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terça-feira, julho 02, 2019

A prevaricação do Ministério Público

Pelos vistos o articulista Miguel Sousa Tavares, no Expresso de Sábado escreveu sobre o MºPº no sentido de entender que não deve ser um órgão de supervisão do Estado, com autonomia. Prefere que esteja subordinado ao poder político, apesar de ser um órgão de supervisão do Estado. E tudo por causa do famigerado "corporativismo".

Atalhando razões é este o artigo:


 A escrita é pobre, o argumentário indigente e pessoalizado mas uma ou outra razão merecem atenção, porque tocam no essencial.

MST pretende acabar com a autonomia e independência relativa do MºPº porque teme os abusos dos magistrados, apontando até casos pessoais.

Para tal, escolhe razões emprestadas a países democráticos: Alemanha, França e EUA. Nesses países o MºPº não tem autonomia perante o poder político. Pois não, mas será assim que se resolve o problema de MST que será o de limitar os abusos de poder do MºPº em casos concretos?

Tanto num sistema como noutro, ou seja no nosso ou no deles, o MºPº teria sempre um dever de objectividade perante as denúncias fundadas sobre práticas de crimes. O grande argumento de MST é o da responsabilização dos magistrados, em contraponto a uma actual desresponsabilização. Será que a ligação ao poder político resolveria a questão?
Sendo certo que o PGR poderia ser chamado a capítulo, em certos casos, também é verdade que o abuso de poder que tal poderia significar, por parte do poder político, limitaria muito a actuação temerária de qualquer ministro da Justiça. É isso que acontece na Alemanha ou na França.
O poder e o abuso, neste último país, não pertence ao MºPº mas sim aos juízes de instrução, ainda mais independentes do que por cá o MºPº o é. Por aí, MST continuaria a dar-lhe e essa burra a fugir cada vez mais.

Nos EUA as grandes questões criminais podem resolver-se com uma interacção da polícia e dos procuradores eleitos. Mas há um perigo: o de potenciar ainda mais os abusos em casos mediáticos e eliminar os vestígios de objectividade e imparcialidade que um sistema como o nosso ainda comporta.

MST sabe disto? Parece que não e por isso a fantasia em que incorre. Acha que na Alemanha o poder político controla melhor os magistrados do MºPº e estes não abusam? Veja-se o caso Baader-Meinhof, comparando-o como o caso das FP25.

Curiosamente, MST não cita a Itália, onde o MºPº actua na pele de juiz de instrução, com maior independência e autonomia que o nosso. O MP italiano acabou com o sistema partidário no caso Mani Pulite. O que pensa MST sobre isso?

Em termos de direito comparado não me parece que os sistemas citados sejam preferíveis ao nosso, que já deu provas. Mas é nessas provas que devemos procurar os problemas e que também são os que MST elenca.

Para mim, o principal problema do MºPº em Portugal é a cultura que se instalou entre as  várias centenas de magistrados espalhados pelo país, neste momento com predominância clara de mulheres.

É preciso atender a essa cultura e compreender como chegamos até aqui e esse problema MST só o cheira e de longe. Mas com faro apurado, diga-se.

Usando uma palavra forte o principal problema do MºPº em Portugal é a prevaricação em massa.

Prevaricação é um crime que se define assim e anda associado ao crime de denegação de justiça:

Artigo 369.º
Denegação de justiça e prevaricação

1 - O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias.
2 - Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até 5 anos.
3 - Se, no caso do n.º 2, resultar privação da liberdade de uma pessoa, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. 


Promover ou não promover algo, no âmbito de um processo, fazendo-o contra direito e conscientemente, é crime.
O que é isso de actuar contra direito? Pois aí é que a porca torce o rabo. Vejamos um acórdão do STJ que tentou definir a coisa:

Ac. STJ de 12-07-2012 : IV. O crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do CP, encontra-se sistematicamente inserido no âmbito dos crimes contra o Estado, mais especificamente no capítulo dos crimes contra a realização da justiça. O bem jurídico tutelado é a realização da justiça em geral, visando a lei assegurar o domínio ou a supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime judiciais. Tem por elementos constitutivos a ocorrência de comportamento contra o direito, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, por parte de funcionário, conscientemente assumido, havendo lugar à agravação no caso de o agente agir com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém.
V. Face à exigência típica decorrente da expressão 'conscientemente', só o dolo directo e o necessário são relevantes, como é jurisprudência uniforme do STJ. O dolo, enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica. Não são meras impressões, juízos de valor conclusivos ou convicções íntimas, não corporizados em factos visíveis ou reais, que podem alicerçar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente contra o direito e, muito menos, com o propósito específico de lesar alguém.
VI. Por outro lado, não é a prática de qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra o direito, com o alcance definido no n.º 1 do art. 369.º do CP; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça. Não basta, pois, que se tenha decidido mal, incorrectamente, contra legem, sendo necessário que quem assim decidiu tenha consciência de que, desviando-se dos seus deveres funcionais, violou o ordenamento jurídico pondo em causa a administração da justiça.


