Na autobiografia de Carlos Cruz que tenho vindo a citar a propósito da mutação de linguagem na transição dos anos setenta para a "democracia" em que julgamos viver, aparece uma passagem reveladora de muita coisa, incluindo a tal mutação linguística.
Diz o autor que vindo o tempo de Marcello Caetano este acabou por ceder a forças de direita conservadora a esperança de mudança anunciada no início, ou seja, em finais de 1968. E depois tem esta passagem: "Apesar da sua quantidade e maior ou menor violência, não havia medo na população que, em voz baixa, até aplaudia esses grupos ( LUAR, ARA, BR). A insegurança e o medo eram em relação à actuação da PIDE/DGS".
Isto parece-me extraordinário porque a ideia que tenho desse tempo que ainda vivi de modo a poder lembrar-me de tal, é a de que o terrorismo associado a tais grupelhos era execrado pela maioria da população e não o contrário. Talvez em certos círculos de Lisboa de que o autor fazia parte isso não ocorresse mas no país, como um todo, não me parece que tal seja verdadeiro, de todo em todo.
As "conversas em família" de Marcello Caetano por vezes davam ênfase a tais fenómenos de expressão extremista e terrorista e não me parece que tal fosse visto como desfasado da realidade e sinal de decadência do regime, antes pelo contrário.
Por isso mesmo tal afirmação do autor revela dessa forma como é que a linguagem se alterou, aos poucos e chegou até 1974 já modificada, nos media em geral, ou seja nos jornais principais.
Já em 1974, no Rádio Renascença, tentou-se a censura de textos noticiosos no horário da noite, por determinação de monsenhor Sezinando Rosa, designadamente no sentido de as notícias serem dadas sem comentários.
Entre 1972 e 1974 o panorama radiofónico e jornalístico não se alterou substancialmente e os nomes sonantes continuavam a ser os mesmos e aquele Carlos Cruz assumira responsabilidades de promoção dos discos da editora de Arnaldo Trindade, do Porto que promovia artistas de canções populares e sem pretensões. A grande aspiração de Arnaldo Trindade, nessa altura era ser representante dos electrodomésticos Philco...
Juntamente com José Niza ( muito politizado e que tinha sido mobilizado para a guerra no Ultramar, depois ligado o PS), José Calvário, Carlos Mendes ( igualmente de esquerda) fizeram Festa da Vida e ganharam o festival da canção de 1972, em nome da etiqueta Orfeu, de Arnaldo Trindade.
Depois disso em 1973 apareceu na televisão e da responsabilidade do mesmo autor, o programa Disco&Daquilo que era uma espécie de lufada de ar fresco musical, precursor dos programas futuros de telediscos, da MTV e afins e superior ao Do La Si ou mesmo ao Semibreve, dedicados ao mesmo tema da música popular. Lembro-me bem de ansiar por ver cada um dos programas e as novidades musicais apresentadas.
Na emissão de 18 de Dezembro de 1973 os nomes eram...sempre os mesmos, já conhecidos antes: Dinis de Abreu, Luís Villas-Boas ( dos festivais de Jazz de Cascais), Nuno Martins, Paulo de Carvalho e agora... Mário Viegas.
O nome de Mário Viegas é importante neste contexto por causa do seguinte relatado naquele livro:
Para além deste "diseur" e "poseur" havia outros, como este, aqui em Dezembro de 1971, também já promovido pelo programa de rádio 23ª Hora e que dizia poesia, por exemplo de Manuel Alegre, então refugiado em Argel e de onde apelava á revolta de portugueses na guerra de África, num exercício de patriotismo muito sui generis.
Ora quem é que acolheu logo no início dos anos sessenta, este diseur de poesia tão progressista no rádio? A Renascença, pela mão de monsenhor Moreira das Neves!
Outra figura inevitável destas andanças do rádio e das canções novas de festival era este melro que passou a apresentar várias músicas ao longo dos anos e a promover ideias de esquerda, igualmente, tal como mostrado aqui pela R&T em 31.7.1971.
