Ontem, no jornal digital i, o magistrado Ántónio Cluny, colocado "lá fora", no Eurojust, publicou um escrito sobre a "responsabilidade do Ministério Público".
O escrito, como habitualmente, redunda num exercício circundante acerca de tal responsabilidade, não se percebendo onde o autor "quer chegar", para além de exprimir a ideia de que actualmente o MºPº é uma hidra de responsabilidades atomizadas nos magistrados que tomam decisões individuais.
Leia-se o escrito no estilo do costume...em que cita um caso concreto sem o identificar, para dizer que tem um dever de reserva que objectivamente abandona no final ao declarar que a responsabilidade de tal caso é imputável ao magistrado/a que o decidiu, sem qualquer reflexo nas "chefias", mormente na Coordenação do respectivo sector ( actualmente no MºPº é tudo Coordenações...nas 24 comarcas do país). E tudo por causa da lei que temos para o efeito: o CPP e o Estatuto, para além da Constituição ( foi ele mesmo, Cluny, enquanto sindicalista que lutou em 1991 para que assim fosse...).
O que resulta do arrazoado? Que os magistrados têm um estatuto e uma lei que lhes imputam a eles e só a eles, enquanto autores das decisões, a responsabilidade pelas mesmas e respectivos efeitos.
Não explica como nem porquê, mas adianta que na França não é assim e na Itália, já foi mas deixou de ser. Também não explica que a Itália e a França têm sistemas judiciários diferentes do nosso e que portanto mais haveria que dizer e explicar sobre os mesmos.
Porém, quanto ao essencial, será mesmo assim como escreve Cluny? Ou seja, teoricamente um magistrado que seja titular de um processo, decide por motu próprio e sem justificar a ninguém, o que faz no processo.
Não dá satisfações do que faz no início, no meio e no fim e só tem que observar o que está na lei que é suposto conhecer. Aliás é a própria lei, no CPP ( e só estamos a falar no direito penal porque noutras áreas nem sequer existe tal regulamentação) e no Estatuto que permite a intervenção do imediato superior hierárquico, ou seja o tal Coordenador do MºPº na comarca ou no departamento respectivo, nos termos e limites aí expressamente previstos.
No caso dos inquéritos criminais tal intervenção ocorre geralmente no fim, podendo ser antes se for decidido pelo mesmo superior hierárquico subtrair o processo ao titular, "avocando-o", assumindo a direcção do mesmo processo em vez do titular.
Tirando tais hipóteses, relativamente raras, escreve Cluny que não há possibilidade legal de outra intervenção substitutiva ou impositiva, do superior Coordenador, relativamente ao titular do processo. E assim é...legalmente.
Mas...na prática o que é que sucede e Cluny não diz e devia dizer? Pois, há uma série de expedientes para-legais que permitem a intervenção efectiva dos coordenadores e mais além, ou seja dos procuradores regionais,
estrutura de topo local, do MºPº ( há um no Porto, outro em Coimbra, outro em Évora e outro em Lisboa).
Como é que funcionam tais expedientes para-legais?
Essencialmente cada magistrado sabe as linhas com que se cosem os processos, nesse aspecto. Mas também as aprende a conhecer em reuniões onde se exprimem pontos de vista, apresentados pela estrutura hierárquica.
Para além dessas reuniões de brainstorming, onde se citam inspecções avulsas e se dão recados dirigidos, ficam definidas as balizas de actuação do MºPº que afinal é uno e corporativo e tornam-se nítidas as linhas de actuação concreta em determinados casos.
Tais linhas também são fornecidas pela estrutura hierárquica, através de ordens de serviço, directivas ou instruções, nalguns casos a pedido dos próprios titulares outras nem por isso. E tudo a funcionar num esquema informático chamado SIMP (!).
Naqueles casos do nem por isso, entram em linha de conta, as "sugestões" ad hoc, emitidas pela estrutura hierárquica superior e acatadas pelos titulares dos processos que- não esqueçamos!- segundo a lei seriam os únicos responsáveis pelas decisões.
Assim, se tomarem as decisões de acordo com as "sugestões", quem as deu fica de fora e quem aguenta com os cornos do touro do princípio da incerteza, por vezes muito bravo, é o titular do processo, seguidor acéfalo das "sugestões".
E como são conhecidos os casos a merecerem "sugestões"? Através do controlo regular dos Coordenadores, que velam e zelam pelo convento porque assim é a regra monástica, na maior parte dos casos informalmente, por conversas de corredor, bufaria avulsa ou outro método adequado ao conhecimento burocrático das realidades judiciárias.
No interim e nos procedimentos que isto carece e exige, há certamente ilegalidades porque se contrariam frontalmente os princípios básicos enunciados por António Cluny. Quid juris? Impunidade completa e redonda porque ninguém afronta a hierarquia que é efectivamente quem manda no Ministério Público em Portugal. Irresponsavelmente?
É o que Cluny escreve...
Em coda, resta dizer o seguinte: são poucos, muito poucos os magistrados com personalidade suficiente para não embarcarem nas "sugestões" e muito menos contrariá-las, alegando a lei que aliás os protege. Quem o fizer, sabendo porque o faz e de propósito, fica "marcado" e nunca chegará a qualquer lugar de destaque mesmo que tenha habilitações para isso, em escolha directa ou em votações conciliares.
Portanto é legítimo concluir que só chega a tais lugares quem se conforma e aceita tais práticas. E para bom entendedor...
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