segunda-feira, dezembro 15, 2025

Morreu Nuno Rodrigues, o músico da Banda do Casaco

 Vi a notícia ontem e no Observador tem três comentários, mas todos elogiosos e subidamente distintos. 

Isto significa, além do mais que o músico Nuno Rodrigues, falecido aos 76 anos, era personalidade pouco mediática, mas a sua obra musical perdura e ficará para a posteridade, principalmente através dos álbuns da Banda do Casaco, formada em 1974, com elementos do grupo Filarmónica Fraude que no final dos anos 60 também tinham deixado obra para a história da música popular portuguesa. 

A dupla Nuno Rodrigues e António Pinho, a dupla maravilha destes grupos de excelência musical num tempo de escassez de talentos publicamente reconhecidos, conseguiu em pouco mais de uma dúzia de anos, desde o final dos anos sessenta até praticamente ao final da década de setenta marcar esse panorama ainda relativamente pobre da música popular portuguesa com raízes no autêntico folclore nacional e nos sons estranhos vindos de algures, como se dizia numa publicidade a uma bebida ( Gini, francesa) patrocinada pelos Pink Floyd em 1974. 

Sobre Nuno Rodrigues pouco conheço, para além da sua música e de uma ou outra entrevista que foi dando ao longo das décadas sobre a mesma. Nos anos oitenta ainda compôs algumas cançonetas de música ligeira mas o que interessa é mesmo a Banda do Casaco e a Filarmónica Fraude, para quem ainda se lembra e se interessa por isso. 

Já escrevi sobre esses grupos musicais nacionais e a última vez que escrevi foi por ocasião da reedição dos primeiros álbuns, particularmente o primeiro Dos benefícios de um vendido no reino dos bonifácios, um título arrincado pelo letrista, para mim genial,  António Pinho e que tive o gosto de conhecer pessoalmente. 

O postal da época, de 2022 era este:

                                                                            ****

 Foram agora publicados pela editora Universal, com dependência nacional, em baixo de forma,  dois discos em vinil que passaram completamente despercebidos nos media tradicionais (e nos outros também) e é uma pena. São estes, de 1974-75 e de 1976: 


Estes discos são, para mim, os mais significativos da música popular portuguesa nos anos setenta. Mesmo incluindo nesse lote os de José Afonso, tradicionalmente considerados os mais importantes da mpp, como Cantigas do Maio ou Traz outro amigo também. 

Esta classificação de um jornal especializado- Blitz- de há um pouco mais de dez anos, nem sequer os inclui no lote dos 50 "mais" de sempre...embora depois corrigisse o erro, incluindo o Coisas do Arco da Velha e ignorando o primeiro. E aqui também nenhum deles encontrou ouvintes.

A classificação do Blitz de Dezembro de 2004 coloca o disco de Fausto, Por este rio acima, como o melhor de sempre. Pois no meu entender qualquer um dos discos aqui mostrados da Banda do Casaco é melhor que esse. Para comparar basta ouvir a instrumentação dos temas tradicionais portugueses, de Coisas do Arco da Velha, com instrumentação de algumas canções de Por este rio acima, com semelhanças em canções desse tipo. É água do vinho e a originalidade e inventividade está toda do lado da Banda do Casaco e dos músicos que lá tocam. 

Porque é que este fenómeno acontece? Talvez a explicação possa ser encontrada por aqui, num pequeno estudo de "mestrado" típico dos alunos de comunicação social actual e acerca dos meios de informação jornalística musical em Portugal. Mesmo com imprecisões ( o Musicalíssimo é apontado como tendo surgido em 1978, quando é facto que existiu uma primeira série alguns anos antes e que ainda existia em 1974) o estudo mostra que em 1974 havia essencialmente a revista Mundo da Canção, como informação musical em Portugal e pouco mais, sendo este pouco, páginas soltas nos jornais generalistas. 

Quem quiser verificar apontará o costume: prevalência nas redacções de gente ideologicamente de esquerda e com poucas excepções, limitada no entendimento e cultura abrangente. O exemplo flagrante era a Mundo da Canção, com redactores comunistas e de extrema-esquerda, medíocres e que escreviam mal ( Tito Lívio e Jorge Cordeiro).

Aqueles dois discos surgiram numa altura de revolução em Portugal e não se incluíam no grupo dos baladeiros e autores já consagrados nas obras anteriores, como José Afonso, Fausto, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Adriano Correia de Oliveira, Luís Cília ou mesmo José Jorge Letria. 

A Banda do Casaco não tinha antifassistas notórios, de carteira profissional com atestado passado, reconhecidos como tal pelos media da nova situação. Só isso foi suficiente pela censura efectiva e eficaz à sua obra-prima de 1974-75 ( foi gravada no final de 1974 e lançado o primeiro single ainda nesse ano, sendo o álbum lançado em Janeiro ou Fevereiro de 1975, divulgado pela Página Um da Rádio Renascença de Luís Paixão Martins). 

Tirando esse exemplo singular de divulgação, o disco não passou no rádio e a sua divulgação ficou pelo passa-palavra. 

Era mais importante, nessa altura, passar o disco da Canção era uma arma, do GAC ou O que faz falta, de José Afonso, porventura o disco mais ouvido nesse tempo e do álbum Coro dos Tribunais, a par da Liberdade de Sérgio Godinhoou os do Fausto,  aliás de qualidade musical superior, mas inteiramente panfletários, como Venha cá, senhor burguês ou O Patrão e nós

Por causa dessa censura abrileira e de prec,  o primeiro da Banda do Casaco, vendeu por isso cerca de 4 mil exemplares segundo um dos seus autores ( António Avelar Pinho). O segundo, saído em 1976, já com um pouco mais de divulgação, mesmo radiofónica,  terá vendido quase o dobro. 

