Este artigo na Sábado de hoje, da autoria de Euclides Dâmaso, magistrado do MºPº jubilado, volta a colocar o dedo em tantas feridas que certamente a alguém deverá doer qualquer coisa, com as perguntas formuladas...principalmente a propósito de um sector que conhece demasiado bem para desconhecer as respostas, o que torna aquelas um pouco...retóricas. Mas vale a pena ler:
Como as perguntas não são mera retórica para quem não conheça as respostas, importa tentar responder a algumas delas, senão todas...
1. As magistraturas continuam a ser atractivas como carreira por várias razões, entre as quais avultam as de sempre: a primeira é a de que é uma carreira relativamente bem paga, na função pública em geral e os candidatos são normalmente jovens que podem ter um futuro profissional assegurado durante muitos anos, fazendo o que gostam, se for esse o caso ( caso contrário dificilmente se aguentam...) e tendo ainda um módico de prestígio social se cumprirem bem as respectivas obrigações.
Não têm a liberdade de um profissional liberal mas têm a segurança de um vencimento ao fim do mês e isso não é e nunca foi despiciente ou despiciendo para quem não se sente vocacionado a abrir tabanca e esperar que os clientes apareçam ou integrar-se num magma organizacional quase impessoalizado de um grande escritório de advogados dominado pelos sócios de capital.
2. Desconheço em concreto se tal sucede mas reparo que tem havido um esforço nessa área de recrutamento e formação, mesmo em exercício, para determinados cargos e funções. Não será o ideal mas há a sensação de estarmos melhor de que estávamos há cinco, dez ou vinte anos.
3.O problema das inspecções não é difícil de perceber: enquanto permanecer o espírito de inspecção ad hominem e não ao serviço em concreto e enquanto um inspector se dedicar a catar especificidades em processos para relatar ao CSMP o que vale ou não vale profissionalmente um qualquer magistrado, ou mesmo o serviço de que depende, estaremos sempre conversados e a resposta à questão, infelizmente é não. Aliás, às duas questões. Veja-se quem coordena as inspecções e se tem a preparação e o espírito para tal...
4. A resposta só pode ser não porque o género de trabalho em equipa em processos que se avolumam nas secretárias dos procuradores, agora virtualmente nos computadores, consomem o tempo todo de análise dos mesmos.
Um processo virtual e digitalizado para ser discutido em conjunto e em equipa, depende de duas coisas além do mais: uma rotina que seja corrente e tal não é, para além do voluntarismo individual e a forma prática de tal ser realizado, o que também não vejo que se consiga com o actual modo de actuar que mais não é do que o velhíssimo "o que vem de trás toca-se para a frente", com a dificuldade acrescidíssima de um controlo hierárquico e burocrático irrazoável, estatístico na maior das vezes e dando frequentemente a impressão de hostilidade para com o trabalho individual o que desmotiva seriamente qualquer tendência para discussão em conjunto de processos, métodos ou soluções. Nunca a intervenção hierárquica teve o objectivo de ajudar, antes de controlar, o que torna o sistema...soviético, à falta de melhor expressão. Um magistrado antigo, já falecido falava muitas vezes em "muitas exigências e poucos apoios". Dantes...e agora só poder ser ainda mais verdade.
Esse é aliás um dos grandes males da organização burocrática do MºPº que muito teria a aprender com a organização das empresas ou instituições que não dependem do Estado directamente.
Não se julgue que tal se vai modificar, pelo que neste aspecto estamos conversados pois tudo irá continuar como dantes, mesmo com milhentos de artigos como este, louvável aliás, por colocar as questões.
5.Sim, estão, mas com o pendor supra referido: uma relação burocrática, hierárquica e de desconfiança, formal e tendente a minar a eficiência da comunicação eficaz. É esse um problema que me parece para já insolúvel apesar de ser ver aqui e ali um lampejo de tentativa de renovação. O actual PGR será um dos protagonistas, mas rapidamente será confrontado com o peso da burocracia que o sustenta e carrega.
Quando se elencam os processos de "repercussão social" apenas com base em critérios subjectivos e sem definição clara dos perfil e contorno dos mesmos, está tudo dito e é isso que sucede no modelo burocrático. Logo, a resposta é negativa por antonomásia: o que acontece num caso vale para todos.
6. A pergunta seria desnecessária porque a resposta se torna evidente a meu ver: as regras são as previstas na lei processual, penal no caso e portanto, a interpretação da norma justifica todas as opções, principalmente quando se encontram devidamente justificadas. Lá virá o inspector a dizer que foi cumprida a norma...
