O conhecimento da Esquerda portuguesa carece da leitura do livro A Foto,
recentemente publicado pela Âncora editora.
Livro que se lê de uma assentada e nos dá um retrato impressivo de como
pensam e viveram alguns dos indivíduos de uma geração que acabou por dominar a
intelligentsia do nosso último meio século. Há
um blog a acompanhar.
O livro, a pretexto daquela foto com cinquenta anos baseia-se
em relatos pessoais de oito figurantes numa fotografia tirada em Março de 1963,
ao cimo da Alameda em Lisboa, no campo
de futebol da associação de estudantes do IST, porque a maioria era aí
estudante.
É a foto de “um grupo de amigos que frequenta o café Pão de
Açúcar, a meio da alameda, para estudar, namorar, discutir política e fazer má
cara a um ou outro frequentador do café com ar mais suspeito, e que tomavam,
com as infundadas certezas da juventude, por informador da PIDE.”
Todo o livro, dedicado a rememorar essa foto e
circunstâncias pessoais das vidas daqueles intervenientes, roda à volta desse
velho fantasma, a PIDE e a sombra da Clandestinidade em que alguns passaram
então a viver para não serem presos pelo regime de Salazar e do Estado Novo.
Todos esses elementos da “foto”, com excepção de quatro ou
cinco, foram militantes do PCP, “ilegal e secretamente” como refere um deles,
Raimundo Narciso, na introdução ao livro
que escreveram a oito mãos.
As palavras Clandestinidade, Ditadura, Pide, repetem-se como
um mantra ao longo do livro para elucidarem o leitor sobre os leit-motiv
sociais daquelas vidas.
O que pretendiam Joaquim Letria, recrutado aos 16 anos pelo
PCP em 1960; Jaime Mendes, militante do PCP desde 1961 a 1989; José Gomes de
Pina, um compagnon de route que viveu sempre para as engenharias, algumas
públicas; Mário Lino, militante do PCP
de 1964 a 1991 ( já depois da queda do Muro); Noémia de Ariztía, activista
política e comunista desde o início dos anos sessenta; Paula Mourão, filha de
um inspector colonial de fazendas, casada com Mário Lino e igualmente associada
politicamente ao comunismo; Raimundo Narciso, comunista de gema desde o início
dos anos sessenta, condecorado pela URSS em 1965, juntamente com Álvaro Cunhal
e que desistiu do partido em 1987, mas não da Esquerda. Desde 1995 que milita no PS, a esquerda que
há quando a outra deixa de haver; Teresa
Tito de Morais, casada com Jaime Mendes, associada ao comunismo deste compagnon
de route que foi presa pela PIDE e ficou traumatizada mas exultou com o advento
do Mai 68, os hippies e tutti quanti. Como escrevia, o que pretendiam estes
refugiados do Estado Novo e da sua ditadura?
Como escreve Joaquim Letria na introdução, “ não há nesta
foto, um único graduado da Mocidade Portuguesa, posso assegurar”.
É claro que os adversários destes indivíduos eram os adeptos
do Estado Novo, os que viviam bem com esse regime e que apoiavam os seus
dirigentes. Ou até quiçá, os
indiferentes em geral e para quem “a política era o trabalho”.
Estes indivíduos sonhavam já com “ a independência das
colónias e com o fim do Império” e por isso mesmo alguns deles se declaram
abertamente “apátridas”.
Alguns deles colaboraram clandestinamente com forças que
pretendiam derrubar pela força o Estado Novo. Raimundo Narciso particularmente
ajudou a criar a ARA, força política que executou atentados à bomba em
Portugal, numa espécie de imitação dos grupúsculos revolucionários dessa Europa
fora, as Etas,as RAF e os IRAs. Todos de
extracção comunista e esquerdista e que pretendiam derrubar os governos
legítimos dos países onde actuavam para colocar no poder “ o povo”, em vez da
“burguesia”.
Nenhum dos oito fala nisso, no livro, mas a essência do
pensamento comum é e continua a ser a “luta de classes”, ou seja, o comunismo
fundamental, o idealismo sem fronteiras e a utopia dos amanhãs a cantar.
Como escreve Joaquim Letria, a fls. 17, “acreditavam que o
futuro era a seu favor e a História lhes daria razão. “ Uma superioridade moral a toda a prova. E que aparentemente se mantém, porque nada na História lhes ensinou algo ou os levou a esquecer fosse o que fosse.
A História no entanto não lhes deu razão nem tem dado ( embora insistam na ideia, agora
mudada para o novo bode expiatório de todos
os males sociais, os malditos “mercados”)
mas ainda assim nenhum deles desarma dos antigos amores.
Uma das retratadas,
Noémia Simões a páginas tantas, segundo Raimundo Narciso ( pág. 200) ainda
balbucia qualquer coisa sobre estas pessoas que “ não têm a certeza de que o
caminho que vocês fizeram nestes 50 anos tenha obedecido à melhor opção.”
