perceber o sentido e alcance das expressões. A alusão ao "populismo" mediático relativamente aos fenómenos judiciários é abordado em modo redondo e sem ferir arestas.
Porém, deveria ser necessário ferir susceptibilidades e limar arestas de profissionais que são responsáveis directos pela "justiça espectáculo" e principalmente descortinar a origem do fenómeno e quem dele se aproveita com propósitos turvos. Laborinho nunca entraria por aí, nessa guerra contra os "índios". Prefere ficar na posição de taberneiro, sendo certo que frequentou as escolas de elite que lhe permitiu conhecer as da ralé.
É exasperante, Laborinho, por vezes...
Sapo:Existe alguma forma de fiscalizar o trabalho que está a ser feito?
A justiça tem hoje um problema complicado para o qual também é necessário fazer perguntas - aqui não precisam ser muito fortes. Viemos de um tempo em que a justiça era respeitada porque todos confiavam nela por uma questão de fé. Ora a fé, sem estar com isto a fazer qualquer extrapolação para a fé de dimensão religiosa, em política assenta na ignorância, porque através do conhecimento o que se quer é racionalidade. Acontece que a justiça é respeitada porque se acreditava nela. Com o processo democrático, com a discussão pública das questões da justiça, a justiça começou a ser discutida pelo cidadão comum, cujo conhecimento é maior, mas está muito longe de ser o mínimo para poder ter uma racionalidade crítica. O que temos hoje é uma falta de fé em alguns aspectos e uma falta de conhecimento bastante para poder reconstruir a relação de confiança. Isto gera uma intervenção de certos sectores da comunicação social, que é legítima, e que levou àquilo a que se chama a justiça espectáculo ou a justiça dramática, em que, no fundo, se hipervalorizam os casos de justiça junto de uma opinião pública que está em casa sentada no sofá a fazer o lugar do juiz ou do Ministério Público.
E esse é um papel legítimo, ou não?
A justiça tem de aprender a viver com isto, em vez de fazer o discurso do "nós não temos de dar satisfações a ninguém". A justiça tem de perceber que as pessoas estão interessadas, estão empenhadas e têm uma percepção. O que é fundamental é ter a noção de que a percepção da realidade é uma coisa e a realidade é outra. A certa altura tudo passa a acontecer como se nós tivéssemos de responder às tomadas de posição que vêm da percepção junto da opinião pública. Nesta medida é essencial que compreendamos várias regras; por exemplo, uma justiça não é melhor nem pior consoante condena ou absolve. Uma justiça que absolve é tão justa como uma justiça que condena. Não podemos dizer que uma justiça só funciona se condena. Depois, nem sempre as acusações que o Ministério Público formula correspondem a condenações, o que não quer dizer que as acusações tenham sido mal formuladas. Muitas vezes é no momento da acusação que há um conjunto de provas ou de elementos indiciários que são bastantes para fundamentar a acusação, mas o julgamento permitiu juntar elementos novos ou, muitas vezes, reformular uma opinião que se tinha sobre uma determinada realidade e chegar ao julgamento e haver absolvição. Posso dizer que como magistrado do Ministério Público em dois casos pedi em julgamento a absolvição de réus que tinha acusado. Porque com o desenrolar do julgamento surgiram situações que não podiam ter surgido na altura da acusação. Por outro lado, e sei que isto é difícil de aceitar, mas seria intelectualmente desonesto se não o dissesse, a justiça, como a saúde, são actividades de risco, e nem sempre tudo corre bem. Há uma dimensão de erro que faz parte do próprio contrato social. Eu, como cidadão, quando transfiro para os tribunais, para o Estado, o poder de condenar ou de absolver, transfiro também a minha aceitação da margem de erro que pode acontecer. Isso não impede que os cidadãos critiquem a justiça e o modo como ela funciona, ou até denunciem as circunstâncias em que ocorrem eventuais erros. O que não se pode necessariamente fazer é extrapolar daí para colocar questões morais ou éticas sobre o funcionamento da justiça e dividir tudo entre bons e maus. Temos de nos habituar a crescer, a ser mais adultos nesta relação e compreender o espírito, não tendo de estar de acordo e tendo o direito de criticar. Veja o exemplo do tribunal de júri norte-americano, normalmente apresentado como exemplo de erros judiciários: condenações à morte de pessoas que mais tarde se verifica não terem praticado qualquer crime, etc. Nenhum americano põe em causa o tribunal de júri. O tribunal de júri faz parte da sua cultura, é uma instituição e é dos americanos, que não abdicam dela e não a colocam em causa. E, todavia, podíamos desenvolver críticas ao seu funcionamento.