E outro ainda para se entender melhor: 

Ac. STJ de 20-06-2012 : I. No descortinar da actuação prevaricadora do juiz ou de denegação de justiça deve-se usar de um crivo exigente, até porque, a ser diferente, ou seja, de todas as vezes que o destinatário da decisão dela discorde, seja porque não se aplicou a lei, se seguiu interpretação errónea na sua aplicação, se praticou um acto ou deixou de praticar, os Magistrados Judiciais ou do MP incorressem num crime de prevaricação, estava descoberto o processo expedito de paralisar o desempenho do poder judicial, a bel prazer do interessado, pelos factores inibitórios que criaria aos magistrados, a todo o momento temerosos de sobre eles incidir a espada da lei, paralisando-se a administração da justiça, com gravíssimas, intoleráveis e perigosas consequências individuais e comunitárias, não se dispensando, por isso mesmo, a presença de um grave desvio funcional por parte do Magistrado pondo em causa a imagem da justiça e os interesses de terceiro.
II. A actuação contra direito é uma forma de acção gravosa e ostensiva contra as normas de ordem jurídica positiva, independentemente das fontes (estadual ou não estadual) e da natureza pública ou privada, substantiva ou processual, incluindo os princípios vertidos em normas positivas designadamente na DUDH, PIDCP e CEUD.
III. A actuação contra o direito não abrange apenas a interpretação objectivamente errada, mas também a incorrecta apreciação e subsunção dos factos à norma; a aplicação da norma é contra o direito se, reconhecendo-se uma certa discricionariedade, o aplicador se desvia do fim para que foi criada a discricionariedade, incorrendo, então, na prática do crime.
IV. O crime de denegação e prevaricação é doloso, o tipo subjectivo de ilícito fica preenchido com a actuação com dolo (art. 14.º do CP), como resulta do uso 'conscientemente' no descritivo típico; o tipo agravado do n.º 2 não prescinde de uma especial intenção criminosa, de prejudicar ou beneficiar alguém, na forma de dolo específico.


Em resumo: os magistrados podem errar mas só cometem eventualmente o crime se o fizerem de modo ostensivo e doloso. Escandaloso.

Esta interpretação é que suscita dúvidas e permite navegar num limbo de irresponsabilidades várias.

Portanto a prevaricação em massa que atinge o MºPº em Portugal, neste momento, não se configura em modo criminal, como o apontado, mas antes como a "banalidade do mal", o crime de que não dá conta quem nele está imerso, por  apenas "cumprir ordens".

Assim: o MºPº na sua actuação como titular exclusivo da acção penal tem que se pautar por deveres de objectividade e isenção.
Um dos reflexos mais importantes desses deveres encontra-se na definição do que deve ou não ser investigado num inquérito criminal.
Sabendo que qualquer queixa ou participação criminal que entre em qualquer polícia deve ser comunicada ao MºPº no mais breve espaço de tempo, o que sucede é a classificação de tal expediente como inquérito, se disser respeito a um crime denunciado. O papel ou comunicação electrónica fica registado e um magistrado classifica na hora ou nas horas a seguir.

E depois o que sucede, com o magistrado titular desse processo? O seguinte:

Deveria antes do mais verificar se as suspeitas de crime são consistentes, nos termos dos artigos seguintes e decidir em conformidade. 

Artigo 262.º
Finalidade e âmbito do inquérito

1 - O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
2 - Ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito.



Artigo 272.º
Primeiro interrogatório e comunicações ao arguido

1 - Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la.


Artigo 283.º
Acusação pelo Ministério Público

1 - Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele.
2 - Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.


Artigo 277.º
Arquivamento do inquérito

1 - O Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito, logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento.
2 - O inquérito é igualmente arquivado se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os agentes.


Nos procedimentos aqui previstos decorre quase toda a actividade do MºPº na área de investigação criminal e nos intervalos entre o recebimento da denúncia e a finalização do processo pode ocorrer o que MST apresenta como motivo de queixa.

Sempre que o MºPº analisa mal a matéria denunciada, qualificando como crime assuntos de fronteira ética ou empolando entendimentos subjectivos sobre comportamentos individuais que não atingem tal dimensão, prevarica porque está a decidir contra direito.