No ano de 1974 em Portugal sairam mais discos de mpp importantes e significativos, alguns deles daqueles autores. Porém, este primeiro da Banda do Casaco, Dos Benefícios dum vendido no reino dos bonifácios é um disco esquecido e por causa disso, de um prec de má memória e de uma cultura musical deficiente e enviesada. 

Mas não devia e o tempo que passou devia fazer justiça a tal porque se imporia tal reparação, para proveito de quem gosta de música e de obras de qualidade superior, neste caso portuguesas. 

Universal, herdeira da etiqueta original que editou o disco ( Philips-Phonogram e depois Polygram) agora verdadeiramente multinacional é a editora dos discos da Banda do Casaco. 

Em Portugal não sei quem gere a dependência local mas é certamente alguém sem sensibilidade para estas coisas, apesar de Nuno Rodrigues, um dos elementos da Banda do Casaco ter feito parte da estrutura organizativa, em tempos. 

Actualmente, a função de promoção será de um tal Paulo Sardinha e Sónia Pereira que disto que acima escrevi devem saber nada. Nem seria preciso a não ser para serem profissionais capazes de entender a importância cultural da música, para além do aspecto comercial. E por isso mesmo conseguirem vender mais destes produtos de consumo...

Por mim, descobri os discos por acaso, ao passar numa loja de discos que frequento deste muito jovem, portanto há décadas. Se assim não fosse nem dava por eles. 

E que valem técnica e musicalmente tais discos, mesmo nestas novas versões reeditadas dos originais? Valem muito, acredite quem quiser ou souber. E já tinha escrito isso há uns anos. 

O primeiro disco é uma recolha de temas ligados entre si em conceito, do género dos "concept-albuns" do estrangeiro ( The Who ou Frank Zappa, por exemplo), com uma musicalidade que me parece extraordinária, da autoria de Nuno Rodrigues, com excepção do primeiro e décimo segundo temas e  umas letras igualmente impressionantes da autoria de António Pinho, poeta que comparo a O´Neill, nestas pequenas intervenções escritas, no espírito e na forma.  Só isso bastaria para dar atenção aos temas e ao disco, mas há a instrumentação e a composição musical que o aproxima das obras estrangeiras da época do rock progressivo, sem lhe apanhar os tiques sinfónicos ou os arabescos bizarros. 

É predominantemente "acústico" no sentido que não predominam nas composições instrumentos eléctricos e basta ver a ficha técnica dos músicos para perceber tal coisa: guitarras acústicas de Nuno Rodrigues, José Campos e Sousa e Nelson Portelinha; violino e guitarra eléctrica de Carlos Zíngaro, autor dos desenhos da capa; piano de Luís Linhares que fez parte da Filarmónica Fraude, como aliás António Pinho; Celso de Carvalho em contra-baixo e vozes de quase todos, incluindo as de Judi Brennan e Helena Afonso. 

Tem uma sonoridade antiga que faz lembrar temas folclóricos e da música popular portuguesa e sonoridades cuja beleza musical me faz ouvir o disco sempre com o gosto das primeiras vezes. E já o ouvi, dezenas, centenas de vezes ao longo destes anos. É por isso um clássico, para mim. Mais que as obras-primas de José Afonso, Sérgio Godinho ou Fausto cuja temática panfletária é cansativa e limitativa do efeito poético necessário à sua apreciação intemporal. 

Ainda hoje este disco me parece revolucionário e não perdeu uma nota musical no seu interesse e actualidade, mesmo comparando-o com as obras dos compositores do momento, os antónios araújos ou mesmo o Sobral que diz gostar muito de Brel mas se calhar nem conhece isto.

Na época em que saiu a única crítica de imprensa que vi ( a Mundo da Canção ignorou-o completamente) foi a do Expresso, assinada por Pedro Pyrrait, ainda não rendido aos novos tempos que se anunciavam, mas já reticente quanto à "reacção". Dizia assim em 8 de Fevereiro de 1975, anunciando a saída próxima do disco:


"Importa mais uma vez ter presente o que representa a Banda do Casaco em mentalidade e intenções verdadeiramente novas na música popular portuguesa. É como se a Banda do Casaco fosse o 25 de Abril na música popular portuguesa". 

Tal e qual e depois de José Cid ter gravado e publicado as suas obras de referência que julga inultrapassáveis e se intitular o maior e melhor desta cantareira, esquecendo a sua falta de originalidade, mesmo na pop.  

O disco seguinte, Coisas do Arco da Velha não fica atrás do primeiro e há quem o considere mesmo melhor. Não é o meu caso que continuo a jurar que o terceiro- Hoje há conquilhas, amanhã não sabemos, de 1977- é que deve levar a palma. 

Este segundo disco da banda é outro compêndio de música popular original e com as mesmas características musicais do anterior.  Para além do grupo original com os dois elementos, mais os instrumentistas José Campos e Sousa e Celso de Carvalho e menos Carlos Zíngaro, intervêm as cantoras Mena Amaro e Cândida Soares que a partir dessa altura se passou a chamar Branca-Flor por causa da canção que aí canta ( Romance de Branca-Flor) com estridência medieval. 

Quatro músicas tradicionais dão o tom geral ao disco que tem 11 temas e que não sendo conceptual como o primeiro, é na mesma unitário no espírito musical e temático. Outro clássico. 


Em 1978, a Banda do Casaco publicou o seu quarto disco de originais e para mim o último com interesse semelhante ao primeiro. 

No O Jornal de 24.11.1978 ( os discos eram então lançados preferencialmente na época de Natal...) o crítico de ocasião, Luís Paixão Martins, fazia a recensão de tal disco- Contos da Barbearia- com um elenco de músicos muito mais alargado do que o núcleo original, o que aliás vinha do disco precedente, o aludido das Conquilhas


Luís Paixão Martins que então assinava Luís Filipe Martins, foi o primeiro radialista a divulgar a Banda do Casaco, no seu programa da Rádio Renascença, Página Um, segundo julgo. Tal como apontei na noite de passagem de ano de 1974 para 1975, altura em que o mesmo passou uma retrospectiva da música que apresentou durante esse ano no programa.