7. Pois isso é que não há assim tanto, devido à dificuldade em transmitir a cada magistrado um modelo de organização de peças processuais. Já lá vai o tempo em que os procuradores mais velhos ( Borges de Pinho, também inspector; Paulo Sousa, que chegou ao STJ, ambos de Braga), sabiam fazer acusações sintéticas e publicaram os seus métodos em livrinhos que nem sequer se encontram à venda...mas isso foi nos anos oitenta do séc. passado. Hoje quem ensina a fazer acusações é quem está no CEJ e quem está nas comarcas a formar. E a escola já nem é a mesma.
Quando se lêem acusações com 900 artigos relativamente a casos de tráfico de droga em que se colocam nos termos da acusação os meios de prova como transcrições de escutas telefónicas, algo vai mal na formação da magistratura e nas inspecções respectivas...porque o "muito bom" é de rigor em certos casos, mesmo com tais anomalias. E depois vê-se o que acontece noutros processos de "influência" e "repercussão social"...
8. Desconheço, mas julgo que não porque em caso contrário não ocorreriam casos como o do exemplo anterior. As inspecções são um dos grandes problemas do MºPº mais ágil e eficaz porque atendem ao factor ad hominem. E todos os procuradores sentem tal coisa e têm medo. E o medo nunca é bom conselheiro para a eficiência em certos casos. Actualmente, as inspecções destinam-se a balizar as carreiras profissionais com notas que se centram essencialmente no mérito e abaixo dele. E é do senso comum que o mérito de um muito bom tornou-se tão geral e corriqueiro que se desvalorizou, não havendo distinção entre um magistrado de prestação realmente excepcional ( e até isso seria questionável) e um outro que faz tudo "direitinho" e conformas regras burocráticas. Sendo certo que magistrados realmente muito bons há muito poucos, sei lá, dois por cento. Se houver. Contudo não é isso que espelham os resultados das inspecções, pelo que tudo se encontra pervertido a partir desta base.
Que eu saiba isto nunca foi discutido publica ou internamente no MºPº. E é um problema. Resolvido sempre com a velha máxima " o que vem de trás toca-se para a frente"...
9. Suponho que actualmente haverá mais atenção a tal questão mas julgo que seja ainda insuficiente poprque estas coisas demoram tempo a solidificar-se no seio da magistratura como se viu agora com a "descoberta" da disposição do artº 670º do C. P. Civil que já lá está há tanto tempo que se fosse "descoberta" antes teria evitado muita chicana em curso. Culpa de quem?
10. Tarefa essencialmente de coordenação e que se repercute na prestação dos magistrados que são inspeccionados com aqueles parâmetros como "espada de dâmocles".
11. A Directiva parece-me um meio canhestro de tentar resolver questões que só podem resolver-se por outro meio, sob pena de as agravar, tal como acima se exemplificou.
12. Ora isso é da responsabilidade do poder...político. Logo...
13. Outra que também é dessa responsabilidade. Logo, novamente...
14. Idem, aspas.
15. Julgo que é um mau caminho questionar motivos concretos relativos a um processo concreto para tentar perceber algo que já toda a gente entendeu: o segredo de justiça nesse caso concreto ( Influencer) foi mantido devidamente. E se a PJ tivesse acesso ao processo como entidade de inspecção pura e simplesmente não teria existido e para compreender tal basta ler o livro de outro Dâmaso mais o antigo Inspector Santiago, sobre além do mais o processo Face Oculta. No caso da PJ ter intervindo estou mais que certo que o primeiro-ministro teria sido avisado e o seu chefe de gabinete também saberia e nunca guardaria 78 mil euros escondidinhos em tubos e gavetas. E isso diz tudo da realidade que temos e somos.
16. Sim, mas apenas se houver garantia de celeridade na actuação do Tribunal de Contas e se o MºPº que lá estiver for diligente consequente. Isso foi já explicado por um antigo Conselheiro que até escreveu um livrinho sobre o assunto há uns anos.
17. Claro que só descobriram agora o que deveriam ter aplicado mais cedo...
18. Parece que não há vontade política para se mexer em tal organismo tornando-o eficiente. Logo, a resposta remete para a questão 12 a 14.
19. Idem aspas.
Enfim, esta é a minha percepção sobre o modo como o MºPº investiga os processos em geral e em particular os de "repercussão social".
E repito o que escreveu o articulista, definitivamente desencantado: " Tenho dúvidas que, no meio desta cacofonia reinante, alguém repare sequer nestas interpelações".
Pois sim mas água mole em pedra dura...e por isso se torna louvável o esforço de publicação numa revista que não faço ideia do público alvo e se esse público dedicará mais de alguns segundos a ler o que vai para além do título.
Quanto aos responsáveis e que poderiam mexer e mudar tudo isto é como disse e repito: o que vem de trás toca-se para a frente...