Será tal fenómeno frequente e a merecer preocupação pública? Alguns sinais indicam que pode ser. Desde logo o excesso de legislação extravagante, para além dos códigos, mormente na criminalidade económico-financeira, contrasta com a carência de clareza em algumas leis ou mesmo a omissão legal.
Por exemplo o crime de "gestão danosa" só o é se estiver em causa alguma empresa pública e não há, como noutros países, a criminalização de abuso de bens sociais, quando alguém usa em proveito próprio bens que são de sociedades e as descapitaliza.
Por outro lado, reportando-nos ao caso concreto do que ocorreu na CGD e que até hoje se sabe, torna-se notória a existência de tal crime indiciado, pelo menos. O que fez o MºPº logo que tal foi indiciado, aquando do processo do Marquês? Extraiu certidão para investigar devidamente tal facto, agora notório?  Ou prevaricou por omissão?

A recente onda de perseguição criminal a autarcas e empresários relacionados, por causa de ajustes directos entre tais entidades pode ser outro exemplo concreto.
Será relativamente fácil estabelecer conexões criminais entre comportamentos que aparentemente o são. Entidades públicas a contratar privados para fornecimento de bens e serviços sempre foi corriqueiro.
A eventual troca de favores entre ambas, com incidência criminal, tem que ser muito bem especificada e mostrada e não pode soçobrar à tentação do que o que parece, é. Pode não ser e se alguém força o entendimento, integrando condutas em crimes que podem não existir, prevarica, neste caso por acção.

Outro caso  em que pode existir tal efeito é o do inquérito aos "acontecimentos de Alcochete". Terrorismo?! É sensato decidir assim? E se de facto não o for, a prevaricação torna-se clara.

Nas comarcas do país existem centenas de milhar de processos, anónimos, mas com gente lá dentro. A actuação do MºPº tem de pautar-se pelos mesmos princípios em todos eles. Não se deve acusar ninguém que seja duvidoso ter praticado crimes nem se deve ilibar alguém, arquivando os processos no caso de haver crimes suficientemente indiciados.

Em que zona prevaricará mais o MºPº? Não tenho qualquer dúvida: quando acusa de modo leviano ou porque "tem de ser" ou porque se torna mais fácil acusar do que arquivar, o que acontece quando a prova é dúbia e não se vê forma de a esclarecer, optando-se pelo efeito mais gravoso porque é o mais simpático hierarquicamente e o mais apropriado a uma cultura que não deveria existir.

A cultura da acusação de que o MºPº padece, cada vez mais, tem um efeito pernicioso e  provém de um fenómeno típico: um  MºPº  gizado para exercer a acção penal, como parte e não para ajuizar penalmente, como magistratura, a objectividade de factos. A polícia padece do mesmo síndroma e comunica tal efeito aos magistrados e principalmente magistradas do MºPº.
A esmagadora maioria da investigação criminal em Portugal, mormente a de maior importância é policial, não é de magistratura e não se vê maneira de alterar este procedimento. Os magistrados já nem sequer assumem o papel de "juizes do processo", mas apenas de burocratas do procedimento correctamente processual.

A cultura de perseguição criminal surge porque a rotina profissional a tal conduz. As denúncias e participações criminais normalmente não são totalmente infundadas, mas tal não significa que sejam fundadas na sua maioria, até porque a percentagem estatística de arquivamentos é  maioritária por larga margem.  Ou seja, só uma pequena percentagem de processos crime tem seguimento para julgamento.

A qualidade intrínseca de um magistrado deveria observar-se nessa actividade e na competência para exercer aquela destrinça, com precisão e clareza. Mas não é isso que acontece porque as inspecções ao serviço não têm esse desiderato como principal objectivo.
Assim aquela cultura vai fazendo caminho aos poucos, logrando atingir um paradigma que não deveria ser o desejável.
Tal paradigma assenta principalmente na formação profissional dos magistrados e no entendimento geral do que o que vem de trás, toca-se para a frente. E quem não fizer igual é potencialmente prejudicado, mesmo pelas próprias inspecções ao serviço, efectuadas por magistrados formatados nessa escola de profissão.

Um magistrado que acusa muito, recorre muito e é "combativo", é qualificado como sendo de craveira excepcional e não é exagero de expressão porque é a linguagem codificada do mérito.  Os resultados, em julgamento, importam nada porque a estatística tem aqueles parâmetros.

Esta cultura, generalizada, do MºPº em Portugal é o principal problema desta magistratura.

Não é tanto a autonomia, embora este problema tenha outro objectivo: sapar e deslegitimar o poder judicial. É um meio para um fim. E no fundo é isso que os vários MST que pululam nos media pretendem: diminuir a influência dos juízes e do poder judicial que perseguem os que lhe são próximos.
Só isso. Sendo grave, é outra questão.

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