Nesses dois discos de final da década de setenta aparece o guitarrista António Pinheiro da Silva, Armindo Neves, outra vez Carlos Zíngaro e muitos outros e são por isso dois discos ligeiramente diferentes dos dois primeiros em termos musicais. 

Ah! E quem é que produziu tudo isto nos estúdios de gravação, em Portugal, na Rádio Triunfo? José Fortes, tal como aqui se explica.

Quanto às novas edições é lamentável que não tenham uma linha, uma referência ou sequer uma ligação de sítio de internet para se saber como foram realizadas. 

Assim fica por se saber se são produtos reproduzidos a partir das fitas originais de gravação, analógicas.  eventualmente em poder da Universal; se foram tratados digitalmente como fatalmente sucedeu em 2014, com a reedição em cd da obra do grupo e portanto com as qualidades e defeitos inerentes; ou se foram alvo de produção técnica cuidada no estrangeiro, como sucedeu com os discos de José Afonso reeditados recentemente por familiares.

Seja como for já ouvi as reedições e comparei com as versões originais, ou seja as que figuram na compilação de 1982 A Arte da Banda do Casaco que aliás poderão ser ligeiramente inferiores em qualidade sonora aos verdadeiros originais que (ainda) não tenho. 

A conclusão a que chego depois de comparar com cuidado é que as novas edições em termos de qualidade sonora está muito próximas de tais versões originais. De tal modo que quem as ouvir distraidamente nem distinguirá. O que é dizer muito sobre a qualidade actual dos discos. 

Vale a pena comprar e ouvir- é a conclusão. Principalmente depois de ter apurado que efectivamente os dois discos foram "remasterizados" ( não se deverá dizer antes rematrizados?) a partir das bobines originais gravadas nos setenta. E as capas são reproduções fiéis das originais. 

São dois clássicos da música popular portuguesa e provavelmente os dois melhores discos dos anos setenta, nesse campo minado.  "

                                                                        ****

E ficava por aqui essa crónica do tempo de 2022. Agora com a morte de Nuno Rodrigues, importa pôr algo mais na carta.

O primeiro single saiu em finais de 1974 e como se pode ler "Luís Paixão Martins que então assinava Luís Filipe Martins, foi o primeiro radialista a divulgar a Banda do Casaco, no seu programa da Rádio Renascença, Página Um, segundo julgo. Tal como apontei na noite de passagem de ano de 1974 para 1975, altura em que o mesmo passou uma retrospectiva da música que apresentou durante esse ano no programa.

O Página Um, ou seja o seu apresentador, assistiu às sessões de gravação desse primeiro disco, segundo se depreende e isso era novidade das maiores no panorama da mpp de então.


A seguir a esse single lançado por altura do Natal de 1974 veio o álbum, já em 1975 e por isso já com 50 anos. 

O original que acabei por arranjar depois de 2022 compara-se assim, em imagem, com a reedição:


Apesar de os álbuns parecerem  graficamente idênticos não o são de todo: 

A cor da capa original, tal como se pode ver na foto acima, é um pouco mais parda e não é pela patine do tempo. Gosto mais. 

A capa desdobrável ( gatefold) na edição original abre por cima e a reedição abre de lado como a maior parte dos álbuns de discos em vinil. A foto interior de tal capa, que não está identificada nem identifico, é um pouco maior na edição original, devido ao espaçamento das letras. 



A cor do rebordo exterior do nome Banda do Casaco, aliás a única do álbum todo a preto e branco é diferente de uma e outra edição e a original é turquesa; a outra de um azul pálido. Enfim, pormenores de um "descubra as diferenças". 
Quanto ao som...bem, o som original parece-me perfeito para a época, captado nos estúdios da Rádio Triunfo em Outubro de 1974 pelo técnico de som José Fortes. 
A reedição de 2022 não tem qualquer indicação acerca da "rematrização", sendo presumivelmente digital e passada ao vinil nesse formato. A qualidade ressente-se por isso? Nem tanto se o disco for ouvido em modo distraído, parecendo até que ganha maior vigor sonoro. Mas para mim é um logro quando a comparação é feita lado a lado: o original é mesmo a "real thing" e não o troco por nada. O som digital neste caso, para mim, fica a perder relativamente ao analógico, mesmo que o suporte seja o mesmo material, em vinil. 

A obra musical de Nuno Rodrigues na Banda do Casaco não se ficou por este primeiro álbum e estendeu-se por mais discos: Coisas do Arco da Velha de 1976; Hoje há conquilhas, amanhã não sabemos de 1977; Contos da Barbearia de 1978; e na década de oitenta No Jardim da Celeste em 1980, Também eu em 1982 e já sem António Pinho; e finalmente Com Ti Chitas, em 1984. 
Todos os discos foram reeditados em formato cd, em Novembro de 2013, em duas caixas, vermelha e preta, com 5 cd´s e 3 cd´s respectivamente e que se encontram esgotadas. Uma delas, a preta,  até contém um dvd com registo de espectáculo da banda. 

Em 2007 foi reeditado em cd o álbum Hoje há conquilhas, amanhã, não sabemos cujas fitas analógicas originais da gravação do disco desapareceram na voragem de uma falência da empresa Imavox nos anos oitenta e nunca mais foram encontradas. Provavelmente alguém as guardou no espólio da venda dos activos da empresa e nem sabe o que terá...

