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terça-feira, setembro 20, 2022

Os discos de vinil e a música rock

 Quando comecei a ouvir música rock com alguma atenção, no início dos anos setenta, os discos de vinil eram supérfluos para o efeito, porque havia o rádio, mas eram essenciais para complementarem a imagem que aparecia nas publicações dedicadas que os davam a conhecer e publicitavam os artistas. 

A música dos Beatles e de outros artistas, nesse início e para mim, era uma música de singles, de músicas dispersas que passavam no rádio e se ouviam em altifalantes no ambiente da época e se viam em fotos de jornal ou revista. 

A juventude da geração precedente que cresceu com o aparecimento e desenvolvimento do rock, na segunda metade dos sessenta, se vivesse em ambientes urbanos de certa dimensão, conhecia mais um pouco, porque havia discotecas que mostravam os artefactos e alguns compravam-nos. 

Em 1970 já tinha sido publicada uma série de obras de grandes artistas da música rock que ainda hoje perduram como clássicos de sempre. Beatles, Rolling Stones, Led Zeppelin, Simon & Garfunkel, Bob Dylan, Creedence Clearwater Revival, Jimi Hendrix, CSN&Y, toda a troupe de Woodstock era já matéria sabida para muitos que se aprestavam a escutar outras coisas que apareciam a um ritmo semanal. 

Os discos de vinil que davam substância física a estes fenómenos tornavam-se objectos de desejo para muitos jovens, ainda sem dinheiro para os comprar e que se limitavam a ouvir aqui e ali e no rádio e em muitos casos nem sequer viam os discos, por alguns serem raros e nem todas as discotecas os terem. 

Foi por isso que houve muitíssimos discos desse tempo anterior aos setentas e mesmo depois disso que nunca vira, até muitos anos depois. 

Tal fenómeno tende a suscitar a mitificação de determinadas obras que eram referências obrigatórias de audição e outras que assim se tornaram com a mitificação mediática posterior. 

Por causa disso algumas primeiras edições de certos discos, esgotadas, foram depois reeditadas sucessivamente, com maior ou menor sucesso. 

Por outro lado, as edições de discos, originárias de países, neste caso anglo-americanos, em fábricas espalhadas por todo o mundo, carecia de fontes como eram então as fitas gravadas, originais ou já em cópias sucessivas, para se produzirem em quantidades e num processo industrial específico.

Houve por isso discos que se produziram aos milhares de milhar e outros com menos tiragens, mas não menos importantes e míticos por isso mesmo.

Por exemplo, o disco Tommy, dos The Who, saído originalmente em Inglaterra em 1969, com grande sucesso popular e crítico, teve várias reedições em variados formatos, ao longo dos anos mas até determinada altura poucos ligavam a isso. A minha cópia é de 1973 e actualmente considerada de qualidade, semelhante à original. As discussões acerca do assunto são interessantes.

Não obstante, com o filme de 1975, de Ken Russel, o disco ganhou novo impacto, tanto na versão de banda sonora como na original, nessa altura há muito esgotada e que por isso só muito mais tarde ouvi e ainda mais tarde consegui arranjar o lp de prensagem  britânica. 

Aliás, tal disco, segundo este sítio de confiança, nunca chegou a ser editado em Portugal, localmente. Desse modo todos os exemplares que eventualmente se mostravam nos escaparates das discotecas da época eram de importação e portanto, em números reduzidos. Já o disco de 1975 foi editado nessa altura, em Portugal o que significa que a maioria dos ouvintes conhecia Tommy da versão em banda sonora do filme de 1975. Como eu na época. 

O disco dos Beatles, Let it be, lançado originalmente no Reino Unido, em Maio de 1970, numa bela caixinha de papelão, nunca foi produzido em Portugal nesse formato pelo que os que por cá apareceram eram de importação. Aliás tal como o disco simples que só foi produzido por cá em 1982. 

O disco Sticky Fingers de 1971,dos Rolling Stones, com a capa do fecho éclair só em 1979 se produziu em Portugal, logo o que apareceu vinha de importações. 

Idem para o disco dos Jethro Tull Stand Up, de 1969, nunca por cá viu o dia em edição nacional pelo que só quem comprou as importações pôde ver as figurinhas recortadas dos músicos a surgir de repente  no meio da capa que se abria. 

Esse disco tal como outros, singular pelas suas características gráficas, só era conhecido da maioria dos interessados, de vista e em imagem publicada. 

O disco dos Crosby Stills Nash & Young, Déja Vu, de 1970, um portento gráfico, só apareceu por cá em 1977 e sem a magnificência da capa original, americana. 

