Sobre o acórdão do processo dos Vistos Gold os jornais de hoje noticiam a respectiva opinião. Sem excepções. O jornalismo português é uma colecção de opiniões de indivíduos e indivíduas que se julgam habilitados a emitir opinião sobre tudo. Os directores, então, excedem-se em editoriais como se estivessem num New York Times ou mesmo num Guardian, leitura preferida da maioria.
A arrogância jornalística, em Portugal, é de tal ordem e tem engordado de tal forma nas últimas décadas, com o advento do Público de um tal Vicente Jorge Silva , que se torna confrangedora a obesidade balofa dos escritos.
Assim, todos os jornais que aqui se citam tecem comentários e oferecem opinião sobre um acórdão que necessariamente ainda não leram.
Citam partes, relevam factos, omitem outros, truncam afirmações, extrapolam entendimentos e tornam as peças que escrevem quase inúteis para se ter uma ideia aproximada ao essencial do que ficou decidido.
Um processo desta natureza é necessariamente complexo e a descodificação da matéria de facto dada como provada e não provada bem como a fundamentação para tal ajudariam a perceber o desfecho e então, cautelosamente a emitir uma opinião acerca da bondade da decisão.
Quem é que leu este processo e o acompanhou desde o início? O MºPº e as polícias, o juiz de instrução, os de julgamento e os advogados, neste caso de defesa.
Quem é que sabe ao certo o que se passou com os factos apresentados a julgamento? Os arguidos tão somente. O MºPº e as polícias, bem como o juiz de instrução interpretaram tais factos e entenderam que deveriam ser apresentados a julgamento por integrarem os crimes que elencaram.
Nessa fase primeira é essencial o seguinte: analisar factos, ouvir depoimentos e escutas probatórias, consultar e analisar documentos e concluir se tal factualidade integra crimes e nesse caso se as provas indiciárias serão suficientes para os eventuais acusados serem condenados em tribunal.
Para analisar a actividade do MºPº e do JIC é preciso avaliar todos esses passos de investigação. Os jornalistas não fizeram tal coisa. Os juizes de julgamento também não, uma vez que em sede de julgamento ocorre o seguinte que carece de ser muito bem ponderado por aqueles magistrados: toda a prova tem que ser examinada segundo regras de processo penal que se tornam muito frágeis em certas situações. Para além da prova da acusação que neste caso integrava, substancialmente, vários volumes de escutas telefónicas, documentos periciais, depoimentos de testemunhas, em audiência também se produziram provas que em inquérito eventualmente faltaram: as de defesa. Nesta deve incluir-se toda a panóplia de expedientes processuais que determinam a validade e relevância das provas. Por exemplo, se o depoimento de testemunhas prestado em inquérito não o foi perante magistrados, o que tais testemunhas disseram em inquérito valerá zero. Mesmo que mintam, pouco adiantará porque o efeito produz-se nesse processo e não noutros eventualmente instaurados para averiguar o falso depoimento. Em Portugal isto é um problema grave porque qualquer testemunha mente, se necessário for, sem grandes consequências que noutros ordenamentos jurídicos garantem penas de prisão por obstrução à justiça. É esta uma das garantias iníquas do processo penal que temos e ninguém quer mudar.
Parece aliás que foi o que sucedeu no caso concreto, segundo se noticia nestes jornais: testemunhas que deram o dito por não dito e encobriram eventuais factos com relevância criminal. Porém, o MºPº tem o dever de assegurar e garantir que tal não ocorra e actualmente existe um meio: tomar ainda durante o inquérito, depoimentos presencialmente e não delegar em polícias, perante quem os depoimentos pouco ou nada valem.
Por outro lado o valor da prova indirecta é apreciado de modo quase subjectivo pelos tribunais. Se alguns não têm qualquer dúvida em relevar tal prova como sucedeu no processo Face Oculta, neste caso, os juizes fizeram boca mais fina e desvalorizaram indícios e provas recolhidas por esse meio. Temo que tal possa suceder no processo Marquês. Qual a solução: reforçar tal prova indirecta com melhor investigação.
Ponderando tudo isso, um bom magistrado do MºPº tem o dever de avaliar as hipóteses que se colocam e antecipar o que pode vir a acontecer em julgamento e só acusar quando as hipóteses de condenação sejam mesmo fortes e não meramente plausíveis, como pode ter sido o caso, segundo o que escrevem os jornais de hoje.
Não se trata por isso de mero justiceirismo como escreve atoleimadamente o director do Público, mas apenas incompetência de avaliação do MºPº. É essa reflexão que o MºPº tem que fazer e rapidamente porque senão uma eventual sucessão de fracassos deste género anularão qualquer perspectiva de justiça em Portugal, relativamente a criminalidade económico-financeira. O caso BES pode servir de campo de experiência, através do rigor da análise factual, objectiva e isenta de tendências acusatórias levianas, a reboque de certa imprensa como a da Cofina, eivada do sensacionalismo mais rasteiro e perigoso.
