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domingo, agosto 14, 2022

A propósito do Padrinho e da mitificação estética

 No suplemente de hoje do CM aparece esta apreciação do filme O Padrinho por causa da efeméride dos 50 anos da sua exibição.





Este tipo de artigos é um género de paráfrase a outros do mesmo género sobre outros assuntos e que acabam por denotar a mitificação ocorrida ao longo do tempo relativamente a acontecimentos que no seu tempo não tiveram o impacto, relevo ou sequer a importância mediática agora concedida. 
Pode dizer-se que este tipo de acontecimentos culturais foram "seminais", como dizia a Visão em artigo já comentado. Porém, seminal tem implícita a ideia de semente, de algo que frutifica e dá origem a qualquer coisa nova. E tal característica, naturalmente só com o tempo se descobre. 
Terá sido esse o caso do Padrinho, como filme estreado no Verão de 1972 nos EUA e por cá no Outono ( 24 de Outubro) desse ano?
O título do artigo diz que foi um sucesso de público, aclamado pela crítica e apreciado pela máfia. Tirando este último aspecto, anedótico, serão verdadeiras as duas acepções do êxito de tal filme no tempo em que apareceu? 

Que foi um sucesso de público, na altura em que estreou, parece evidente, mas...nuance!- nos EUA. Em Portugal não foi. 
Portanto quando se proclama o sucesso de público é preciso dizer onde e como. E no artigo não se diz, deixando implícito que foi em todo o lado e arredores. Por cá, não foi e isso é atestado pela programação espelhada e documentada nos recortes da época.

Na Capital de 15 de Outubro de 1972 anunciava-se a estreia do filme no dia 24 desse mês e ao lado aparecia o elenco dos filmes em cartaz nessa semana. 

O filme estrearia em três salas e era para "maiores de 18 anos":


Se o filme fosse o sucesso retumbante de público que se diz que foi em todo o lado, então em Agosto do ano seguinte, 1973,  ainda estaria em cartaz, como acontecia com alguns dos filmes que apareciam na época. 
E não foi esse o caso, como se demonstra pelo Diário Popular de 30 de Outubro de 1973, em que por exemplo o Trinitá, Cowboy Insolente ainda estava em cartaz, mais de um ano depois...e do Padrinho nem sombras porque devia andar pela "província", certamente com audiências de sucesso mas não as que reflectem o título do artigo. E até se pode ler quantos espectadores é que então iam ao cinema...ver filmes portugueses.
Poderia mesmo mostrar aqui o cartaz dos filmes relativo aos meses anteriores mas asseguro que no início do ano, em Março, já O Padrinho tinha desaparecido de tais cartazes. 


Por outro lado, em 1972 ou 73 não encontrei qualquer artigo de recensão crítica ao filme, ou sequer menção a propósito do seu carácter "seminal", original ou importância cinematográfica, como acontecia com outros filmes e realizadores.  Os críticos da praça nacional, na época não deram qualquer importância ao filme ou sequer ao realizador, F.F. Coppola. 
Agora é o que se lê...
Mas para entender esta discrepância mitificadora poderemos tentar perceber se na terra em que o filme se realizou e estreou houve assim tamanha comoção estética com tal obra agora julgada "seminal".

Se lermos o que se passava no contexto da época, segundo os registos de hoje, falíveis precisamente pelo que acabo de descrever, poderemos ao menos ler alguns factos e acontecimentos de 1972. Aqui, por exemplo:




Portanto, nos EUA foi um sucesso de público aquando da sua estreia, embora mitigado, comparado por exemplo com O Violino no Telhado, do ano anterior e que em Portugal  estreou na mesma altura do Padrinho, também com um sucesso de bilheteira muito superior a este.
Portanto impõe-se uma relativização principalmente para tentar compreender a origem do mito que entretanto se criou  e como é que estes fenómenos acontecem nos media. Nisto como noutros assuntos, por exemplo o caso Watergate, da mesma altura. 

E na crítica, foi uma "aclamação"? Talvez, no caso de Pauline Kael, a crítica respeitada do New Yorker que viu no filme e na interpretação dos seus actores uma obra importante, logo em 10 de Março de 1972. 


Porém, na Rolling Stone, o crítico Jon Landau, também respeitado, em Maio do mesmo ano não tinha exactamente a mesma opinião e considerava-o mesmo um "unsuccessful film":



Portanto, para termos uma ideia mais precisa do que era o gosto e o ambiente estético em 1972, no contexto dos EUA e que pouco tinha a ver com Portugal, ao contrário de hoje, cuja influência me parece notória, por causa da facilidade de consulta de opiniões alheias, via internet, talvez valha a pena dizer que a Rolling Stone não dedicou em 1972 ou no ano seguinte qualquer artigo de fundo ao Padrinho ou ao seu realizador, o agora muito celebrado Coppola. Nada. 
Porém, relativamente a outro filme também julgado "seminal", O Último Tango em Paris o assunto era diverso e talvez mais esclarecedor do que parece.

Em 23 de Novembro de 1972 foi notícia a ante-estreia do filme de Bertolluci num festival cinematográfico e vale a pena ler para se poder perceber que em Itália o filme fora censurado, em partes importantes. Por cá a censura foi total, até 1974, mas para quem apresenta a Censura como um argumento acerca do fassismo é bom de ler isto que segue:


E o filme teve tanta importância que na edição  de 21 de Junho de 1973, apareceu uma entrevista com Bertolucci, pelo intelectual da revista, Jonathan Cott, com ênfase no Último Tango em Paris:


 

Por cá, como já indiquei, a crítica local primeiro exigiu a exibição e "abaixo a censura"; depois de o ver e já em finais de 1974,  demoliu-o como obra de pequeno-burguês, sem interesse algum. 

Portanto para se compreender o ar do tempo é preciso cheirá-lo ou apreender o cheiro pelos sinais, como faziam os índios nos tempos dos cóbóis. 

Aqui, em Portugal, na crítica actual dos media, nem uma coisa nem outra. Preferem copiar os cheiros que outros sentiram...lendo e voltando a ler, para escrever coisas como esta.
É tão fácil ser crítico em Portugal: basta saber fazer redacções e cópias. Ditados é que é mais difícil...

O pior é que depois o que lemos acaba por ser uma mistela em que os factos são verdadeiros, os acontecimentos também,  mas a explicação dos mesmos é que se torna um enigma resolvido do único modo que sabem fazer: de acordo com o ar do tempo. Presente. Copiado.

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