Um disco de 1972, dos Wailers de Bob Marley, Catch a Fire e que tem uma capa em formado de isqueiro Zippo, nunca por cá foi visto senão em eventual importação.  

O mesmo sucede com outras pequenas obras primas de acabamento gráfico como o John Barleycorn dos Traffic de 1970, com a capa britânica em papel kraft ou a americana em serapilheira. Aliás, os discos dos Traffic dos anos setenta, quase todos com arranjos gráficos originais e interessantes não chegaram cá em produção nacional. 

O disco Brain Salad Surgery, dos ELP, de 1973, com a capa ilustrada por H.R.Giger, recortada em modo especial e que cheguei a ver nos escaparates, seria original inglês pois nunca foi editada por cá.

Durante muitos anos, em Portugal era esse o panorama: os discos originais, muitos deles eram de importação e quando vendidos desapareciam dos escaparates, durante anos a fio, ficando apenas na memória de quem os tinha visto alguma vez expostos.  Ficavam as imagens das publicações especializadas, muitas vezes a preto e branco.

E se no aspecto gráfico era assim no que se referia ao som as particularidades são ainda mais expressivas e importantes. 

As diferentes prensagens dos discos originavam diferentes qualidades sonoras, sendo as originais consideradas as melhores em modo de som. 

Ora quem não chegou a ouvir as versões originais de alguns discos importantes da discografia rock, só ulteriormente e nalguns casos muitos anos depois conseguiu ouvir tais discos e numa boa parte dos casos já num formato diferente, em cd e similares.

Para além disso, a indústria discográfica que se expandiu de modo exponencial durante os anos setenta, no final da década apresentava alguns problemas de qualidade no produto acabado do vinil, tal como se escrevia na revista Rolling Stone em 7 de Setembro de 1978, num suplemento dedicado ao Hi-Fi e no qual se explica clara e resumidamente o processo de produção de um disco de vinil e as suas dificuldades inerentes:



Tudo começava numa fita magnética de duas pistas, gravada a partir de uma misturadora de várias pistas ( 18 ou mesmo 24), num estúdio de gravação.  Com auxílio de um "torno" ( "lathe") para gravação física num disco lacado obtém-se uma matriz a partir dessa fita magnética. Depois, tal disco lacado é enviado para uma prensagem, limpo e recoberto de uma camada de prata que o torna condutor de electricidade e depois recoberto com uma camada sólida de composto de níquel. Tal camada de níquel é removida da tal matriz resultando numa cópia negativa do disco gravado inicialmente, chamada matriz metálica. Esta leva outra camada de níquel que é retirada e origina a cópia em positivo ou a "mãe metálica" que é examinada e avaliada quanto à qualidade de som. Leva uma última camada de níquel e a cópia final servirá para estampar o molde em vinil que chegará aos ouvintes. Há dois estampadores para cada lado de um disco que se inserem numa prensa com água para arrefecer o processo. Todo o processo de moldagem, automatizado, ocorre em menos de meio minuto e cada conjunto de estampadores dará para cerca de mil discos. Em meados dos anos setenta, a pressa em produzir milhões de discos ( o Frampton Comes Alive de Peter Frampto vendeu meia dúzia de milhões de exemplares no ano de 1976- e por isso, show me the way...) fez que tal cadência pudesse atingir as 3000 unidades, com manifestas perdas de qualidade sonora no vinil.

Tal como se refere no artigo, as editoras procuravam ter cuidado mas havia falhas, desde logo na selecção do vinil, nalguns casos reutilizado como plástico para moldagem de novos discos e no controlo de qualidade final dos discos.

No final dos anos setenta haveria cerca de cem fábricas para estes processos de fabrico de discos, nos EUA, embora a maioria se concentrasse em meia dúzia ou menos, com destaque para um produtor independente, a Monarch Record Manufacturing Company, cuja importância se verá. 

No artigo da Rolling Stone é citado várias vezes o responsável por uma dessas empresas, a The Mastering Labs ( TML que aparece nos discos, gravado na parte junto ao rótulo) e chamado Doug Sax, cuja produção é extensa, incluindo um dos discos acima citados ( Sticky Fingers dos Stones, cuja matriz para a produção da edição original britânica foi realizada em Los Angeles, a partir das fitas enviadas de Inglaterra).

Doug Sax aparece aqui numa foto antiga retirada do artigo da wikipedia, acompanhado com quatro máquinas de "torno" para produzir matrizes.

Por causa destes procedimentos na produção de discos, nessa mesma altura de finais dos anos setenta apareceu uma empresa de produção de discos, garantindo maior qualidade nessa tarefa. A Mobile Fidelity Sound Labs surgiu em 1977 e procurou colmatar falhas na produção de discos de vinil, assegurando a qualidade do produto.