Em 30 de Novembro ( sempre o Natal à vista, nestas coisas...) de 2013 para publicitar as reedições dos álbuns nas caixinhas de cd, Nuno Rodrigues deu uma entrevista ao suplemente Atual, do Expresso. Assim:




A obra musical de Nuno Rodrigues está essencialmente aqui e...está esquecida. Infelizmente. Mas por mim, será sempre lembrada e escutada com todo o gosto e prazer auditivo. Paz à sua alma. 

quinta-feira, dezembro 04, 2025

O Ministério Público do medo

 Hoje pela manhã ainda fui a tempo de recuperar a edição da revista Sábado da semana passada, 26 Novembro, porque li ontem no artigo de Eduardo Dâmaso na edição desta semana que Euclides Dâmaso, magistrado do MºPº jubilado mas atento à realidade judiciária, tinha escrito duas páginas naqueloutra edição acerca dos problemas reais da Justiça portuguesa em geral. Aqui ficam:


O elenco dos problemas é consistente com apontamentos anteriores, sempre curiais e merecedores de atenção. As perguntas colocadas deveriam ser respondidas pelos sectores visados: a PGR, o DCIAP e DIAP e claro, o CSMP. São perguntas para o interior da corporação e que envolvem igualmente o Sindicato que anda muito calado. 

As perguntas fatais, a meu ver, desvendam o significado da última frase do escrito, segundo julgo entender pela meia palavra crítica e críptica: "Quem sabe se, daqui a um ano, não haverá boas novas?"

Venham elas, que bem precisamos. Quer dizer, todos os que ainda acreditam que é possível fazer Justiça em Portugal com as leis e o direito que temos...mas confesso que o cepticismo já vai alastrando.

Continuando a folhear a revista, a páginas 94-96 deparamos com este artigo sobre um caso judiciário concreto e recente. É ler...



A história começa assim: "A Polícia Judiciária não acreditou, o hospital disse que era mentira, as provas contavam outra história, mas a procuradora acusou"...

Para acusar alguém em processo penal é necessário que haja concretamente a possibilidade de uma condenação em tribunal ser provável e em grau superior ao seu contrário, ou seja a de uma absolvição. 

Não conheço o processo em concreto e só li esta notícia sobre o mesmo, porém, há uma pergunta ao longo do texto: como foi possível a acusação, tendo em conta que o tribunal, colectivo, decidiu que "resulta à saciedade" que não houve crime algum. À saciedade significa que transborda de evidência, a prova à "décharge". 

Ora se o MºPº e um procurador(a) em concreto releva mais a prova à charge, mesmo mínima, será necessário indagar para perceber como chegamos até aqui, porque este caso é apenas paradigmático do que acontece no MºPº actualmente: os procuradores e com propriedade, as procuradoras, já que são em maior número que aqueles, decidem actualmente acusar com mais frequência e facilidade do que o contrário, arquivar. Em casos sensíveis, devo acrescentar a posteriori. E isso deve-se a várias razões de que avulto duas que se resumem numa só: receio da hierarquia e das inspecções...medo portanto. 

Não é nada bom termos magistrados que têm medo. Da própria sombra, por vezes. E de onde vem esse medo? Em primeiro lugar a origem é no CEJ, actualmente uma escola de funcionários da magistratura em vez de magistrados a sério com um elevado grau de independência e auto-responsabilidade; por outro lado, num sistema de inspecções que encontra respaldo confortável num CSMP em que têm assento diversos conselheiros políticos e com idiossincrasias diversas. O resultado é o que se vê em alguns casos, como o acima mostrado, segundo julgo. 

Pode parecer desligado das considerações de Euclides Dâmaso, mas não, para mim está intimamente ligado. 

Há 40 ou menos anos, a magistratura, particularmente no MºPº, não era assim: era melhor, segundo julgo também. Não havia tanto conhecimento técnico de leis, regulamentos e directivas, mas sobrepujava-se o que agora parece faltar: bom senso.  Senso comum, vá lá.

sexta-feira, novembro 21, 2025

Caso Zé Pinto: assim se castigam os costumes. A rir.

 Expresso de hoje:





Não é caso para menos: rir é o melhor remédio para a desmesura dos procedimentos, actuações e atitudes do visado Zé Pinto que atingem o paroxismo no decurso do julgamento penal em que é arguido. 

Não é suportável por muito tempo aturar as diatribes e comportamentos absolutamente inacreditáveis de quem perante um tribunal que o está a julgar segundo todas as regras processuais e mais algumas ( as do bom senso que até agora tem impedido outras medidas mais drásticas...) insiste em afrontar os julgadores e todos os que de alguma forma contradizem a narrativa que escolheu para explicar o que desde há muito se tornou óbvio aos olhares mesmo mais distraídos. 
Estamos perante alguém que sofre de um qualquer distúrbio que não afectando a sua imputabilidade atenta contra o senso comum como alguém que nega que a terra é redonda. 
Zé Pinto é afinal um...negacionista militante. Quem diria...

Venha a música e a rábula que quero ver.  Ridendo castigat mores...mas suspeito que virá por aí providência cautelar para defender honra putativa do visado, patrocinada pelos delilatórios ( termo surripiado a JDQ numa magnífica crónica no Observador.   

Será que a liberdade de expressão chegará para afastar o espectro de mais uma manobra delilatória? 

Para quem quiser informar-se da inacreditável saga do inginheiro, desde os tempos das covas da Beira e afins Planaltos da Covilhã, deve ler com proveito e como exemplo, o livrinho ( de 500 páginas em letra legível e estilo bem rasgado) de João Miguel Tavares. É o livro do ano, para mim, pelo que mostra da  indecência exposta do sistema político que ainda vamos tendo. Com facto, apenas factos. 
Só mesmo lendo se percebe o rol e o ror de aventuras na aldrabice, trafulhice e corrupção moral, política e criminal,  profunda, que exala das histórias relatadas. Todas elas impunes, até agora, o que revela bem a capacidade de aplicação da Justiça do nosso Direito actual, gizado pela bempensância da escola de Coimbra. 
Ao escrever isto dou conta de que estou a rir com coisas sérias, mas...haverá outro castigo possível, para quem apresenta todos os sinais de psicopatia social, por "total ausência de empatia, uma incapacidade patológica de mostrar educação, uma personalidade psicótica, egocêntrica, incapaz de pensar fora do seu interesse mais mesquinho", como escreve Eduardo Dâmaso no CM do passado dia 13 Novembro? 
Estou em crer que uma perícia psiquiátrica e forense, do género daquelas que o CEJ promove para escolher candidatos à magistratura, seria uma revelação para esta personagem tragi-cómica da nossa actual sociedade. E até julgo que o tribunal tem justificação e poder para a mandar realizar, perante tamanho rol de desconchavos comportamentais do visado, na sala de audiências e fora dela. 
Quem é que se atreve a sugerir no processo um acto destes? O MºPº? Porque não?!

