O ano de 1974, para mim, foi um ano de descobertas estéticas importantes, na música e na banda desenhada.
Nos dois anos anteriores a banda desenhada resumia-se ao Jornal do Cuto e ao Tintin que aparecia por cá na edição semanal local e original, belga.
No início desse ano descobri a revista Pilote na edição original que era completamente diferente do que o Tintin oferecia e apresentava incursões na ficção científica e nos desenhos um pouco mais vanguardistas do que os tradicionais que o Tintin publicava.
Algumas ilustrações, como esta de Druillet, estavam a anos luz do Tintin tradicional:
Essa versão da revista já era diferente da original, dos anos anteriores e começara esta nova fórmula- Nouveau Pilote- em Novembro de 1973, continuando a ser de edição semanal.
O editorial do dono da revista, René Goscinny, em 8 de Novembro de 1973 a justificar a mudança:
Não obstante, tirando uma paginação ligeiramente diferente com as letras dos títulos mais adelgaçadas e suplementos centrais dedicados a novidades editoriais, pouca diferença se notava da fórmula anterior.
Já se anunciava no entanto algo que viria a mudar o panorama da bd franco-belga nos anos vindouros, com a ficção científica e o aparecimento de pequenas editoras independentes como a Futuropolis que declinava o nome de Étienne Robial, um designer transformado em editor e amador de banda desenhada.
Este "Nouveau Pilote" durou pouco tempo e ao fim de meia dúzia de números deixei de comprar, aí por alturas de Abril de 1974.
Passados dois meses, em Junho de 1974- surpresa!- vejo no escaparate esta nova edição:
Mais pequena 3,5 cm em altura e 2,5 em largura, a nova edição era agora mensal e tinha mais páginas, 97 contra as 54 anteriores. Custava mais caro, 45$00 contra os 27$50 anteriores. Era melhor, no entanto, a meu ver. O editorial do mesmo Goscinny, a justificar a mudança:
Os primeiros números desta nova fase eram entusiasmantes e cheios de novidades que se tornariam mais usuais nos anos vindouros, de uma nova idade de ouro da bd franco-belga.
Ainda assim, passados alguns meses, logo no início de 1975 a revista tornou-se também um pouco fastidiosa, à semelhança das renovações anteriores. O último número que comprei desta nova série foi o 13, em Junho de 1975.
Apesar disso, foi durante o ano de 1974 e 1975 que descobri a colecção da revista em "recueils" que abrangiam várias edições particularmente do início dos anos setenta e que se vendiam na Bertrand.
Os "anos Pilote" duraram de 1959 a 1989, os trinta gloriosos da bd franco-belga.
Em finais de 1974 já conhecia outras obras de artistas que se vieram a estabelecer como favoritos nessa arte, como Moebius e Tardi.
Deste último fiquei impressionado com duas histórias publicadas num dos "recueils" que arranjei em Junho de 1974 e publicadas originalmente alguns meses antes:
De Moebius vim a saber no início de 1975 e através da revista Rock & Folk que começara a comprar no final de 1974 e lia avidamente para conhecer as novidades discográficas, que o mesmo tinha fundado, juntamente com outros trânsfugas da Pilote uma nova revista: Métal Hurlant, com peridicidade trimestral e cujo primeiro número é de Fevereiro de 1975.
"Métal", como a música de Led Zeppelin que nessa altura publicaram o disco Physical Grafitti. O Tintin já lá ia...e tudo por causa da Rock & Folk cuja história já foi contada em 2007 por um dos seus fundadores, Philippe Koechlin.no livro "Mémoires de rock et de folk". A equipa chegou a ser esta e as capas das revistas mostradas são dos anos sessenta ( a alemã Twen e Salut les copoains) e setenta, particularmente depois de 1974 :
Esteticamente, sob o ponto de vista gráfico, a Rock & Folk era um portento e em Novembro de 1974 o sumário apresentava-se assim, variando de número para número com outras intervenções gráficas, particularmente da autoria de um certo
E o que tem isto a ver com as tintas de Robial? Pois...tudo. Étienne Robial vivia no meio artístico e editorial parisiense e foi um fundador da Futuropolis, anunciada naquela página da Pilote do início de 1974 e cujo logotipo é a meu ver algo genial, e que me fascina ainda depois destes anos todos.