Tal como se explica no artigo da Wiki o método de produção de reedições de discos já publicados anteriormente funcionava deste modo:

In 1977, Mobile Fidelity began to produce a line of records known as "Original Master Recording" vinyl LPs.
 These albums were previously released by other companies, licensed by Mobile Fidelity, and remastered using half-speed mastering from the original analog master tapes, without compression, and with minimal equalization.
 The recordings were pressed in Japan using a plastic compound, invented by JVC, and marketed as "Supervinyl" by Mobile Fidelity.

A "minimal equalization" pressupunha que a reedição não era forçosamente idêntica à original, embora as modificações pudessem resultar num produto sonoro mais audível para certos gostos. 
As "equalizações" podiam assim realçar certas frequências em detrimento de outras e geralmente os "baixos" mais puxados eram o must, tal como os agudos um pouco mais evidenciados. No meio sobravam todas as frequências médias que corriam o risco de se afogar um pouco nessa manipulação.
Durante anos assim foi e pelo menos até meados dos anos oitenta a MFSL produziu e vendeu, em reedição muitos clássicos da pop/rock, a preços mais puxados do que as edições normais, em alguns casos inexistentes. 
Em finais de 1982 a empresa publicou uma caixa com os discos dos Beatles, depois de em anos anteriores ter publicado três discos do grupo, em reedição e a partir de cópias das fitas originais, tal como aqui se conta
A caixa resultante, que esgotou as cerca de 25 mil cópias produzidas nesse ano, tornou-se lendária até este Verão em que estourou o escândalo, na sequência de outro, a propósito de aldrabices digitais: afinal as reedições nem seriam realizadas a partir das fitas originais, gravadas no Reino Unido mas cópias destas e em alguns casos, nos discos singulares, as cópias realizadas nos EUA a partir daquelas, para prensar os discos editados nos EUA, de qualidade inferior aos originais ingleses.
A história destas coisas conta-se agora em sítios como este, com as personagens originais.
Quanto às caixas de 1982, apesar disto ainda se vendem a preços superiores a 2 ou 3 mil euros, na Alemanha, por exemplo. 

Quando a empresa MFSL se formou e começou a comercializar os discos reeditados, a filosofia do marketing era esta, como se pode ler nesta edição da Rolling Stone de 26 de Junho de 1980, a primeira em que vi um artigo, neste caso publicitário sobre a empresa e os seus produtos: ouvir os Beatles como nunca antes tinham sido ouvidos...a não ser para quem lá esteve! Pois sim. Segundo se diz agora,  as últimas reedições da obra dos Beatles, realizadas na casa mãe, cilidram estas reedições da MFSL.
Os discos mostrados na publicidade são todos de 1980.


A ênfase era colocada na qualidade intrínseca do produto gravado, a partir de técnicas utilizadas em modo pioneiro e singular, como a gravação das matrizes em metade da velocidade, efeito só possível através de novas máquinas de reprodução das bandas magnéticas, originais ou cópias. 
Em 2 de Outubro de 1980 novo anúncio, desta vez a propósito de Abbey Road, um disco que foi lançado nesse ano e cuja fita original da EMI não foi utilizada mas sim a cópia da Capitol americana. Os restantes discos também eram de 1980 embora americanos e por isso susceptíveis de terem sido gravados a partir das fitas originais, como aqui se  explica para exemplificar a melhoria na reedição do disco, neste caso de um dos Steely Dan.


Numa página inteira publicada na Record de Junho de 1983 a empresa dava conta da sua vantagem competitiva no negócio da venda de discos em vinil. As reedições sucediam-se e abrangiam as obras esgotadas há anos e agora relembradas de novo para gáudio dos amadores de tais discos antigos, com a promessa de poderem ser ouvidos como antes nunca o tinham sido. O marketing fez o resto e antes da chegada do cd estas reedições eram um maná para quem queria ouvir o que nunca tinha ouvido antes. Por cá, não me recordo de ver algum destes discos à venda ou até de os ver publicitados:
 

