Há um pouco mais de 50 anos a cultura em Portugal tinha um significado um pouco diverso de hoje. Reportava-se a um saber ancorado em fontes que ainda provinham do universo escolar e era acompanhado por outras formas de conhecimento em que a tradição continuava a ser o que sempre fora.
Havia então uma instituição nacional, privada e com origem na fortuna de um turco de ascendência arménia que teve autorização para fazer uma Fundação como elas devem ser: com dinheiro privado e destinadas a proveito público. A Gulbenkian era e continua a ser de algum modo o paradigma de tal noção.
Para divulgação cultural, livresca, a Fundação organizou uma rede de bibliotecas, incluindo ambulantes e que passavam periodicamente pelas aldeias do país rural, emprestando livros a crianças em idade escolar que assim aprendiam algo que complementava o que podiam saber da escola.
No início dos anos sessenta começou a publicar e distribuir um Boletim Informativa que a par das novidades trazia pequenos ensaios culturais sobre matérias de Humanidades, como História, Filosofia, Letras, Teatro, etc.
Nesses boletins aprendiam-se noções culturais importantes e fundamentais que permitiam perceber quem éramos, na Europa e no mundo.
A História de Portugal aprendia-se na escola, desde muito cedo e era substancialmente apologética dos nossos feitos e façanhas contra outros povos e noutras terras, com grande destaque para a gesta dos Descobrimentos dos séculos XV e XVI.
Nos boletins da Gulbenkian, dirigidos por pessoas de cultura universitária e nem por isso demasiado afeiçoadas ao regime, contava-se a História como me habituei a ler e perceber, complementando aqueloutra, escolar.
Foi assim que me identifiquei como português "aqui e agora", como dizia um esquerdista das proclamações baladeiras dos anos setenta ( um tal José Fanha) e aprendi que somos o fruto dos nossos antepassados que vieram de longe e de muito longe, alguns deles e por isso o nacionalismo só tem sentido nessa perspectiva relativa aos povos que colonizaram os que por aqui se encontravam e com eles misturaram os genes.
E se antropologicamente assim foi em modo biológico, culturalmente foi semelhante e por aqui, nestes recortes de tais boletins se pode ver como foi.
Em 1970, o Boletim nº 18 dava uma noção do que era a cultura, neste caso portuguesa, de um modo que agora não vejo escrito:
Como aqui se escreve "à data da fundação de Portugal não existia na Europa uma cultura original, coesa e irradiante como no decorrer dos milénios fôra a cultura greco-latina".
Aliás, tal cultura europeia demoraria séculos a formar-se. Portanto, o que existia no tempo dos nosso afonsinhos deste condado inicial era a velhíssima cultura greco-latina temperada por outra coisa: o cristianismo. Assim, tivemos os trovadores que foram influenciados pela cultura provençal e depois apareceu a literatura de "viagens" e dos "descobrimentos" culminando na epopeia dos Lusíadas fortemente influenciada pelos mitos do classicismo greco-latinos.
Assim, começando pelo início e com ajuda do Boletim nº 8 de 1967, podemos ler um resumo do "milagre grego":
Seguido pelo "romano", já decadente:
Mas que nos legou algo que ainda hoje é matriz do nosso viver social:
E foi através de Roma que sentimos este fenómeno avassalador e fundamental para a nossa civilização ( Boletim 10 de 1968):
E que originou ainda outro fenómeno que precede em muitos séculos a fundação da nossa nacionalidade, aliás das mais antigas da Europa e enquanto nação com fronteiras definidas, mesmo a mais antiga ( Boletim 9 de 1967):
Como se lê, os beneditinos da Ordem de S. Bento, foram os primeiro frades estabelecidos em mosteiros, com regras próprias e tal sucedeu logo no
século VI, em Monte Cassino, muito antes de sermos condado portucalense, pois nessa altura por cá ainda estavam os suevos, vindos das terras germânicas e que se converteram ao cristianismo, antes daquela ordem ser quem foi. A ordem veio para Portugal
nessa altura da nossa fundação, tal com outras, incluindo as de vertente militar e que iam para a Terra Santa combater os mouros. Logo, a nossa civilização local e de índole europeia, foi sempre de combate e guerra a tais "infiéis". É uma matriz que nos acompanha desde então.
E outras ordens religiosas existiam nos tempos anteriores à fundação da nossa nacionalidade que ocorreu assim ( Boletim 10 de 1968):
E assim se formou Portugal que foi acompanhada do desenvolvimento de outra região civilizacional, Bizâncio, aparentada com a nossa porque também cristianizada, apêndice a Leste do cristianismo ocidental, construtora da
catedral de Santa Sofia, em Constantinopla, hoje Istambul, dominada pelos turcos a partir de meados do século XV, precisamente quanto começámos as nossas "viagens e descobrimentos".
Enquanto durou o Império Romano, Bizâncio foi a capital a Leste, tendo sobrevivido à queda de tal império, embora com as particularidades de pretender assumir uma independência e distanciamento face a Roma e à romanização. Pendeu sempre mais para o lado helénico.
Bizâncio foi sempre bizantina, diversa e sujeita a outras influências, mormente as dos que nós combatíamos por cá. A religião cristã, em Bizâncio não era exactamente a mesma que por cá, devido aos rituais mais próprios da cultura grega em detrimento da romana. Por isso mesmo se separaram da hierarquia apostólica e romana,
desde muito cedo, praticamente desde os primórdios da nossa nacionalidade.
Foi Bizâncio e a ortodoxia de lá que deu origem aos patriarcas que por causa disso têm outra cultura em aspectos que são distintos dos nossos.
E porquê? Talvez aqui se encontre a resposta ( Boletim 9 1967):
Está lá escrito que as primeiras universidades são ocidentais, inteiramente europeias: Paris, Bolonha, Oxford, Cambridge, Varsóvia, Upsala, Pádua, Utreque, Salamanca e Lisboa, depois Coimbra.
Quanto às catedrais, o primeiro modelo é bizantino, o de S. Sofia e depois há outras que surgem nos países com influência do império bizantino, incluindo regiões da Rússia.
As catedrais que tempos por cá, em Braga, Lisboa ou Coimbra, são romano-góticas. Porém este estilo gótico surgiu apenas na altura do início da nossa nacionalidade e em Portugal manifestou-se mais em Alcobaça ou Batalha. Ou seja, em mosteiros. O de
Alcobaça, do tempo da fundação é de uma ordem que teve origem na beneditina.
O mosteiro de
Santa Cruz, em Coimbra, da mesma altura, foi uma escola e importante centro difusor de conhecimento e cultura medievais. Talvez por isso estão lá os túmulos dos dois primeiros reis de Portugal. Depois terá sido mesmo local de estudo de um certo Camões e a sua importância pode ver-se na mistura de estilos arquitectónicos posteriores. A igreja de Santa Cruz, em Coimbra, a par dos Jerónimos e da Batalha é o nosso verdadeiro Panteão.
É um retrato da nossa identidade dos tempos medievais até à posteridade do século XIX em que ocorreu a extinção das ordens religiosas por força dos políticos de então. Os "mata-frades".
Um dos principais até figura em estátua a poucos metros daquele mosteiro de Santa Cruz.
Porém, apesar destes iconoclastas e terroristas culturais e religiosos, foi destes centros de conhecimento e outros que surgiu a cultura portuguesa e a nossa identidade.
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