Pedro Osório, músico de créditos firmados tinha concorrido ao festival em 1968, 1970 ( Corre Nina, com Paulo de Carvalho) 1972 ( música de Vamos cantar de pé, com Paco Bandeira) e diversas orquestrações :
Como se pode ler Pedro Osório trabalhava nessa altura para participar noutro festival, neste caso da Guarda, uma subespécie do género nobre que se apresentava todos os anos na RTP.
Este festival da Guarda era mal visto na época como resulta da caricatura ( ZéManel) da última página da revista nesse mesmo número em que se dá "vassourada" no estilo musical representado por exemplo por um Paco Bandeira que já tinha ganho notoriedade com o "Ó Elvas" ou seja "A minha cidade", uma belíssima música, por sinal:
Este género de dicotomia em que a pretensa qualidade se opunha ao cançonetismo piroso ainda era tema nesta altura mas já vinha de trás.
Em 7 de Março de 1970, Toni de Matos, um dos representantes lídimos do cançonetismo dava assim esta entrevista muito realista ainda nos dias de hoje e que até José Cid tinha de algum modo sufragado, no tema essencial, como atrás de mostrou.
O paradigma do bom tom e do bom gosto era antes este, publicado na edição de 14 de Março de 1970. Manuel Freire referia-se ao meio cabotino que era então o predominante, em que um programa de tv como o Zip Zip desencadeara um movimento cultural:
Um dos que ajudou a superar tal dicotomia ainda nos anos setenta foi um actor e músico que estava em França, fugido à guerra do Ultramar e que viria a dar muito que falar por causa da linguagem das suas canções. Mesmo em 1971 Sérgio Godinho já dava que falar, à R&T de 16 .10.1971.
O disco que iria lançar nesse Outono seria um e.p. contendo Romance de um dia na estrada e o dj do Página Um, José Manuel Nunes, alvitrava que era "o anúncio do novo figurino da música portuguesa neste Outono". E era.
A partir dessa música saiu depois, no ano seguinte, o primeiro lp, Sobreviventes cuja primeira música tem como tema Que força é essa...que trazes nos braços e começa com o verso "vi-te a trabalhar o dia inteiro, a construir as cidades para os outros...", alusões aos operários emigrados e que ainda hoje servem de hino a comícios do Bloco de Esquerda.
A mutação da linguagem começou assim a ser notória. O disco foi proibido por causa dessas e de outras mas depois foi autorizado e ficou a linguagem que se exasperou em 1975 de um modo radical e que perdura.
Em 1973 saiu um número da revista Seara Nova então dirigida por Augusto Abelaira ( que viria a ser director da Vida Mundial depois do 25 de Abril de 74) em que a linguagem evolutiva já é notória.
Num artigo de três páginas sobre o jornalismo e a linguagem já lá estão quase todas as palavras mágicas que viriam a ser pedras de toque em toda a imprensa e notíciários dali a pouco mais de um ano.
Uma definição avulta, além do mais: "informação neutra é informação que não divide" e a análise da informação em geral ainda hoje se torna interessante e útil:
O texto apresentado mostra bem o que sucedeu no panorama da imprensa portuguesa através dos exemplos concretos expostos e ao modo de redigir notícias.
Hoje em dia este texto é mais actual que nunca...e as últimas palavras do ideológo do actual Bloco de Esquerda, João Martins Pereira, são bem explícitas.
A prova? Está nesta capa da mesma revista logo em Maio de 1974:
A imagem ainda é demasiado "neutra" uma vez que só aparecem pancartas dos sindicatos, mas lá ao fundo já aparece a designação de "guerra colonial", coisa nunca vista até então em manifestações públicas ou linguagem corrente nos media- tv, rádio ou jornais.
Por outro lado o glossário completo aparece em duas páginas interiores e pela pena de um certo António Reis, um mação de Mação que integrava o PS e que tomou logo conta da RTP.
Vale a pena ler porque está aqui todo o fraseado e palavreado que tomou conta da imprensa dali para a frente.
O verdadeiro dicionário da novi-língua é este e nem sequer vem de um comunista...tendo surgido antes das bandeiras e de todo o folclore do esquerdismo nascente.
Com estas imagens começa outro tempo e outra linguagem.
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