O articulista do Observador Nuno Poças tem este artigo interessante que encaixa no tema que se anda aqui a discutir:
Como esta aldeia do advogado Poças não é lá muito parecida com a minha, quanto ao povo que lá havia e ao seu modo de ser, vou tentar dizer como era na minha terra até há uns anos, indo ao tempo que antecedeu a tal década de 80, altura da tal emigração de uma elite que não sei bem quem seja...porque quem era qualificado antes sempre procurou poiso rentável algures, eventualmente na estranja e isso desde sempre, pois não é de agora.
Assim, vou começar:
Na aldeia onde vivi e os meus pais e avós viveram havia médico, desde pelo menos os anos sessenta, altura em que apareceram as Casas do Povo, como na aldeia do advogado Nuno Poças.
A diferença é que o médico tinha assento diário ou várias vezes por semana, num dispensário equipado com o que era essencial à função em edifícios bem concebidos e bem construídos, hoje quase todos reconvertidos em coisas da "cultura" e quejandas novidades que nessa altura também por lá havia porque até existia um salão e um palco.
E o médico, ambulante, tinha igualmente o apoio diário de uma enfermeira ( eram mais enfermeiras que enfermeiros, nesse tempo, o que desmente ipso facto uma propalada discriminação de género e profissão) com conhecimentos suficientes para fazer curativos rápidos e urgentes. Antes de haver a Casa do Povo já havia porém, serviços médicos e de enfermagem que funcionavam numa casa particular cedida por alguém que não precisava da mesma. E havia o farmacêutico que distava alguns, poucos quilómetros, que se faziam de noite, se necessário para acudir a alguma emergência, normalmente com as crianças pequenas.
O farmacêutico ainda era dos que não tendo diploma tinha a experiência que estes só dão passados muitos anos e por isso era o Sr. Vieira, bonacheirão e sempre disponível a quem se ficavam a dever igualmente favores que os necessitados dos seus préstimos pagavam em géneros.
Não era vergonha nenhuma pagar em géneros e sempre assim foi entre as pessoas das aldeias, ou seja dos "campos". Ainda hoje é assim, segundo me parece.
A sua riqueza não vinha ainda dos rendimentos mínimos e sociais "de inserção", um bónus que apareceu há algumas décadas e ajudou a esquecer este modo de ser, pagos por todos para todos os que se apresentam com credenciais adequadas, mesmo fictícias.
O rendimento das pessoas do campo, das aldeias, vinha da poupança do que sobrava do que vendiam nas feiras e mercados, locais ou municipais, do leite que entregavam no posto, todos os dias, duas vezes por dia, num caneco de lata que por vezes se esqueciam de lavar e era rejeitado pelo "homem do posto", obrigando a uma educação sanitária que logo esqueciam no curral e nas côrtes do gado que aliás ficavam na parte de baixo dos pequenos quartos das casas "quanta caibas", separados pelo sobrado em madeira.
Toda a gente dessas aldeias e portanto da minha, pensava que tinha que poupar "para uma doença". Era assim, porventura há séculos e por isso estes costumes atávicos não se esvaem com o tempo de algumas décadas, coisa que o advogado Nuno Poças se calhar não ponderou, como argumento dissuasor da sua prosa jeremíada.
Se o povo da aldeia dele e da minha dava géneros ao sr. doutor, fosse médico, das leis ou da universidade escolar, fazia-o por genuíno sentimento de gratidão e recompensa de labor prestado. Não era de "chapéu na mão" ou de "lenço que não estivesse roto dos ramos na cabeça", em sinal de subserviência manhosa, porque a subserviência dos ditos humildes é quase sempre desse tipo. Era por respeito por quem tal merecia aos olhos de quem precisou.
Uma troca, afinal e para não ficarem a dever favores, coisa que as pessoas das aldeias percebiam muito bem porque tinham uma dignidade que tende a acabar e que alguns nem sequer entendem.
Talvez o advogado Nuno Poças não saiba alguns destes rifões da sabedoria popular do tempo dos seus avós, mas estes certamente os conheceriam:
Ao médico, ao letrado e ao abade, falar verdade.
Deus cura os doentes e o médico recebe o dinheiro.
Erros de médico, a terra os cobre.
Médico velho, advogado novo.
O melhor médico é o que se procura e não se encontra.
Remédio caro faz sempre bem, senão ao doente, ao boticário.
Porco fiado, todo o ano grunhe.
Poupai o vosso, não mendigareis o alheio.
O precisar ensina a rezar.
A preguiça é a chave da pobreza.
Pedido recusado nunca mais é perdoado.
Pede a quem herdou que não sabe o que lhe custou.
Aos pobres até os cães ladram.
Quem isto sabia não é "humilde". É conhecedor das pessoas e das coisas. E nas aldeias, mesmo na minha, havia muita gente dessa, felizmente. Sem diplomas, com a agricultura de subsistência e com os géneros para pagar serviços.
Finalmente: "Aproveita-te do que diz o velho e valerá por dois o teu conselho".
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