Sabemos que as decisões que se tornam públicas são as mais escabrosas, as mais controversas, embora não deixem de ser reflexo dos juizes que temos. Mas já assisti a vários processos-crime económicos e foi confrangedor ver o Ministério Público. Pergunto-me se a preparação da acusação no Tribunal de Menores ou noutros será semelhante.
Precisamos de compreender que a realidade exterior modificou-se muito. Os tribunais têm de perceber como incorporar essa mudança nas suas atitudes, inclusivamente na construção das suas decisões. Não posso falar e casos concretos, mas nada me impede de dizer que como cidadão muitas vezes também fico um pouco perplexo com determinado tipo de fundamento de decisões. Agora, há um aspecto que julgo importante, e aqui os magistrados teriam de colaborar e, provavelmente, até a formação de magistrados teria de caminhar por aí. Há uma tendência para tornar a administração da justiça, a intervenção do magistrado, num compacto de técnica. Evidentemente que a técnica é decisiva e é fundamental que o magistrado seja competente tecnicamente, mas a competência do magistrado vai muito mais longe. Muitas vezes os magistrados, impecáveis do ponto de vista da aplicação da lei, esquecem que aquela sentença é pública e que o público vai lê-la. E para o público era importante que muita da realidade que não é levada ali lá estivesse, até com uma linguagem menos hermética, para perceber a história no seu todo, caso contrário não compreende a decisão. Talvez valha a pena repensar isto. E talvez valha a pena levar ao fundamento da decisão aquilo que, sabendo que vai ser lido pelo público, é importante que o público compreenda. Julgo que os casos se têm vindo a repetir e que esta é uma questão essencial e que faz parte da comunicação da justiça. Temos um pouco a ideia de que a comunicação da justiça é saber quem é a pessoa que pega no microfone e vai dizer o que se passou. É importante que isso seja feito, mas comunicação, sabe melhor que eu, resulta dos termos usados e da forma como são levados ao conhecimento do cidadão. Nesta matéria penso que temos um grande caminho a percorrer e não nos devemos ficar apenas por dizer que as pessoas não percebem nada disto e não vale a pena dar importância ao que elas dizem. Isto é não compreender a realidade e ficar cada vez mais afastado dos cidadãos.
E sobre a especialização?
A especialização é hoje absolutamente fundamental. Houve um tempo em que eu próprio colocava algumas dúvidas, mas hoje tenho a certeza de que é fundamental, embora entenda que deve ser matizada. A especialização deve existir, mas, de tempos a tempos, com intervalos grandes, é preciso mudar, porque a especialização, mais uma vez, fecha o juiz sobre a técnica. Há, claro, matérias que são essenciais e temos de começar a pensar - isto não é uma crítica ao passado, até porque eu próprio não o fiz enquanto ministro da Justiça - se não fará sentido que em sede de acusação haja assessorias económicas no julgamento. Não podemos partir da ideia de que o magistrado é conhecedor de tudo na dimensão total que estas matérias, cada vez mais sofisticadas, têm. E aqui penso que um especialista faz falta, até enquanto reforço de meios para investigar e desenvolver o processo. Mas percebo que nem tudo pode ser feito de um dia para o outro, conheço bem a diferença que vai entre a facilidade de dizer e a dificuldade de fazer e tenho a obrigação de dar algum benefício da dúvida à dificuldade de fazer porque vivi a prática.
Um exemplo concreto da deficiência informativa resultante da carência de cultura pode ler-se na entrevista.
A jornalista entrevistadora escreve duas vezes a palavra "dissiminado", proveniente de um verbo inexistente. O erro ortográfico é grave, inadmissível em alguém que escreve em jornal, mesmo virtual.
A Dª Raquel do tempo da primária de Laborinho, mesmo na Escola dos Pescadores nunca teria passado de classe quem desse um erro desse calibre.
E no entanto, erros deste género são recorrentes no jornalismo nacional e revelam a ausência de leituras, de cultura, de formação académica minimamente decente em profissionais do ramo.
Tudo isto se reflecte, depois, em opinião que é vertida nos artigos, nas notícias, etc etc.
As "causas", depois, aparecem por cissiparidade. Quem não sabe, não pode perguntar.
Outro exemplo, desta vez no Observador:
Por piedade e amor à língua portuguesa, que seja possível exterminar quanto antes esta praga do "o quanto antes".
Onde raio é que esta geração aprendeu a escrever? Na Internet?
Onde raio é que esta geração aprendeu a escrever? Na Internet?
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