Quando comecei a ouvir música rock com alguma atenção, no início dos anos setenta, os discos de vinil eram supérfluos para o efeito, porque havia o rádio, mas eram essenciais para complementarem a imagem que aparecia nas publicações dedicadas que os davam a conhecer e publicitavam os artistas.
A música dos Beatles e de outros artistas, nesse início e para mim, era uma música de singles, de músicas dispersas que passavam no rádio e se ouviam em altifalantes no ambiente da época e se viam em fotos de jornal ou revista.
A juventude da geração precedente que cresceu com o aparecimento e desenvolvimento do rock, na segunda metade dos sessenta, se vivesse em ambientes urbanos de certa dimensão, conhecia mais um pouco, porque havia discotecas que mostravam os artefactos e alguns compravam-nos.
Em 1970 já tinha sido publicada uma série de obras de grandes artistas da música rock que ainda hoje perduram como clássicos de sempre. Beatles, Rolling Stones, Led Zeppelin, Simon & Garfunkel, Bob Dylan, Creedence Clearwater Revival, Jimi Hendrix, CSN&Y, toda a troupe de Woodstock era já matéria sabida para muitos que se aprestavam a escutar outras coisas que apareciam a um ritmo semanal.
Os discos de vinil que davam substância física a estes fenómenos tornavam-se objectos de desejo para muitos jovens, ainda sem dinheiro para os comprar e que se limitavam a ouvir aqui e ali e no rádio e em muitos casos nem sequer viam os discos, por alguns serem raros e nem todas as discotecas os terem.
Foi por isso que houve muitíssimos discos desse tempo anterior aos setentas e mesmo depois disso que nunca vira, até muitos anos depois.
Tal fenómeno tende a suscitar a mitificação de determinadas obras que eram referências obrigatórias de audição e outras que assim se tornaram com a mitificação mediática posterior.
Por causa disso algumas primeiras edições de certos discos, esgotadas, foram depois reeditadas sucessivamente, com maior ou menor sucesso.
Por outro lado, as edições de discos, originárias de países, neste caso anglo-americanos, em fábricas espalhadas por todo o mundo, carecia de fontes como eram então as fitas gravadas, originais ou já em cópias sucessivas, para se produzirem em quantidades e num processo industrial específico.
Houve por isso discos que se produziram aos milhares de milhar e outros com menos tiragens, mas não menos importantes e míticos por isso mesmo.
Por exemplo, o disco Tommy, dos The Who, saído originalmente em Inglaterra em 1969, com grande sucesso popular e crítico, teve várias reedições em variados formatos, ao longo dos anos mas até determinada altura poucos ligavam a isso. A minha cópia é de 1973 e actualmente considerada de qualidade, semelhante à original. As discussões acerca do assunto são interessantes.
Não obstante, com o filme de 1975, de Ken Russel, o disco ganhou novo impacto, tanto na versão de banda sonora como na original, nessa altura há muito esgotada e que por isso só muito mais tarde ouvi e ainda mais tarde consegui arranjar o lp de prensagem britânica.
Aliás, tal disco, segundo este sítio de confiança, nunca chegou a ser editado em Portugal, localmente. Desse modo todos os exemplares que eventualmente se mostravam nos escaparates das discotecas da época eram de importação e portanto, em números reduzidos. Já o disco de 1975 foi editado nessa altura, em Portugal o que significa que a maioria dos ouvintes conhecia Tommy da versão em banda sonora do filme de 1975. Como eu na época.
O disco dos Beatles, Let it be, lançado originalmente no Reino Unido, em Maio de 1970, numa bela caixinha de papelão, nunca foi produzido em Portugal nesse formato pelo que os que por cá apareceram eram de importação. Aliás tal como o disco simples que só foi produzido por cá em 1982.
O disco Sticky Fingers de 1971,dos Rolling Stones, com a capa do fecho éclair só em 1979 se produziu em Portugal, logo o que apareceu vinha de importações.
Idem para o disco dos Jethro Tull Stand Up, de 1969, nunca por cá viu o dia em edição nacional pelo que só quem comprou as importações pôde ver as figurinhas recortadas dos músicos a surgir de repente no meio da capa que se abria.
Esse disco tal como outros, singular pelas suas características gráficas, só era conhecido da maioria dos interessados, de vista e em imagem publicada.
O disco dos Crosby Stills Nash & Young, Déja Vu, de 1970, um portento gráfico, só apareceu por cá em 1977 e sem a magnificência da capa original, americana.
Um disco de 1972, dos Wailers de Bob Marley, Catch a Fire e que tem uma capa em formado de isqueiro Zippo, nunca por cá foi visto senão em eventual importação.
O mesmo sucede com outras pequenas obras primas de acabamento gráfico como o John Barleycorn dos Traffic de 1970, com a capa britânica em papel kraft ou a americana em serapilheira. Aliás, os discos dos Traffic dos anos setenta, quase todos com arranjos gráficos originais e interessantes não chegaram cá em produção nacional.
O disco Brain Salad Surgery, dos ELP, de 1973, com a capa ilustrada por H.R.Giger, recortada em modo especial e que cheguei a ver nos escaparates, seria original inglês pois nunca foi editada por cá.
Durante muitos anos, em Portugal era esse o panorama: os discos originais, muitos deles eram de importação e quando vendidos desapareciam dos escaparates, durante anos a fio, ficando apenas na memória de quem os tinha visto alguma vez expostos. Ficavam as imagens das publicações especializadas, muitas vezes a preto e branco.
