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quinta-feira, maio 07, 2020
A ética dos pobres
A revista Sábado de hoje traz uns artigos que só não "fizeram" a capa porque o assunto não venderá tanto como as férias incertas que se aproximam.
Referem-se tais artigos a fenómenos que vicejam na sociedade portuguesa há muitos, demasiados anos e não há meio de desaparecerem, antes pelo contrário aumentarão daqui para a frente.
O assunto é a corrupção de costumes que leva os pobres a perderem o sentido ético do dever ser em função de valores mais deletérios e relativizados.
Um dos temas é sobre a circunstância de um irmão do presidente da República, advogado de profissão, beneficiar de alguns contratos que o Estado celebrou por ajuste directo em tempo lugar e modo que não deveria ser aquele em que se realizaram.
A legalidade dos actos parece não estar em causa mas nem por isso suscita apreensão o facto de se tratar do irmão do presidente da República e este de algum modo ter intervindo activamente na matéria básica dos mesmos.
O primeiro caso é mesmo exemplar: em 2 de Novembro de 2018 o presidente da República disse na Madeira que um novo hospital local deveria acelerar a sua concretização e passados alguns dias, o governo regional adjudicou directamente ao advogado irmão do presidente a consultadoria jurídica de tal obra de vulto, no âmbito da contratação pública.
Não deveria ter sucedido, mas é legal.
O presidente da República pronunciou-se por escrito sobre o assunto que a revista lhe apresentou e disse que era pessoa independente do irmão e que não interferia pessoal ou politicamente em qualquer decisão que o afectasse.
Não é o ponto, mas o presidente da República devia saber que as pessoas sabem que Pedro Rebelo de Sousa é irmão do presidente da República e que algo que este possa fazer também o pode afectar, indirectamente.
Se o irmão do presidente da República aproveitar oportunidades que o Estado confere, no âmbito de contratação pública, nas circunstâncias concretas em que aquele o foi e noutros que estão descritos na Sábado, deve saber que tal afecta necessariamente o presidente da República.
Portanto deveria ele mesmo abster-se de participar em tais contratos, por uma razão muito simples e que todos entendem: quem quiser obter as boas graças do presidente da República ou até evitar a hostilidade do mesmo se souber que um irmão, com quem se dá bem, esteve interessado em determinado contrato e foi preterido por qualquer motivo, tenderá a favorecer mesmo sem intenção tal interesse. E isso é eticamente nocivo a qualquer honra que se preze, neste âmbito de alta política e altos governantes e altos interesses.
Isto que parece óbvio parece também que é substimado senão desprezado por ambos, o presidente e o irmão advogado.
Porque razão? Não vejo nenhuma a não ser uma, prosaica: o irmão do presidente da República, advogado de profissão precisa mesmo deste tipo de ajudas do Estado e por isso aceita correr estes riscos reputacionais.
Se assim for é duplamente triste: mostra que somos um país pobre em vários níveis. E nem preciso explicar quais.
Tudo isto é triste e tudo isto é fado. Pior ainda é o caso dos "negócios milionários" encetados na senda da crise do bicho que atravessamos.
Aparentemente nem existirão ilegalidades flagrantes, apenas o síndrome exposto da mesma questão: somos pobres e estes indivíduos que se aproveitam destas circunstâncias não têm outras oportunidades de negócios tão rendosos como este. Logo...a ética nunca deu de comer, a não ser a quem faz profissão de escrever sobre esse e outros assuntos, como uns cronistas que andam por aí, a viver desse prestígio efémero da notoriedade avulsa.
O caso de Sousa Tavares, um dos tais, também versado na revista e que publica uma missiva para se defender de acusações que julga torpes, é diverso mas vai dar ao mesmo.
Legal e eticamente pode assistir-lhe toda a razão. Porém, é um facto que comprou uma casa a uma entidade que se tornou dona e que antes pertencia ao seu compadre. Contra factos...os argumentos são etéreos e hipócritas, por vezes.
Se fosse noutro caso, com outras pessoas, por exemplo do BPN, ainda veríamos o mesmo cronista do Expresso que vive precisamente de prestígio efémero de uma notoriedade avulsa, a vociferar por escrito contra a falta de ética das conveniências e mesmo das aparências.
Enfim.
Esta ética exposta é a dos Paz Ferreira, dos Júdices, dos Sérvulos, dos Morais Leitão e outros Galvão Telles e ainda um ou outro Cluny, infelizmente.
Não há meio de lhes mostrar que não é a ética ensinada a Nicómaco há milénios. Como poderiam aprender algo tão antigo que se aprende num berço que pouco ou nada tem de arrivista?
Todos os mencionados dizem muito mal de Salazar. Percebo cada vez melhor qual a razão da hostilidade.
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