Os anos oitenta foram marcantes na evolução do consumo e da tecnologia relativamente aos suportes musicais. 
O LP de vinil em meados dos anos oitenta tornou-se um artigo de consumo corrente e com descontos generalizados das editoras que então lançaram campanhas que apunha no plástico exterior da capa dos discos, rótulos de "nice price", "super savers", "best buy", "platinum savers" e outros. Tudo explicado aqui, em pormenor e cuidado, no forum de Hoffmann, um técnico dos discos.
Com a entrada de Portugal e Espanha no reino europeu do mercado comum generalizado foi um fartote de importações, vindas geralmente da Alemanha em formato "nice price" da WEA.
O que não havia por cá, em Espanha arranjava-se. 
Foi assim que reuni uma boa parte dos discos, alguns deles em prensagem original mas rotulados do modo indicado e uma boa maioria em reeimpressões posteriores à sua data de saída original.
Para mim que nunca tinha visto alguns desses discos na versão original, saída nos anos sessenta foi uma bênção e pude começar a reunir uma espécie de discoteca ideal com os discos de música que sempre apreciara e nunca tinha tido a oportunidade em ouvir desse modo.
A experiência começara logo em 1982 com a reedição, em Portugal da discografia mais importante dos Beatles, pela Valentim de Carvalho e por ocasião  da efeméride dos "20 anos dos Beatles", conforme este anúncio no Sete de 5 de Outubro de 1982


Foi então que ouvi alguns discos pela primeira vez, mesmo dos mais celebrados, como o duplo branco. Não os tinha ouvido na altura, os discos tinham desaparecido dos escaparates e não havia reedições disponíveis dos mesmos.

E como fazer para ouvir os clássicos que já tinham deixado de aparecer nos escaparates se as reedições por cá eram escassas e sem relevância? Havia uma alternativa para quem quisesse mesmo ouvir. Esta:




A importação de discos, por correspondência, a vendedores ingleses, como a COB ou a GEMA que por uma quantia determinada e nas condições indicadas exportavam a mercadoria que ainda passava nas alfândegas sem burocracias de maior. Foi assim que muitos portugueses arranjaram os discos que por cá não havia. E o catálogo, em 1982 era já extenso e incluía discografias completas de certos artistas, sendo alguns discos sobras de primeiras edições ou reedições que no Reino Unido eram frequentes. 
O primeiro sinal de que algo começara a mudar neste sentido vi-o na Rolling Stone de final do ano de 1980, por causa destes dois anúncios:

 


A música rock começava a contar a sua história já com quase três décadas e daqui para a frente foi sempre assim.

Gradualmente começaram a surgir campanhas de promoção de discos do "fundo de catálogo" e até finais dos oitenta foi a grande cornucópia.
Em Portugal não havia destas promoções porque quase tudo vinha da Alemanha da WEA e da "nice price". Tais campanhas permitiram então ouvir o que nunca tinha sido antes e a organizar colecções de discos mais em conta, mas com menor qualidade sonora, na maior parte dos casos. 
Ainda vinha longe o fenómeno das vendas à distância através de ebays e discogs que também revolucionaram o modo como as colecções de discos se organizaram em todo o lado por quem sentia tal necessidade. 
Em Espanha a oferta de discos de fundo de catálogo  era um regalo:







Em Itália, como mostra este anúncio na revista Alta Fedeltà de Novembro de 1990, a transição para outro fenómeno ainda maior estava em marcha, com o aparecimento de outro media que se tornaria revolucionário nas últimas décadas e alterou o modo como as pessoas passaram a ouvir e apreciar as músicas, incluindo as de outros tempos...


Então, em meados dos oitenta aconteceu o fenómeno que alterou a comercialização da música popular e não só: o aparecimento do cd, uma autêntica revolução que a indústria explorou desde o início como uma maravilha nunca ouvida.
Tal fenómeno já tinha sido anunciado,  como neste artigo da Rolling Stone de 19 de Maio de 1977. A era digital estava a começar:


 O aparecimento do cd foi por isso uma questão de tempo, como mostra a revista Musician de Fevereiro de 1982:

E na revista Record, uma variação da Rolling Stone que durou pouco tempo, em Agosto de 1983:


Também a MFSL encarreirou nesta fileira, até hoje e ao escândalo que motivou este escrito. 

Fica para a segunda parte mas refira-se que no final dos anos noventa esta empresa não estava sózinha no negócio das reedições de discos antigos, aprimorados na produção e apresentação publicitária. 

Em 1994 apareceu a editora Classic Records, num tempo já entregue ao domínio do cd e dedicada à prensagem de discos antigos com critérios de qualidade porventura superiores à da MFSL. 

Tais discos vendem-se agora como autênticos clássicos das reedições, em alguns casos considerados mesmo como superiores aos originais em função do cuidado posto na prensagem dos discos. O catálogo foi entretanto adquirido por outra editora especializada na produção de discos em vinil de alta qualidade, a Acoustic Sounds, de Chad Kassem que é actualmente provavelmente a líder na produção de tais preciosidades.


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