O CM de hoje: o "editorial" da jornalista Tânia Laranjo é delicioso pela ausência completa de isenção, rigor ou objectividade jornalística. A honestidade de alguém não se julga em tribunal se estiver em causa um desvalor ético, apenas. Julga-se se estiver em causa um crime. É disso que se trata, portanto, a petição é de princípio. Em duas linhas a jornalista imputa o crime do arguido Macedo: "o ministro, esse, dava cadernos de encargos a empresas privadas propiciando que ganhassem concursos públicos", dando como assente tal facto. Mas falta o seguinte: e recebeu alguma coisa em troca, indevidamente? Ou mesmo promessa de tal? E era substancialmente ilegítimo tal procedimento, se ocorrido? E todo o acervo documental e testemunhal, pericial e de prova, mesmo indirecta permitiria à jornalista condenar o tal ministro pela prática de um crime? Chegaria para tal?! Aparentemente foi isso que o juiz explicou ao dizer que não. A jornalista não se conforma. Mas porquê? Por causa da (in)justiça? Por ter apostado pessoalmente numa culpabilidade que não se verificou? Por ter redigido notícias com tal preconceito?
É isso que ensina o bom jornalismo? Tomar partido por causas e escrever em abono das mesmas, mesmo potenciais falsidades e injustiças? Não. Isso é anti-jornalismo. O jornalista deve relatar factos e procurar provas se puder. Se não puder, abstenha-se de julgar. Relate apenas factos e isso já será muito. Isto é tudo o que Tânia Laranjo não faz...e há muitas Tânias Laranjos por aí, nas redacções. Porém, o caso singular de Tânia Laranjo é exemplar o que vai mal neste tipo de jornalismo sensacionalista.
É um jornalismo que faz isto: em determinado processo em que é julgado um psicopata por homicídio, a jornalista obtém a informação verídica de que o mesmo tinha na sua agenda o telemóvel de José Sócrates, porque além do mais eram da mesma terra. O que fazer com esta informação? Em vez de avaliar a relevância que possa ter e procurar saber se eventualmente houve qualquer coisa de anómalo nesse facto anódino, fez outra coisa. Como a notícia potencialmente sensacional é premente, não pode esperar, no dia seguinte a saber tal coisa esparrama na primeira página do jornal, em letra gorda que "o assassino é amigo de Sócrates". Nojento? Mais que isso: inadmissível, porque irrelevante, no contexto, embora merecesse apontamento de curiosidade se devidamente contextualizada.
Este jornalismo de matriz sensacionalista transformou-se num vício porque traz dinheiro e isso é o aspecto imoral do mesmo. Muito mais imoral do que a atitude do ministro Macedo.
Por outro lado estes jornalistas, ouvem as coisas, sabem as coisas, tomam partido e muitas vezes nem querem saber de qualquer contraditório. É assustador e isto é que é o verdadeiro "justicialismo" que afinal está no seio da classe jornalística e não entre os magistrados ou polícias. Será que o director do Público não vê esta evidência?
Por fim o Diário de Notícias, capitaneado pelo actual Sombra do regime, Proença de Carvalho: esta decisão preenche-lhes todos os requisitos de satisfação. "O juiz arrasa", claro, para este jornalismo de sarjeta profissional. Melhor seria ter escrito: " provas em julgamento arrasaram os juízes". Não foram capazes de descortinar entre a matéria de facto provas suficientes para condenarem, Ou porque não foi possível; ou porque não existiam. Essa distinção é que o jornalismo deve fazer para se poder escrever o que a jornalista Valentina Marcelino escreveu.
Concluindo: até se saber claramente que provas existiam que meios de prova foram apresentados e de que modo foram utilizadas em audiência de julgamento não se deve "arrasar" o MºPº ou o JIC, neste caso Carlos Alexandre que se referiu ao processo como um imenso "lamaçal".
"Lamaçal" não é necessariamente sinónimo de estendal de crimes, embora nessa fase inicial e ainda indiciária, se tenha entendido que as provas seriam suficientes para uma condenação. Quanto ao acerto desta decisão quod erat demonstrandum...
Porém, o que parece certo é a dimensão do lamaçal ético que o processo demonstrou. E é a isso que se deve chamar corrupção, embora distinguindo daquela que permite condenações criminais.
Nem toda a corrupção tem dimensão criminal mas toda ela é um imenso lamaçal e que com esta decisão tenderá a alastrar, por vida do sentimento de impunidade que a mesma reflecte.
A culpa disso será do MºPº? É preciso uma grande, grande reflexão, incluindo a dos autores do processo penal que temos e os que integraram comissões de revisão das leis penais e também dos magistrados mais avisados. Há alguns, poucos. E até incluo neles a reformada Maria José Morgado, apesar de tudo. E Euclides Dâmaso, naturalmente. E os advogados do processo, com destaque para Castanheira Neves que também conhece a realidade oculta dos factos que foram dados como provados e não provados.
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