Perante casos destes parece que se suspende temporariamente a sensação de incredulidade, no dizer de um professor francês da Sorbonne num artigo de uma publicação recente do Le Point, ao tentar explicar o que é a verdade e a pós-verdade.   

domingo, novembro 16, 2025

O enviesamento jornalístico generalizado

 Expresso, antes d´ontem


Alguma vez se imagina o Expresso a colocar alguém que diga, "não desisto de fazer frente à extrema-esquerda"? 
Não, não se imagina porque as escolas de comunicação social não forma(ta)ram alunos para tal e os que se forma(ta)ram e dirigem os media não são capazes sequer de perceber o alcance de tal situação. 
É um drama político-social em Portugal porque não conta com a realidade e tudo o que afronte a realidade afronta a natureza das coisas. E perderá, fatalmente. 

sexta-feira, novembro 07, 2025

O jornalismo, em Portugal, é de esquerda. Sempre foi.

 O título do postal não é equívoco, porque sempre me interroguei enquanto leitor de jornais por que razão tínhamos um jornalismo que pendia sempre para a esquerda, praticamente desde 25 de Abril de 1974 e até antes, com excepção de alguns periódicos afectos ao regime de então ( Diário da Manhã ou Diário de Notícias e depois disso com alguns media pouco expressivos como O Diabo ou o Tempo, ou meros epifenómenos como O Dia).

A história do jornalismo em Portugal, particularmente na era moderna da segunda metade do século XX está por fazer e valia a pena o esforço. Haja um João Miguel Tavares com vontade e disponibilidade para o fazer, em vários volumes ( como a história da vida adulta de José Sócrates que é um compêndio inacreditável de aldrabices) e mostrar a submissão ideológica generalizada à esquerda marxista que nos domina mediaticamente desde então.

Por aqui neste blog, desde 2003 que tento fazer algo a respeito disso e guardo os recortes que aliás estão publicados e denotam isso mesmo: a esquerda domina o panorama mediático desde sempre: imprensa, rádio e televisão, como nem sequer antes do 25 de Abril acontecia com o regime dito autoritário ou "fassista".

O jornalismo faz-se com jornalistas e os que  trabalham já pertencem a uma geração de antifassistas activistas e alguns já são filhos dos mestres que ainda peroram nas escolas de formação ( as que ministram estudos de Comunicação Social à la ISCTE e os tornam instantaneamente doutores).

É por isso que este artigo de Rui Ramos no Observador de hoje é delicioso, ao colocar e pressional a ferida de sempre. É ler...e como paguei a subscrição e o artigo pode desaparecer de um dia para o outro aqui fica o registo da minha cópia:








O artigo destaca o medo como a explicação mais prosaica para o comportamento generalizado do jornalismo televisivo perante André Ventura que aliás se afigura paradoxal. Ventura nunca teve tanta exposição individual e mediática como hoje, com entrevistas a fio no horário nobre das tv´s.
Não obstante, é como Rui Ramos escreve: acolhem o político com um saco de pedras mediáticas para lhe atirarem durante toda a entrevista, num caso patológico que realmente só se explica pela submissão e falta de liberdade dos jornalistas, perante as direcções de informação. 
O que se passou com os panegíricos e cobertura mediática do falecimento de Balsemão é simplesmente obsceno, mas enfim, é o que temos. 

Lembro-me, como aliás Rui Ramos também refere que Álvaro Cunhal nunca teve tratamento semelhante, em todas mas mesmo todas as entrevistas que me foi dado ler ao velho estalinista: não falhei uma das que foram sendo publicadas nos jornais de "referência" da época, incluindo as televisivas e fiquei sempre espantado como não lhe perguntavam o que era óbvio a propósito das suas opções ideológicas e compatibilidade das mesmas com a democracia que temos. Enfim, houve uma excepção, nos anos noventa: Miguel Esteves Cardoso fez-lhe uma entrevista, no Independente, por condescendência do velho comunista que porventura lhe achava graça e nessa altura perguntou-lhe algumas coisas- mas só algumas...- que poderiam ser incómodas para o senhor do comunismo em Portugal e outros jornalistas nunca ousariam fazer. Julgo que tal entrevista está transcrita neste blog, por aí  mas agora não tenho tempo de verificar. 

O nosso jornalismo actual é um meio de servidão generalizado. Todos têm medo, de perder o emprego que é afinal precário e por isso obedecem à doxa dominante que é a de esquerda. Como sempre. Até quando?



Porca miseria, como diriam os italianos...

quinta-feira, outubro 23, 2025

Morreu Laborinho Lúcio

 Sobre Laborinho Lúcio escrevi aqui ao longo dos anos. Há três postais  que  destaco. Um de 26 de Fevereiro de 2012;  outro de 20 de Março de 2023; e ainda outro que transcrevo, de 28 de Setembro de 2018.   

Nenhum é especialmente encomiástico ou lisonjeiro a não ser num aspecto que considero justo dizer e escrever: Laborinho foi a grande figura da magistratura portuguesa dos anos oitenta, a partir do CEJ que ajudou a fundar e dirigiu com maestria invulgar. Inimitável. Exemplar. Nenhum magistrado que o conheceu fica indiferente à sua personalidade enquanto director da escola de formação de magistrados e aposto que a maioria esmagadora conserva uma admiração pelo mesmo que me parece isso mesmo, justa, no sentido de se dar o que é devido a quem merece. 