E se no aspecto gráfico era assim no que se referia ao som as particularidades são ainda mais expressivas e importantes.
As diferentes prensagens dos discos originavam diferentes qualidades sonoras, sendo as originais consideradas as melhores em modo de som.
Ora quem não chegou a ouvir as versões originais de alguns discos importantes da discografia rock, só ulteriormente e nalguns casos muitos anos depois conseguiu ouvir tais discos e numa boa parte dos casos já num formato diferente, em cd e similares.
Para além disso, a indústria discográfica que se expandiu de modo exponencial durante os anos setenta, no final da década apresentava alguns problemas de qualidade no produto acabado do vinil, tal como se escrevia na revista Rolling Stone em 7 de Setembro de 1978, num suplemento dedicado ao Hi-Fi e no qual se explica clara e resumidamente o processo de produção de um disco de vinil e as suas dificuldades inerentes:
Tudo começava numa fita magnética de duas pistas, gravada a partir de uma misturadora de várias pistas ( 18 ou mesmo 24), num estúdio de gravação. Com auxílio de um "torno" ( "lathe") para gravação física num disco lacado obtém-se uma matriz a partir dessa fita magnética. Depois, tal disco lacado é enviado para uma prensagem, limpo e recoberto de uma camada de prata que o torna condutor de electricidade e depois recoberto com uma camada sólida de composto de níquel. Tal camada de níquel é removida da tal matriz resultando numa cópia negativa do disco gravado inicialmente, chamada matriz metálica. Esta leva outra camada de níquel que é retirada e origina a cópia em positivo ou a "mãe metálica" que é examinada e avaliada quanto à qualidade de som. Leva uma última camada de níquel e a cópia final servirá para estampar o molde em vinil que chegará aos ouvintes. Há dois estampadores para cada lado de um disco que se inserem numa prensa com água para arrefecer o processo. Todo o processo de moldagem, automatizado, ocorre em menos de meio minuto e cada conjunto de estampadores dará para cerca de mil discos. Em meados dos anos setenta, a pressa em produzir milhões de discos ( o Frampton Comes Alive de Peter Frampto vendeu meia dúzia de milhões de exemplares no ano de 1976- e por isso, show me the way...) fez que tal cadência pudesse atingir as 3000 unidades, com manifestas perdas de qualidade sonora no vinil.
Tal como se refere no artigo, as editoras procuravam ter cuidado mas havia falhas, desde logo na selecção do vinil, nalguns casos reutilizado como plástico para moldagem de novos discos e no controlo de qualidade final dos discos.
No final dos anos setenta haveria cerca de cem fábricas para estes processos de fabrico de discos, nos EUA, embora a maioria se concentrasse em meia dúzia ou menos, com destaque para um produtor independente, a Monarch Record Manufacturing Company, cuja importância se verá.
No artigo da Rolling Stone é citado várias vezes o responsável por uma dessas empresas, a The Mastering Labs ( TML que aparece nos discos, gravado na parte junto ao rótulo) e chamado Doug Sax, cuja produção é extensa, incluindo um dos discos acima citados ( Sticky Fingers dos Stones, cuja matriz para a produção da edição original britânica foi realizada em Los Angeles, a partir das fitas enviadas de Inglaterra).
Doug Sax aparece aqui numa foto antiga retirada do artigo da wikipedia, acompanhado com quatro máquinas de "torno" para produzir matrizes.
Por causa destes procedimentos na produção de discos, nessa mesma altura de finais dos anos setenta apareceu uma empresa de produção de discos, garantindo maior qualidade nessa tarefa. A Mobile Fidelity Sound Labs surgiu em 1977 e procurou colmatar falhas na produção de discos de vinil, assegurando a qualidade do produto.
Tal como se explica no artigo da Wiki o método de produção de reedições de discos já publicados anteriormente funcionava deste modo:
In 1977, Mobile Fidelity began to produce a line of records known as "Original Master Recording" vinyl LPs.Numa página inteira publicada na Record de Junho de 1983 a empresa dava conta da sua vantagem competitiva no negócio da venda de discos em vinil. As reedições sucediam-se e abrangiam as obras esgotadas há anos e agora relembradas de novo para gáudio dos amadores de tais discos antigos, com a promessa de poderem ser ouvidos como antes nunca o tinham sido. O marketing fez o resto e antes da chegada do cd estas reedições eram um maná para quem queria ouvir o que nunca tinha ouvido antes. Por cá, não me recordo de ver algum destes discos à venda ou até de os ver publicitados:
O aparecimento do cd foi por isso uma questão de tempo, como mostra a revista Musician de Fevereiro de 1982:
E na revista Record, uma variação da Rolling Stone que durou pouco tempo, em Agosto de 1983:
Também a MFSL encarreirou nesta fileira, até hoje e ao escândalo que motivou este escrito.
Fica para a segunda parte mas refira-se que no final dos anos noventa esta empresa não estava sózinha no negócio das reedições de discos antigos, aprimorados na produção e apresentação publicitária.
Em 1994 apareceu a editora Classic Records, num tempo já entregue ao domínio do cd e dedicada à prensagem de discos antigos com critérios de qualidade porventura superiores à da MFSL.
Tais discos vendem-se agora como autênticos clássicos das reedições, em alguns casos considerados mesmo como superiores aos originais em função do cuidado posto na prensagem dos discos. O catálogo foi entretanto adquirido por outra editora especializada na produção de discos em vinil de alta qualidade, a Acoustic Sounds, de Chad Kassem que é actualmente provavelmente a líder na produção de tais preciosidades.
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