A imagem é extraída do livro "Alphabets+tracés+logotypes" daquele, publicado em Paris em 2021, aqui de uma segunda edição de 2000 exemplares:
A Futuropolis tinha publicado um album de Tardi que se tornou mítico para mim e só recentemente arranjei um original ( minto, é uma edição de 2005, um pouco mais pequena que a original 30/40), da verdadeira história do soldado desconhecido.
A revista dBD, de Abril deste ano dá várias páginas ao artista gráfico, efectivamente um "mágicos das letras" e nesta imagem a bricolar o livro indicado:
No livro indicado publicam-se mais imagens do trabalho de Robial ao longo dos anos. É a ele que se deve o design do logotipo da revista desde o começo, bem como a paginação, original e com destaques a traço grosso e letras em grande formato que me fascinaram desde o início.
O nº7 de Maio de 1976, curiosamente o primeiro que tive nas mãos e li, tem toda a capa desenhada por Robial.
E o sumário típico de tal designer:
Com o reconhecimento do editor:
Bem como um anúncio com outras capas desenhadas por Robial, incluindo a de Jason Muller, elogiada pelo americano Milton Glaser e obras da editora Futuropolis.
Aliás quase replicado na revista Rock & Folk de Maio de 1976:
E um anúncio alargado à Futuropolis:
Entre 1974 e 1978 foi este o meu mundo das artes em banda desenhada. Um mundo fantástico em que vivia quase sozinho porque não conhecia ninguém que gostasse do mesmo ou sequer tivesse conhecimento disto.
Aliás, a revista Métal Hurlant nem aparecia por cá, nessa altura, nos circuitos de importação regulares, da Bertrand ou outros. Assim, só posteriormente conheci a revista, desde os primeiros números.
Em Fevereiro de 1978 apareceu no escaparate da Bertrand outra revista, com uma capa dedicada ao artista Tardi e igualmente um logotipo e composição gráfica da autoria de Étienne Robial. A preto e branco lá fui comprando uns números até desistir passados meia dúzia de anos. Era a revista de Jean-Claude Forest e depois Milo Manara, tudo a preto e branco.
Quanto a Robial continuou ao longo dos anos da décadas de setenta e oitenta e até agora a surpreender graficamente:
A história das tintas de Robial na composição gráfica de títulos e letras de paginação é uma história fascinante que começa bem antes dos anos setenta, aliás em meados dos sessenta e está ligada à revista Rock & Folk como esta também está ligada à Métal Hurlant.
A Rock & Folk apareceu em 1966, antes mesmo da Rolling Stone americana e foi um rebento da revista francesa "Jazz hot", um título aliás desenhado algumas vezes por um tal
Francis Paudras já falecido e que apreciava a música jazz de Bud Powell, entre outros.
O Maio de 1968, ao contrário do que se poderá pensar não está ligado à música rock, mas ao jazz, em França, um viveiro de artistas de jazz, refugiados e que além do mais sentiam o ambiente mais fácil para tocarem e se exprimirem do que o americano que assistia ao aparecimento do rock, imparável. Há quem queira a este propósito deitar uma brasa na sardinha do racismo mas isso serão outras contas que aqui não se fazem de modo simplista.
Ora a Rock & Folk nasce sob a influência de outra revista, neste caso alemã, Twen que se publicou durante os anos sessenta e que tinha como artista gráfico Willy Fleckhaus, ainda hoje considerado por aquelas paragens, assim:
A Twen era o modelo gráfico da Rock & Folk, tal como assumido por aquele fundador Koechlin, deste modo:
Como diz o autor, a "minha obsessão, no fundo, foi sempre a mise en page", ou seja a composição gráfica e artística de uma página.
Também é uma obsessão minha descobrir estas coisas, mesmo tarde. Mas...quem é que se interessa por isto, em Portugal?
Vendo os exemplos de publicações que por aí há e houve, se calhar ninguém. Nunca vi nenhum artigo em nenhuma publicação, mesmo as dos anos oitenta do Indy e afins a escrever sobre isto. Não conhecem, provavelmente. E não sabem o que perderam.
O exemplo mais próximo de uma publicação com alguma atenção esmerada ao aspecto gráfico foi o semanário Já, de figuras adjacentes à extrema-esquerda e que saiu em 1996, tendo desaparecido com o esquecimento.
Em finais de 1973, porém, havia quem se interessasse e a prova é esta com a revista Cinéfilo, dessa altura, com um modelo gráfico muito semelhante ao de Étienne Robial. Duvido que o mesmo conhecesse mas ainda assim é curioso...
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