Uma petite histoire, passada com Laborinho no Cej, em Fevereiro de 1988: no intervalo de mais um pequeno colóquio com individualidades da justiça e tribunais, o então presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Pinto dos Santos, contou  histórias inacreditáveis de um juiz de comarca próxima de Lisboa, ainda novo e saído do CEJ,  cujo comportamento idiossincrático revelava um notório desequilíbrio mental para o exercício da profissão, através de actuações autoritárias e chocantes para um senso comum mais elementar. 

Um dos inspectores do MºPº presentes ( Borges de Pinho, saudoso e espero ainda saudável qb) enjoou de tal modo a narrativa que se levantou e exclamou entre dentes, "nem posso ouvir isto!" 

Eu ouvi, estava lá. No intervalo do colóquio, Laborinho no bar do CEJ, como costumava fazer, charlava um pouco com os auditores, usando o charme habitual da retórica encantatória e ritmada dos dizeres e tendo-lhe sido perguntado, ( por mim...ahahah) se o problema exposto com o tal juiz idiossincrático não poderia ter sido resolvido com o recurso a testes psicotécnicos, o mesmo foi lesto em afirmar que não concordava com tal sistema de recrutamento através de tais testes. E explicou porquê: ó snr. dr! ( no CEJ são todos doutores...) se houvesse testes psicotécnicos eu provavelmente não passaria nos mesmos...

Dito isto, vale a pena acrescentar que actualmente e de há longos anos a esta parte, há testes psicotécnicos no CEJ e os resultados são determinantes para a admissão de auditores que podem ser os melhores em todos os demais técnico-jurídicos mas se essa barreira não for ultrapassada não são admitidos. 

O que parece ser uma boa ideia revelou-se um grande fiasco porque tais testes promovidos e realizados actualmente por empresas privadas de psicologia e afins,  são pura e simplesmente um logro, uma farsa académica em que até valem os testes de Rochard para avaliar a personalidade de alguém que com um simples borrão podem borrar a pintura toda de uma série de exames exigentíssimos. Já aconteceu, acontece e virá a acontecer. No ano corrente, parece, segundo já ouvi dizer que cerca de metade dos candidatos a auditores de justiça chumbaram redondamente em tais testes esotéricos sobre a personalidade. E de nada lhes vale serem os melhores nos testes técnico-jurídicos, de terem passado por exames orais em que são avaliados presencialmente por júris que nem detectam qualquer disfunção de personalidade. O que conta é o resultado dos testes psicotécnicos...

Ora como é que se resolve este problema para quem pretende mesmo ingressar no CEJ e se acha habilitado para tal? Simples e ao modo português de desenrasca: frequenta antes algum curso de preparação para o CEJ, incluindo o relativo e específico a testes psicotécnicos, treinando respostas e modos de realização dos mesmos. Perante isso, o que valem os testes realizados ? Zero. Zero. vírgula zero. Mas continuam a realizar-se, o rei vai nu e ninguém no CEJ tem a autoridade para dizer "basta!".  Este ano o escândalo foi tão grande que parece nem ser do conhecimento público alargado...o que é dizer muito sobre a transparência de uma instituição que pretende formar magistrados. Enfim, algo que com Laborinho Lúcio nunca teria sucedido e sinal de que tinha inteira razão em 1988 ao recusar tais testes como determinantes para a admissão no CEJ de auditores de justiça. 

Hoje em dia os magistrados que saem do CEJ dirão o mesmo de quem o dirige ou dirigiu, do mesmo modo que dizem de  Laborinho e do que granjeou para a sua reputação? Duvido. Não, tenho a certeza que não. 

Assim, fica aqui o meu obituário em modo de homenagem, mesmo sem parecer, tirada daquele postal de 28 de Setembro de 2018: Laborinho Lúcio e o redondo vocábulo

Laborinho Lúcio que conheço há um pouco mais de trinta anos, essencialmente como pessoa ligada à formação do CEJ e avatares posteriores em instituições judiciárias, é um dos cultores mais aprimorados do que se pode apelidar o redondo vocábulo. A expressão provém de um tema de Zeca Afonso, inserido no álbum de 1973, Venham mais cinco e que termina com o verso "inda o ar educa". 
Um dos temas da entrevista é precisamente a Educação, cujo modelo é comentado pelo entrevistado com uma inspiração que poderia ter saído desse verso. 

Em quase todas as entrevistas, palestras, colóquios e intervenções públicas, Laborinho tem sempre uma história arredondada para contar. 
Desta vez são duas: a dos índios e cobóis da sua infância, na qual lhe era reservado o papel de taberneiro, fugindo ao confronto com os índios "maus" que depois descobriu, enganado, que eram "bons" e a história da escola primária, junto dos Pescadores que eram vizinhos na vila da Nazaré. A escola era alternativa à que lhe seria destinada naturalmente,  pela pertença de classe à pequena burguesia local. Daí o simbolismo simbiótico com a primeira história. Laborinho fica ao lado dos "bons" e que eram na época os "maus", porcos e feios até. 
Estas histórias algo edulcoradas pela memória do tempo, de Laborinho,  têm sempre alguma graça e cativam o ouvinte, inevitavelmente, pelo brilho natural que lhe costuma ser emprestado pelo narrador. 

A mim, no entanto e desde sempre, deixam-me um travo algo amargo no espírito. Sempre me interroguei: porque é que um tipo que sempre me pareceu "fixe" e "porreiro" precisava de narrar assim e  tentar seduzir pelo redondo vocábulo as almas desprevenidas que se deixam fascinar com pouco? 
Haverá uma resposta para tal associada eventualmente  ao fulgor do raciocínio e à rapidíssima facilidade de expressão. Laborinho é um virtuoso nesse estilo. Já era assim no CEJ, continuou nas entrevistas avulsas que foi concedendo e nas palestras em que participa. Na escrita, tal não resulta e Laborinho enredava-se nos textos para tentar explicar ideias simples. Tem um opúsculo inacabado sobre O Direito, o Judiciário e os Tribunais que é um exercício tortuoso de incapacidade expositiva. 
Porém, no manejo falado do redondo vocábulo é um mestre prestidigitador que confunde  palestrantes maçudos e exaspera debitadores de saberes escolásticos.

