No Jornal de Letras de 4 de Maio, o cineasta João Botelho volta a falar do filme que prepara, para as comemorações do cinquentenário. Da deposição do regime anterior, entenda-se.
E volta a falar de Salazar de um modo caricato e que revela o partis-pris que vai determinar que o filme que vai fazer seja antecipadamente uma porcaria. Ora leia-se:
Adoptando ideias avulsas e alheias, "Salazar era mesquinho, tinha 500 galinhas em S. Bento, 13 criadinhas no sótão e levava aquelas injecções."
E porque é que este cineasta formado em mecânica e com um curso de cinema, abomina Salazar? Porque "sofri muito com o salazarismo. Andei numa escola pública que era o único que tinha sapatos, os outros andavam descalços na neve...as taxas de analfabetismo brutais, a miséria absoluta".
Estas ideias de pobre de espírito nem por um momento permitem facilitar o raciocínio de que Salazar chegou ao poder em 1926 com um país ainda pior, fruto da obra dos seus comparsas ideológicos ou aparentados, mas enfim, vamos a outro aspecto mais interessante.
Em 18 de Maio de 1973, a revista Flama entrevistou o cardeal Cerejeira, então ´com 84 anos e recolhido numa casa de repouso para idosos, do Patriarcado.
O que diz na entrevista é revelador de algo que qualquer cineasta culto e bem intencionado deveria ler e meditar para tentar perceber um homem no seu tempo, no caso Salazar.
Cerejeira era amigo de Salazar e conta como foi o início de tal amizade: conheceu-o quando se matriculou em Direito, em Coimbra. E depois tenta definir quem foi Salazar.
Uma pessoa que nunca foi rapaz e viveu uma vida repleta de austeridade, "tomando frequentemente um aspecto exterior que não lhe pertencia. Foi o homem mais complexo, ainda que o mais rico em dotes intelectuais, de toda a minha geração, em Coimbra. O político pouco tinha a ver com o homem".
Para além disso o mesmo Cerejeira recorda alguns factos, contados pelo repórter Alexandre Manual que dali a meses iria dar uma volta ideológica completa. Veremos como foi.
Um dos episódios teve a ver com a circunstância de talvez não poder ir ao funeral da mãe, quando ainda estava em Coimbra, por não ter sapatos que lhe servissem, por ter os pés inchados de estar ao pé da mesma, durante os últimos dias de vida.
Segundo Cerejeira, Salazar nunca fora um homem feliz por causa das suas ambições. Que ambições? Cerejeira não o diz, mas não eram certamente pessoais, no sentido da riqueza ou engrandecimento, pelo que sobra o resto que era fatalmente a dedicação aos assuntos de Estado e da Pátria. Ou seja, o que nunca mais tivemos do mesmo modo, ou parecido, nos últimos 48 anos, antes pelo contrário. Nem é preciso exemplificar porque basta pensar em qualquer um dos que ocupou a cadeira respectiva.
Para explicar isto que dizem os Botelhos da vida actual? Que Salazar era mesquinho porque tinha 500 galinhas no quintal.
E que dizem das relações entre Cerejeira e Salazar? Pois há uma caricatura de João Abel Manta que os define no que dizem:
O que esta caricatura represente é a perversão completa de uma realidade em prol de uma visão ideológica em que os prelados aparecem com cabeça de alho chocho, atrás de um Salazar de terço e chapéu na mão. Quem se revia nesta imagem? Os social-comunistas, apenas. Que se replicaram depois e ainda não abandonaram o credo.
Para entender o que Cerejeira diz de Salazar em 1973, depois de ter renunciado ao Patriarcado em 1971, é necessário saber que Salazar tinha morrido em 1970 e quem assim o define é um padre, neste caso cardeal, no seu tempo, crente em Deus e dedicado ao múnus religioso durante toda a vida.
Aliás, já em tempos coloquei aqui um escrito da revista Observador, de 1973, acerca do cardeal Cerejeira.
O que diz sobre o seu relacionamento pessoal com Salazar também é interessante porque desmente a ideia-feita que ambos se entretinham a orientar o país, em comunhão de ideias, propósitos e combinações.
Sobre a Concordata vale a pena ler o que diz, tal como o que dizia um frade de Terras de Bouro, que ainda está vivo, e que em 1974 deu uma extensa entrevista a um jornal comunista. Frei Bento Domingues, um "teólogo da libertação", dos pobres. Teólogo dos pobres, entenda-se. Felizmente tem um irmão que pensa de outro modo...
Há um mundo a separar estas concepções. E uma realidade que não se entende se não for assim contextualizada.
E que dizer do entrevistador chamado Alexandre Manuel que em Maio de 1973 se mostrava solícito e aparentemente compreendedor de tal contexto, e passado um ano se revelava um dos comunistas mais radicais da ortodoxia do PCP?
Nada mais que isto e principalmente isto, na mesma Flama mas em 17 de Maio de 1974:
E este de 9 de Agosto de 1974 ainda é mais explícito, sobre o tema. Incrível!
Este Alexandre Manuel meteu-se depois no ISCTE e lá parece ter elaborado uma tese de doutoramento sobre o jornalismo regional...
Na altura escrevi assim, sobre este indivíduo e o fenómeno da viragem de casaca ao contrário: "já se alargava nas considerações escritas sobre o sindicalismo, "porque a história, a verdadeira, ainda não começou a ser feita". Até então a História tinha sido uma farsa. Como agora, pelos vistos...Alexandre Manuel, um dos jornalistas portugueses que aprendeu depressa a lição: a Esquerda é quem mais ordena, dentro de ti, ó...! ( ia a escrever palonço, mas recuei a tempo). "Reinvidicação", por seu lado, faz jus pleno ao "irradicar"..."
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