Não sei quem é a Clara Viana e que pergaminhos profissionais terá para se alcandorar a juiza dos juizes, mas sei, pelo que escreve, o que pode não saber da profissão de magistrado e o que verdadeiramente se faz nos tribunais.
O caso relatado no Público e noutros meios de informação ( este até se engana no que os juízes dizem...) , parte de um acórdão da Relação do Porto, de Junho do corrente ano, sobre uma decisão proferida por um tribunal de primeira instância, num caso criminal de índole sexual.
Só isso bastaria para colocar qualquer leitor do acórdão de sobreaviso sobre certas e determinadas coisas, mormente de índole processual penal, mormente estas: conhecer bem os factos reais e os que foram apresentados em tribunal que podem nem ser a mesma coisa, necessariamente; saber como se desenrolou a audiência em primeira instância e que provas foram produzidas, exactamente e que nem sempre se espelham nas sentenças; que versões dos factos foram verdadeiramente apresentadas e que valor lhes foi dado; qual o conteúdo da decisão concreta e todo os seus pontos essenciais; que motivos existiram para os recursos e como foram apreciados em segunda instância.
Será que a jornalista se preocupou minimamente com isso? Clara, que não!
O artigo do Público, típico na sua feitura e exemplo de outros também publicados pela mesma jornalista, porque relata factos e emite opiniões, incluindo de supostos peritos em matérias judiciárias, merece escapelo. Nestes artigos aparece sempre o cortejo habitual das luminárias do costume porque a jornalista não sabe fazer de outro modo e julgará que perguntar quando não sabe, lhe trará qualquer resposta válida.
O artigo começa com uma frase assim: "uma mulher de 26 anos foi violada por dois homens quando se encontrava desmaiada na casa de banho de uma discoteca". A afirmação é falsa, jurídica e factualmente e nunca deveria servir de mote para o que vem a seguir, incluindo a afirmação que os "factos foram dados como provados pela justiça".
A partir daqui é tudo opiniões misturadas com factos pressupostos. Aparece uma catedrática de Direito que terá dado opinião pelo telefone à laia de consulta jurídica sabe-se lá como e esta diz que "já tinha lido o acórdão", mas as afirmações que produz não contendem com algo essencial que estava em causa: a suspensão de pena pelo crime praticado. A sua opinião acerca da "estranha insensibilidade em matéria de graves atentados contra a liberdade pessoal" não se equaciona com a legitimidade da decisão ou com qualquer erro grave, processual ou de outra natureza. É apenas uma opinião, tal como foi a do Ministério Público que recorreu da decisão de primeira instância, precisamente para reverter a suspensão de pena.
Decisões como esta e com idênticos contornos há às centenas nos tribunais e não suscitam qualquer estranheza mesmo a professores catedráticos de Direito.
Porém, até aqui nada de especial e a opinião da catedrática, muito estimável aliás, nunca daria o título ou sequer notícia. Há um abuso no título e uma violação grave da ética jornalística que consiste em atribuir malfeitorias, neste caso jurídicas, a quem as não praticou. À jornalista vai acontecer alguma coisa? Nada de nada e vai repetir as façanhas mas enquanto estiver aqui levará troco se me apetecer. E não conheço pessoalmente o Manuel Soares de lado nenhum...mas continuemos.
A seguir à catedrática ouvida pelo telefone aparece um "sociólogo". Podia lá faltar um sociólogo, nestas coisas! E que diz o tal Manuel Lisboa, certamente também ouvido pelo telefone à hora de expediente? Pouca coisa porque não conhecia o acórdão, "nem o caso em pormenor". Mas não se coíbe de alvitrar palpite sociológico sobre violação de direitos humanos que pode ter ocorrido. Ou não fosse o dito cujo membro da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as mulheres. E contra os homens, haverá alguma, Manuel Lisboa? O sociólogo em causa, mesmo sem conhecer o caso e o acórdão acha que "poderá estar em causa uma clara violação da lei". Pois claro, Clara. E lá vem a seguir opinião "na sequência de outro acórdão polémico da Relação do Porto", acrescentado pela Clara.
Outro especialista ouvido em telefone foi um psicólogo, Daniel Cotrim, dirigente da APAV e suspeito de opinião enviesada logo por isso mesmo. Ainda assim, emite opinião definitiva: "mais uma vez a justiça portuguesa encontra uma série de atenuantes para o que devia ser considerado um crime grave". E isso sobretudo "porque a vítima é uma mulher". Está entendido não está? Se fosse um homem o caso era menos grave...
Conhece o caso, o psicólogo da APAV, subsidiada para o que faz em prol de vítimas e portanto interessada em fazer valer pontos de vista enviesados para esse lado da balança da justiça? Não sabemos se conhece porque o profissionalismo raro da jornalista não no-lo indicou.
Por fim, a catedrática que leu o acórdão e que esteve ao telefone mais de cinco minutos, ao contrário dos demais, deixa recados à Justiça portuguesa: têm que aprender "nas Universidades e no Centro de Estudos Judiciário" . Mas será difícil mudar mentalidades tão arreigadas a "milénios de tradição e desigualdade que pesam sobre nós". Mulheres, por supuesto...
Enfim, o que este triste artigo denota é muito lastimável porque evidentemente lhe subjaz uma causa e um propósito: castigar mediaticamente tribunais por decisões que entendem lenientes relativamente a crimes que envolvem mulheres. Tão simples quanto isso. E fazem-no num foro privilegiado que é o mediático, no qual manipulam a seu ble-prazer os sentimentos gerais da populaça que não gosta de magistrados e muito menos de decisões que apresentam como iníquas.
Estes artigos destinam-se consciente ou inconscientemente a dar pasto a noções deslegitimadoras do poder judicial, apresentando os tribunais em geral como constituídos por uma caterva de ignorantes e insensíveis que vivem numa torre de marfim e não sabem o que é o verdadeiro sentir do povo.
Para esta gente que me atrevo a apelidar de canalha devido à menoridade intelectual que revelam talvez seja bom lembrar uma quadrita de um poeta popular , António Aleixo:
Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos, que pode o povo
qu'rer um mundo novo a sério.
calai-vos, que pode o povo
qu'rer um mundo novo a sério.
Vós, jornalistas desta pacotilha que prometeis fustigar os tribunais, sem razão suficiente para tal, e julgais representar o povo, calai-vos porque pode esse mesmo povo, um dia destes, querer mesmo o que vós lhe dizeis para querer: a lei de Lynch e os tribunais populares.
O populismo jornalístico é isso mesmo. E basta ler os comentários ao artigo do Observador sobre o mesmo assunto para se ver como é e os efeitos desta cruzada.
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