O Público do passado dia 9 de Janeiro 2024 consagrou duas páginas ao obituário ao proprietário da etiqueta Orfeu que lançou em 1956 e durou algumas décadas.
Quem ler as duas páginas dos artigos assinados por Mário Lopes e José Alberto Lemos, se pouco ou nada souber sobre o decesso, ficará com a ideia que o mesmo foi um militante antifassista de primeira-linha, empenhado em promover os cantores de intervenção desde o início da época das baladas, passando pelos discos de José Afonso, Sérgio Godinho e José Mário Branco ou Adriano Correia de Oliveira, esses sim destacados activistas no antifassismo militante e de extrema-esquerda.
Quem consultar no Discogs a lista dos discos editados pela Orfeu repara na versatilidade e diversidade, com artistas de várias tendências. Os acima indicados são apenas uma pequena minoria que aliás nem deveria alimentar economicamente a editora. Essa ou outra...embora agora se queixem muito da censura e coisa e tal.
Arnaldo Trindade, fruto da sua educação e cultura não afinava pelo diapasão político do regime, mas não consta que tenha sido incomodado por algum acto "subversivo" por causa disso. Como muita gente em Portugal convivia com o regime e pactuava com a censura sem grandes episódios de revolta. Uma anedota típica é mesmo contada pelo articulista José Alberto Lemos, quando o disco single da dupla Jane Birkin/Serge Gainsbourg, Je t´aime, moi non plus, um disco com sonoridade verdadeira tórrida mesmo para os critérios da actualidade, foi colocado à venda no escaparate da loja de S.º Catarina, no Porto. O agente policial chegou lá para apreender toda a edição, mas recuou: levou cinco exemplares e recomendou ao dono que escondesse os restantes. É preciso dizer que este disco foi proibido em Itália e noutros países, sem censura explícita e institucionalizada. Isto em 1969, como noticiava a revista Mundo Moderno:
"Editou tudo o que era do reviralho, escreve J.A.L. e sendo relativamente verdade, faltam vários que gravaram noutras editoras então existentes. Fausto e Sérgio Godinho ou José Mário Branco, não editaram os tais discos do tempo de reviralho que aliás nunca o foram porque são discos que pouco oy nada têm de panfletário e foram editados por outras editoras e vendidos publicamente, bem como reproduzidos no rádio, com excepção do primeiro disco de Fausto que foi gravado na Philips,em 1970 na Holanda e se tornou um disco raríssimo porque nunca foi reeditado. A excepção a discos verdadeiramente de reviralho foram os primeiros de Luís Cília, mas não foram publicados antes de 1974.
Quanto a José Afonso o próprio Arnaldo Trindade explicou numa entrevista em três partes, concedida a João Carlos Callixto, no programa Gramofone, na Antena um, aliás disponível em podcast que começou a gravar o artista desde a altura em que foi proibida pela censura a edição de Os Vampiros que é um ep de 1963, editado por outra etiqueta concorrente, a Rapsódia, aliás a trabalhar no mesmo meio musical que Arnaldo Trindade também explorava.
No entanto, o primeiro disco de José Afonso editado pela Orfeu é este que aparece editado pela etiqueta Ofir, em 1974...o que não é explicado na entrevista. O primeiro disco Orfeu é de 1969, Menina dos Olhos tristes, aqui numa edição capciosa.
Arnaldo Trindade, aliás considera José Cid o seu artista preferido e que só editou a partir de meados dos anos setenta e que elogia extensamente na entrevista a João Carlos Callixto.
José Cid é uma espécie de Jeff Lynn português, com talento melódico incrível e capaz de compor belíssimas canções populares.
No primeiro episódio da entrevista citada, Arnaldo Trindade fala do Conjunto António Mafra que editou desde o início dos anos sessenta, poderia ser um dos grandes grupos portugueses com destaque internacional porque foram ouvidos por Ed Sullivan, o divulgador dos Beatles na América e que se prestou a fazer o mesmo ao Conjunto depois de os ouvir, neste disco provavelmente.
O Conjunto António Mafra, a meu ver é um dos maiores grupos musicais da música popular em Portugal, desde todos os tempos. A música de José Afonso é belíssima, sem dúvida em algumas composições, mas a dos Mafras é sublime na sintetização do folclore, costumes de época, humor e retrato de um modus vivendi que pouco ou nada tem a ver com estas reescritas da história pregressa à luz de um antifassismo recorrente, em alternativa que se possa ler em qualquer lado.
O contributo de Arnaldo Trindade para a música popular portuguesa poderia ter sido infinitamente maior se tivesse apoiado a aventura americana dos Mafras, frustrada porque os mesmos eram apenas músicos amadores.
De há uns anos para cá colecciono os discos originais do grupo, muito esquecidos e que se vendem por dois ou três euros. Música para mim, sublime no estilo e que ultrapassa Quim Barreiros, também artista Orfeu, por todos os lados menos por um: na brejeirice despudorada e que alimenta o burgesso local, como o inenarrável cómico Rocha o conseguiu fazer.
Esta forma de olhar e descrever a música popular portuguesa, tal como o Público o fez e actualmente é unânime em todos os media, tem uma explicação: aculturação acrítica a uma esquerda que desde há décadas têm o monopólio da comunicação sobre estes assuntos, juntamente com os artistas destacados, aliás sempre os mesmos e cujos discos se venderam sempre cada vez menos após o 25 de Abril de 1974, tal como Arnaldo Trindade refere.
A melhor explicação para o fenómeno pode ser esta apresentada, involuntariamente, por Eduardo Raposo num livrinho de 2000.
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