Suspeito que a opção que ficou por cumprir, às tantas seria
a que foi frustrada pelos acontecimentos vindouros: a burguesia não se rendeu e
transformou os revolucionários em velhos burgueses, pequenos e intelectualmente anafados numa
nacional-burguesia que tomou conta do ambiente. Mário Lino fuma charuto ou
cachimbo? Parece que sim e que deu a ganhar mais dinheiro à grande burguesia
dos bancos e das empresas de gente bem do que jamais algum adepto de Salazar o
fez no seu tempo. Jamé! Foi ministro das Obras Públicas e as parcerias
Público-Privadas aí estão para o confirmarem sem dúvida alguma. Os ricos ficaram mais ricos com estes esquerdistas a mandar.
José Luís Judas, aqui lembrado por um deles é outro exemplo,
assim como um Pina Moura aqui lembrado por ninguém. São exemplos concretos do
desvio à utopia e a queda na entropia burguesa mais detestável.A única que se arrependeu e denunciou o embuste foi Zita Seabra, a renegada.
Não obstante, o maior drama desta gente, se drama existe, o
que duvido perante a ausência completa de arrependimento, é um logro, ou
seja, o “gigantesco embuste” de que falava um antigo comunista reconvertido às
delícias de um socialismo social-democrata, Mário Soares: a Liberdade por que
lutavam no Estado Novo era uma ideia de Liberdade falsa, totalmente pervertida pelo
regime em que acreditavam como futuro e modelo de substituição, o da URSS ou da
RDA ou a de qualquer um dos países ditos socialistas e que serviam de
referência para os oito magníficos esquerdistas portugueses aqui retratados.
A Liberdade por que lutavam não era livre e constituía apenas uma maior servidão.
Querem eles saber porquê? Basta
esta pequena imagem para mostrar o horror que escondem e não querem reconhecer-
Será que isto tem alguma comparação com o que se passava no Estado Novo de Salazar? E o tempod e Marcello Caetano também foi assim terrível e comparável?
Será que quem invoca sempre e a todo o momento a PIDE e a repressão e a Ditadura de Salazar não se lembra por um pequeno momento que seja que aquilo que nos prometiam em substituição era isto e ainda muito pior?
Por quem nos toma esta gente?
Assim o maior castigo para esse drama seria viver no
paradoxo esquizofrénico em que a Liberdade era apenas a maior das servidões,
tal como denunciava Orwell e que os mesmos não liam.
E contudo, apesar disso mesmo e de conhecerem agora a
realidade desse tremendo embuste, não desarmam e continuam a sofrer e exaltar
as virtudes da luta antiga que seria sempre inglória e brutal, muito mais do
que a que sofreram na pele, inflingida pelo Estado Novo.
Como exemplo patético desta mentalidade, tomem-se duas
pequenas anedotas do livro.
A primeira, é de Mário Lino como não podia deixar de ser. Em
1963 depois de conhecer a futura mulher Paula Mourão, foi pedir a mão ao pai, “o
inspector Mourão”, “ uma pessoa de fácies duro, com poucas palavras” e que se
mostrou renitente em autorizar o casório. Lino nessa altura, para evitar um temido "jamé", afoitou uma história prazenteira: “Uma vez um rapaz de poucas posses foi falar com o
futuro sogro, de nome Silva, homem abastado, para lhe pedir a mão da filha. O
pai da dita diz-lhe: “ouça uma coisa, a minha filha para o almoço tem, mas o
senhor, para o jantar tem?´Responde-lhe o pretendente da filha: ´Ó senhor
Silva, eu quando almoço bem, já não preciso de jantar”. Gargalhada do futuro
sogro e casamento aprovado…
A segunda é de Raimundo Narciso que é o exemplo mais patético. Passou muito tempo na URSS e as histórias que conta não são propriamente
condizentes com as histórias que os prisioneiros do Gulag contariam e que não devem
ter comparação com o nosso temperado Tarrafal.
São histórias de um país feliz e no qual o povo se trata por
“taváriche” numa plena democratização social. Havia apenas um pequeno senão: o café não
prestava. E não havia cafés. E Raimundo perguntava retoricamente “onde é que
discutiam política? Onde é que diziam mal, isto é, onde é que diziam bem do
Governo? Onde é que comentavam o último filme? Onde namoravam?”
Raimundo, certamente nunca soube a resposta a estas perguntas...porque não a dá.
Talvez nem lhe interessasse muito saber. Salazar pensava da mesma forma. Perguntar, para saber? Para quê? O povo precisa de saber isso, para quê?
Raimundo, depois de abandonar a fé no "Partido", converteu-se à religião da gestão. Foi gestor de empresas.Administrador. Mas não deve ser daqueles que ganha oito vezes o salário do presidente da República porque esse tal é vituperado no artigo do livro...