Euclides Dâmaso, PGA jubilado, escreveu agora um apontamento no Observador sobre a questão da autonomia interna do MºPº, aproveitando o embalo ledo e cego que entreviu no tapete que lhe estenderam para tal. Escorregadio, a meu ver e que leva a que alguém prudente se possa estatelar, como me parece ser o caso.
Euclides Dâmaso, jubilado do MºPº, escreveu e publicou em 2021 um pequeno memorial, com cerca de 100 páginas de notas biográficas e o dobro em acrescentos com "outros textos" e que intitulou "No Ministério Público e arredores".
Sobre os arredores há muito pouco e sobre o MºPº pouco há, apenas o suficiente para se confrontarem estes escritos e a lógica que os perpassa.
Euclides Dâmaso, como magistrado do MºPº, na área do Centro do país, notabilizou-se sempre pelo combate interminável e constante à corrupção, no campo de treino processual e na teoria do treino teórico-prático, com propostas e intervenções ousadas, em defesa de tais pontos de vista, logo desde os anos oitenta. Honra lhe seja feita por isso uma vez que não há muitos que se lhe comparem nessa matéria.
Os exemplos que comporta da sua actuação enquanto magistrado de base e também como polícia, director de polícia Judiciária mostram um voluntarismo que era e continua a ser raro, porque balizado em normas e ética profissional exemplares.
Estes exemplos são do referido livro, tirados do tempo em que esteve na Polícia Judiciária de Coimbra e dependia por isso dos titulares dos processos penais, os magistrados do MºPº, apesar de tal não se revelar no escrito:
Peguemos no caso singular de Abílio Curto, investigado pela PJ de então, dirigida por Euclides Dâmaso, na Directoria de Coimbra de tal polícia que no final dos anos oitenta levou uma reviravolta com a atribuição ao MºPº da titularidade dos processos penais e a subjugação da PJ ao estatuto de mero órgão de polícia criminal, o que suscitou então sérias reservas aos profissionais da PJ, habituados a décadas de grande autonomia... mesmo que dirigidos por magistrados.
Abílio Curto segundo o relato de Euclides Dâmaso foi investigado pela PJ, da Guarda e Coimbra, sob orientação do magistrado, na pele de director de polícia. Em menos de um parágrafo, conta-se que foi preso em 1995, julgado e condenado com trânsito em julgado em 2004, pelos crimes de corrupção e fraude na obtenção de subsídio. Aparentemente, um sucesso processual. Terá sido?
Atente-se
nesta notícia do Expresso de Fevereiro de 2004. Já nessa altura o único defensor do vínculo foi o habitual Vital, na figura de sabujo do PS:
A pergunta que se impõe é claríssima: esta investigação foi um sucesso em nome da verdade material? Alguma vez se investigou o facto denunciado como criminoso pelo próprio arguido?
Outra história: a dos médicos subscritores de receitas maradas em nome de laboratórios farmacêuticos. Conta-se que em Coimbra, ao contrário de Lisboa onde preponderava já o magistrado Rosário Teixeira, no DCIAP, conhecido por encher sacos de volumes processuais, podaram os factos e acusaram quatro médicos que foram condenados. Porém, um pormenor dá conta de que foi proposto ( pela PJ naturalmente) ao magistrado titular do processo a prisão preventiva dos clínicos, o que não foi aprovado pelo mesmo, "como era de costume".
Outra ainda, mais pitoresca: a do rapto em Termas de Monfortinho, em Março de 1993, cujo registo do tempo de intervenção da PJ e de Euclides Dâmaso, ainda se pode ver no youtube. A pergunta a colocar é simples: hoje em dia, com a proposta de Euclides Dâmaso, em repristinar a celerada directiva da PGR que implica uma subordinação casuística e arbitrária dos magistrados de "base" ás hierarquias mediatas e imediatas, seria possível a "façanha" descrita como tal pelo próprio protagonista?
O que se pretende dizer com estas observações objectivamente discordantes da proposta de Euclides Dâmaso é também muito simples:
O MºPº actual tem uma autonomia externa conquistada a ferros ao poder político, em 1992. Decorrente da mesma e coerente com tal sistema consagrou-se uma autonomia interna que passa pela responsabilização individual dos magistrados titulares dos processos de inquérito, excluindo interferências espúrias da hierarquia, casuístas, voluntaristas e arbitrárias, mesmo que registadas nos processos, como (não) sucedeu no caso Tancos.
Este caso devia ser paradigmático do que está mal da directiva em causa e a mesma nem sequer estava em vigor, pelo que a intervenção do então director do DCIAP, Pinto, se afigura ilegal e repreensível sob o ponto de vista deontológico. Nada lhe sucedeu, no entanto. E porquê?
Simplesmente porque nesse como neste caso do processo Influencer estava em causa o poder político-partidário e institucional de um certo partido e governo.
A questão fundamental para se sustentar e defender a intervenção hierárquica casuística e arbitrária da hierarquia mediata e imediata encontra esteio apenas nisto: nos casos em que tal suscita clamor público, mormente nos casos de recorte eminentemente político, como é o caso Influencer. Nada mais que isto.
Então, será razoável ou mesmo sensato defender uma medida legislativa que altere o figurino da autonomia interna do MºPº apenas para satisfazer os desejos de certo poder político ( de um certo PS, useiro e vezeiro nestas andanças, há décadas e também de um PSD de economistas que julgam ter o mundo todo a girar à sua volta, como é o caso triste de Rui Rio e por isso não admitem ser beliscados por outros poderes de investigação e controlo democrático)?
O que Euclides Dâmaso defende não tem interesse algum na maior parte dos processos e só desvirtua a qualidade de magistrado de quem os dirige, porque os funcionaliza a ter que prestar contas, sempre, de decisões tácticas tomadas nos processos. Tal situação, assim exposta, desincentiva, deslegitima e desmotiva o trabalho que como se pode ler na autobiografia citada, é muito valorizada no caso concreto.
Euclides Dâmaso, como delegado do procurador da República, se o fosse agora, concordaria com isso? Duvido muito porque contraria todo o espírito, empenho, saber e dedicação que demonstrou ao longo da carreira. Tornar-se-ia um funcionário atento e obediente ao sentir e humor das chefias mediatas e imediatas em casos singulares ou delicados como o Influencer?
Mais: o que é que neste caso Influencer poderia ser diferente se houvesse a intervenção hierárquica tal como pretende Euclides Dâmaso?
Os três magistrados do DCIAP não reportaram à chefia imediata do director do departamento? E este à titular do departamento, a própria PGR, o assunto em causa? Então o que era preciso mais?!
Que as chefias fossem outras?!
Às vezes parece que é esse o problema, mas se o for, todos estes escritos sobre o assunto falham o alvo e pretendem afinal atirar aos "arredores", o que seria deveras lamentável.
Como me parece e é com tristeza que o escrevo. Porque em vez de se defender a honra de um convento cujos monges nem podem manifestar-se publicamente, à conta de uma arreata mediaticamente imposta, salvo raras excepções de alguns como é o caso do autor do escrito, são os próprios monges que se apedrejam entre si, sem notar que na sombra estão os que esfregam as mãos por isso mesmo.
Melhor seria fazer como este clérigo de outra confraria e que em vez disso defende a honra do convento cercado pelos filisteus de sempre. Depois de ter visto satisfeitas as reivindicações contra o juiz celerado, Carlos Alexandre, cuja prestação sempre o incomodou por razões estranhas, regressa agora ao redil da sensatez:
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