Um dos fenómenos que caracteriza melhor a actual democracia em Portugal é o das cunhas, ou seja, do tráfico de influências entre quem detém poder, seja do que for, na esfera pública e das escolhas que tal permite, mormente de apaniguados do mesmo sistema partidário ou de grupos de interesse conluiados objectivamente no aproveitamento de recursos de todos.
Este artigo de Eduardo Dâmaso na Sábado de ontem dá a devida tonalidade ao fenómeno:
A ideia é simples: os eleitores potenciais do CHEGA são os descontentes com o sistema político vigente cujos protagonistas "deixaram cristalizar no seu seio um grupo de famílias políticas que monopolizam o controlo da coisa pública e que tem hoje uma dimensão de verdadeira casta. Casta no sentido quase cleptomaníaco em que a palavra é usada em países como Itália".
E. Dâmaso acha que o CHEGA vai beber nessa fonte de descontentamento democrático. Não sei se será assim ou não e nesta altura de cepticismo científico ainda maior se torna o mesmo quando o ramo é o das ciências humanas.
Porém é possível mostrar como a desvergonha já vem de longe. Ora repare-se neste figurão democrático que fez figura em governos da AD e que se deu ao luxo de dizer isto que a mesma revista publicou em 14.6.2007, já passaram mais de uma dúzia de anos.
Esta noção ética contrasta com a que existia antes de 25 de Abril de 1974, mormente no tempo de Salazar.
Nesse tempo, na Assembleia Nacional assistia-se a um fenómeno inverso ao dos dias de hoje. Nos anos imediatamente anteriores a 1974, desde o desaparecimento de Salazar que o governo estava entregue a Marcello Caetano que tinha princípios éticos e morais semelhantes àquele impoluto presidente do Conselho, um Mestre que muitos deveriam ler para compreender certas realidades humanas e sociais.
Não havia democracia formal mas no final dos anos sessenta o regime procurava uma saída para o problema da guerra no Ultramar e para o desenvolvimento económico mais acelerado e qualificado do que já existia ( e era da ordem dos 6 a 7%!).
Marcello Caetano começou por tentar aggiornar o regime aproximando-o de uma democracia com participação mais alargada de outras forças políticas para além da União Nacional que passou a chamar-se Acção Nacional Popular. Evidentemente, de fora ficaria o partido comunista, tal como ficou de fora na Alemanha do pós guerra e pelos mesmos motivos. Ainda assim nas eleições de 1969, a CDE que concorreu e a CEUD que também fez tinham elementos comunistas e socialistas, notórios e conhecidos e consabidos pelo regime. Em 1970 formara-se a SEDES uma associação que poderia ter resultado no embrião de um partido como o PPD/PSD e o regime deixou de ser autocrático de todo, por um tempo.
Apareceram então na Assembleia Nacional alguns indivíduos que se convencionou chamar a Ala Liberal e que incluíam Sá Carneiro e Pinto Balsemão, este amigo de Marcello Caetano e próximo do mesmo no início. As "cunhas" entre ambos, na troca de favores de índole política e empresarial são contadas no terceiro volume da obra de José António Saraiva já aqui mencionada ( Estado Novo: a história como nunca foi contada, Gradiva, Novembro 2020).
O grupo dessa "ala" depressa se desencantou com o regime e passou a oposição real, conduzindo à demissão dos respectivos deputados e isolando Marcello Caetano, ao mesmo que tempo que aparecia o Expresso daquele Balsemão, em Janeiro de 1973.
Num dos últimos confrontos verbais na Assembleia Nacional um dos deputados da ala, Miller Guerra exprimia-se assim publicamente nesse local e segundo o livro citado:
A diferença com o que hoje acontece é notória: na pele do CHEGA da actualidade estavam os da "ala liberal" e na pele dos da "situação" estavam precisamente os que hoje estão na mesma "situação".
A "situação" é que mudou radicalmente e tal mudança não representa o povo em geral, por muito que queiram dizer que sim, mesmo nas tv´s de hoje que em nada se distinguem do canal único da RTP de então, sujeita a censura e aos jornais da época igualmente submetidos a exames prévios sobre o respectivo conteúdo.
Hoje em dia, os exames prévios são originários do espírito atamancado dos próprios jornalistas formados nas madrassas onde imperam os da "situação". Os poucos que resistem nem sequer têm lugar ao Sol, quanto mais poderem publicar ideias em Expresso!
O impasse é, tal como antigamente, notório. Há uma franja importante da população que além de se sentir defraudada pelo sistema sente-se enganada quanto à Verdade das coisas. A corrupção que é generalizada, como reconhece Eduardo Dâmaso, no sentido apontado, é apenas um sintoma.
O advento do 25 de Abril de da Revolução que mudou radicalmente a "situação" aconteceu devido a vários factores entre os quais o cansaço das pessoas em geral em não vislumbrarem um futuro melhor para os filhos se não para eles próprios.
Neste momento, em Portugal, o caldo de cultura está em lume brando mas pode começar a ferver em qualquer momento.
O CHEGA, nisto, é apenas um epifenómeno, a meu ver.
"E esta, hein?!"
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