Um bom exemplo disto é o que explica sobre a legitimidade dos juízes e dos tribunais perante a opinião pública e o "povo" em nome do qual se aplica justiça, constitucionalmente. 
Quem ler isto precisa de ler mais que uma vez para perceber o sentido e alcance das expressões.  A alusão ao "populismo" mediático relativamente aos fenómenos judiciários é abordado em  modo redondo e sem ferir arestas. 

Porém, deveria ser necessário ferir susceptibilidades e limar arestas de profissionais que são responsáveis directos pela "justiça espectáculo" e principalmente descortinar a origem do fenómeno e quem dele se aproveita com propósitos turvos. Laborinho nunca entraria por aí, nessa guerra contra os "índios". Prefere ficar na posição de taberneiro, sendo certo que frequentou as escolas de elite que lhe permitiu conhecer as da ralé. 
É exasperante, Laborinho, por vezes...

Sapo:

Existe alguma forma de fiscalizar o trabalho que está a ser feito?

A justiça tem hoje um problema complicado para o qual também é necessário fazer perguntas - aqui não precisam ser muito fortes. Viemos de um tempo em que a justiça era respeitada porque todos confiavam nela por uma questão de fé. Ora a fé, sem estar com isto a fazer qualquer extrapolação para a fé de dimensão religiosa, em política assenta na ignorância, porque através do conhecimento o que se quer é racionalidade. Acontece que a justiça é respeitada porque se acreditava nela. Com o processo democrático, com a discussão pública das questões da justiça, a justiça começou a ser discutida pelo cidadão comum, cujo conhecimento é maior, mas está muito longe de ser o mínimo para poder ter uma racionalidade crítica. O que temos hoje é uma falta de fé em alguns aspectos e uma falta de conhecimento bastante para poder reconstruir a relação de confiança. Isto gera uma intervenção de certos sectores da comunicação social, que é legítima, e que levou àquilo a que se chama a justiça espectáculo ou a justiça dramática, em que, no fundo, se hipervalorizam os casos de justiça junto de uma opinião pública que está em casa sentada no sofá a fazer o lugar do juiz ou do Ministério Público.

E esse é um papel legítimo, ou não?
A justiça tem de aprender a viver com isto, em vez de fazer o discurso do "nós não temos de dar satisfações a ninguém". A justiça tem de perceber que as pessoas estão interessadas, estão empenhadas e têm uma percepção. O que é fundamental é ter a noção de que a percepção da realidade é uma coisa e a realidade é outra. A certa altura tudo passa a acontecer como se nós tivéssemos de responder às tomadas de posição que vêm da percepção junto da opinião pública. Nesta medida é essencial que compreendamos várias regras; por exemplo, uma justiça não é melhor nem pior consoante condena ou absolve. Uma justiça que absolve é tão justa como uma justiça que condena. Não podemos dizer que uma justiça só funciona se condena. Depois, nem sempre as acusações que o Ministério Público formula correspondem a condenações, o que não quer dizer que as acusações tenham sido mal formuladas. Muitas vezes é no momento da acusação que há um conjunto de provas ou de elementos indiciários que são bastantes para fundamentar a acusação, mas o julgamento permitiu juntar elementos novos ou, muitas vezes, reformular uma opinião que se tinha sobre uma determinada realidade e chegar ao julgamento e haver absolvição. Posso dizer que como magistrado do Ministério Público em dois casos pedi em julgamento a absolvição de réus que tinha acusado. Porque com o desenrolar do julgamento surgiram situações que não podiam ter surgido na altura da acusação. Por outro lado, e sei que isto é difícil de aceitar, mas seria intelectualmente desonesto se não o dissesse, a justiça, como a saúde, são actividades de risco, e nem sempre tudo corre bem. Há uma dimensão de erro que faz parte do próprio contrato social. Eu, como cidadão, quando transfiro para os tribunais, para o Estado, o poder de condenar ou de absolver, transfiro também a minha aceitação da margem de erro que pode acontecer. Isso não impede que os cidadãos critiquem a justiça e o modo como ela funciona, ou até denunciem as circunstâncias em que ocorrem eventuais erros. O que não se pode necessariamente fazer é extrapolar daí para colocar questões morais ou éticas sobre o funcionamento da justiça e dividir tudo entre bons e maus. Temos de nos habituar a crescer, a ser mais adultos nesta relação e compreender o espírito, não tendo de estar de acordo e tendo o direito de criticar. Veja o exemplo do tribunal de júri norte-americano, normalmente apresentado como exemplo de erros judiciários: condenações à morte de pessoas que mais tarde se verifica não terem praticado qualquer crime, etc. Nenhum americano põe em causa o tribunal de júri. O tribunal de júri faz parte da sua cultura, é uma instituição e é dos americanos, que não abdicam dela e não a colocam em causa. E, todavia, podíamos desenvolver críticas ao seu funcionamento.
Sabemos que as decisões que se tornam públicas são as mais escabrosas, as mais controversas, embora não deixem de ser reflexo dos juizes que temos. Mas já assisti a vários processos-crime económicos e foi confrangedor ver o Ministério Público. Pergunto-me se a preparação da acusação no Tribunal de Menores ou noutros será semelhante.

Precisamos de compreender que a realidade exterior modificou-se muito. Os tribunais têm de perceber como incorporar essa mudança nas suas atitudes, inclusivamente na construção das suas decisões. Não posso falar e casos concretos, mas nada me impede de dizer que como cidadão muitas vezes também fico um pouco perplexo com determinado tipo de fundamento de decisões. Agora, há um aspecto que julgo importante, e aqui os magistrados teriam de colaborar e, provavelmente, até a formação de magistrados teria de caminhar por aí. Há uma tendência para tornar a administração da justiça, a intervenção do magistrado, num compacto de técnica. Evidentemente que a técnica é decisiva e é fundamental que o magistrado seja competente tecnicamente, mas a competência do magistrado vai muito mais longe. Muitas vezes os magistrados, impecáveis do ponto de vista da aplicação da lei, esquecem que aquela sentença é pública e que o público vai lê-la. E para o público era importante que muita da realidade que não é levada ali lá estivesse, até com uma linguagem menos hermética, para perceber a história no seu todo, caso contrário não compreende a decisão. Talvez valha a pena repensar isto. E talvez valha a pena levar ao fundamento da decisão aquilo que, sabendo que vai ser lido pelo público, é importante que o público compreenda. Julgo que os casos se têm vindo a repetir e que esta é uma questão essencial e que faz parte da comunicação da justiça. Temos um pouco a ideia de que a comunicação da justiça é saber quem é a pessoa que pega no microfone e vai dizer o que se passou. É importante que isso seja feito, mas comunicação, sabe melhor que eu, resulta dos termos usados e da forma como são levados ao conhecimento do cidadão. Nesta matéria penso que temos um grande caminho a percorrer e não nos devemos ficar apenas por dizer que as pessoas não percebem nada disto e não vale a pena dar importância ao que elas dizem. Isto é não compreender a realidade e ficar cada vez mais afastado dos cidadãos.
E sobre a especialização?

A especialização é hoje absolutamente fundamental. Houve um tempo em que eu próprio colocava algumas dúvidas, mas hoje tenho a certeza de que é fundamental, embora entenda que deve ser matizada. A especialização deve existir, mas, de tempos a tempos, com intervalos grandes, é preciso mudar, porque a especialização, mais uma vez, fecha o juiz sobre a técnica. Há, claro, matérias que são essenciais e temos de começar a pensar - isto não é uma crítica ao passado, até porque eu próprio não o fiz enquanto ministro da Justiça - se não fará sentido que em sede de acusação haja assessorias económicas no julgamento. Não podemos partir da ideia de que o magistrado é conhecedor de tudo na dimensão total que estas matérias, cada vez mais sofisticadas, têm. E aqui penso que um especialista faz falta, até enquanto reforço de meios para investigar e desenvolver o processo. Mas percebo que nem tudo pode ser feito de um dia para o outro, conheço bem a diferença que vai entre a facilidade de dizer e a dificuldade de fazer e tenho a obrigação de dar algum benefício da dúvida à dificuldade de fazer porque vivi a prática.

Um exemplo concreto da deficiência informativa resultante da carência de cultura pode ler-se na entrevista.

A jornalista entrevistadora escreve duas vezes a palavra "dissiminado",  proveniente de um verbo inexistente. O erro ortográfico é grave, inadmissível em alguém que escreve em jornal, mesmo virtual.

A Dª Raquel do tempo da primária de Laborinho, mesmo na Escola dos Pescadores nunca teria passado de classe quem desse um erro desse calibre.
E no entanto, erros deste género são recorrentes no jornalismo nacional e revelam a ausência de leituras, de cultura, de formação académica minimamente decente em profissionais do ramo.

Tudo isto se reflecte, depois, em opinião que é vertida nos artigos, nas notícias, etc etc.
As "causas", depois, aparecem por cissiparidade. Quem não sabe, não pode perguntar.

Outro exemplo, desta vez no Observador:


Por piedade e amor à língua portuguesa, que seja possível exterminar quanto antes esta praga do "o quanto antes".

Onde raio é que esta geração aprendeu a escrever? Na Internet?

quarta-feira, outubro 22, 2025

Zé Pinto, o indivíduo que preferiu ser José Sócrates

 Acabou de sair este livro:











Este é o primeiro volume de três anunciados como uma história de um indivíduo que se notabilizou por chegar a primeiro-ministro de Portugal, em meados da década de dois mil, como José Sócrates e da sua luta para firmar o nome entre os respeitáveis do sistema político democrático que tal permitiu. 

Nasceu Zezito, passou por Zé Pinto, Vidrinhos, Engº José Pinto de Sousa, Engº José Sócrates Pinto de Sousa e chegou a José Sócrates, tendo no percurso amealhado fartos recursos financeiros espelhados no espalhafato dos sinais exteriores de riqueza  que não se percebia muito bem de onde provinham. 

A história neste primeiro volume tenta explicar os primórdios da construção desse José Sócrates. A construção da sua imagem pública, da riqueza da sua família, do seu percurso académico e até chegar à construção do seu próprio nome, para citar uma passagem do livro. E outra: "um indivíduo que só é espontâneo quando se distrai".

É uma história fascinante e já li um terço do livro, de uma assentada, apesar de os episódios narrados e que se podem ver no sumário, serem assunto que neste blog foram já quase todos enunciados ao longo dos anos, com recortes a apoiar. 
Ainda assim, recomenda-se o livro pela consistência e ordenamento da narrativa, dos factos expostos cuja veracidade assenta primordialmente nas fontes jornalísticas e outras que se elencam nas notas finais em 35 páginas. 

Neste primeiro volume tem especial interesse o modo como se desmonta a construção da ideia de riqueza de família do Zé Pinto e a exposição do mundo de fantasia em que se deixou enredar e tentou enredar os outros. 

No final de contas temos a sensação de estarmos perante um autêntico "fake", alguém que provavelmente nem o mesmo sabe quem é. E por isso surpreende ingénuos ou menos que isso, apesar de encartados em doutoramentos e cátedras universitárias.

É a hístória contemporânea de uma tragicomédia nacional, pelo modo como poucos se aperceberam do logro, do fake da aldrabice da personagem. E segundo o autor é essa a tese do livro, uma vez que tudo estava à vista de todos, como os recortes apresentados demonstram. 

Por aqui, neste blog, há muitos anos que se diz o mesmo. Com as provas dos recortes a apoiar...

Venha o segundo volume!