domingo, maio 01, 2005

Compagnons de route

“Era um punhado de jornalistas, unidos pelo ideal comum da dignificação profissional, que, enfim, a queda do fascismo e a abolição da censura estatal iriam tornar possível. Mas no início de 1975. esse grupo de profissionais experimentava uma sensação de desencanto em face dos caminhos então trilhados pela Imprensa portuguesa, abalada pelo tumultuar de paixões que, após décadas de silêncio e de sujeição, fervilhavam no seio da sociedade portuguesa , reflectindo-se, naturalmente, no ambiente dos jornais.”

Foi assim que em 12 de Maio de 1978 a redacção de O Jornal, celebrou editorialmente os três anos de aniversário, mostrando numa fotografia colectiva todos os que faziam o “esforço colectivo” de todas as semanas, a cada sexta-feira, porem nas ruas e quiosques o jornal que no primeiro número de 2.5.1975, se afirmava como “um semanário de jornalistas que para tal se constituíram em sociedade, decididos a trabalhar por uma informação objectiva e esclarecedora, desligada das pressões de sectores económicos e da influência de quaisquer forças políticas, culturais ou religiosas, optando perante os acontecimentos uma posição crítica progressista, norteada pelos princípios de isenção e de defesa do interesse público, que entendem ser impostos à sua função pelas regras deontológicas da Imprensa e pela sua ética profissional.”

Com tais desideratos, aliás ainda hoje plenamente válidos, como resistir a tal oferta pública de qualidade informativa?

O O Jornal, faria agora( 2 de Maio) trinta anos se não tivesse desaparecido da circulação em 27 de Novembro de 1992. Mesmo assim, merece a celebração, porque foi, a par do Expresso e do Público, um dos jornais mais influentes na sociedade portuguesa destes últimos trinta anos, particularmente até final da década de oitenta.

A memória destes trinta anos, aliás, não se perdeu, porque esta semana, a revista Visão, herdeira directa do legado do defunto jornal, não deixou passar em claro a efeméride.

Ao contrário, porém, do que aí se escreve, o O Jornal, não foi “o primeiro jornal criado no pós-25 de Abril”. A palma do feito, nessa área, pertence ao Jornal Novo dirigido por Artur Portela Filho ( o actual membro da AACS); e ainda apareceu nesse ano, no dia 1de Abril, outro semanário, A Gazeta da Semana, dirigido por João Martins Pereira ( vindo da colaboração na Vida Mundial, um dos viveiros do futuro O Jornal, que aí foi recrutar Afonso Praça, Pedro Rafael dos Santos, Fernando Antunes e…Francisco Mata).
Também em 9 de Abril desse ano saiu o único jornal que alguma vez assumiu uma posição extremada à direita, ultrapassando nessa área, o sector conservador do caetanismo caído:
A Rua, dirigido por um homónimo de um dos redactores do jornal: Manuel Maria Múrias( o do O Jornal era Manuel Beça Múrias) E também não deve esquecer-se que o primeiro jornal a sair depois do 25 de Abril de 1974, terá sido um fulminante, discreto e efémero O Raio, dirigido por Vítor Ilharco, em reedição, tal como outra, na mesma ocasião, de um jornal muito antigo, o Sempre Fixe, cuja 2ª série se orientou, logo em 1974, por uma via de esquerda, íngreme e pronunciada. Acabou cedo, talvez por causa disso e aquele Raio acabou também por se autodestruir, lá para as bandas da Covilhã…
Em 1 de Janeiro de 1976 apareceu O Diário, para que o Avante do PCP, pudesse cumprir com garbo e isenção, uma função mais típica e sectária.

A análise dos jornais de onde provieram os jornalistas que fundaram o O Jornal e a escola de jornalismo- que frequentaram e que foi a da tarimba diária na reportagem assistida por colegas mais velhos e experimentados,-mereceria alguma atenção e possivelmente será objecto de estudo em escolas de jornalismo, actualmente.
Porém, sempre será interessante referir que essa escola da vida profissional, em exercício, tem as suas cátedras em anteriores meios de informação escrita, durante os anos sessenta: A Flama; o Século Ilustrado; a Vida Mundial e os jornais diários, República, A Capital, Diário de Lisboa e Diário de Notícias.

Da Flama, dirigida então(1974) por António dos Reis e que tinha sido propriedade do Patriarcado da Igreja Católica, através da União Gráfica vieram por exemplo, Edite Soeiro que em 1974 era chefe de redacção dessa importante revista dos anos sessenta portugueses. Antes, no início dos anos setenta, e quanto a revista ainda era do Patriarcado, como aliás a Rádio Renascença, por lá tinham passado, Manuel Beça Múrias, J. Silva Pinto, Daniel Ricardo( actualmente um director executivo da Visão), todos eles futuros fundadores do O Jornal.
A Flama merecia, só por si, um site inteiro na net, tanto é a importância que assumiu como órgão de informação geral no Portugal salazarista e escola de jornalismo da nossa paróquia.
Outro órgão semellhante e de concorência semanal era o Século Ilustrado.
Em 1974, era dirigido por J.R. Redondo Júnior, mas tinha como redactores por exemplo, Rogério Petinga, colaborador futuro do Jornal de Letras( um rebento de O Jornal) e autor de artigos sobre José Cardoso Pires. Mas em 1971, o Século Ilustrado que pertencia à Sociedade Nacional de Tipografia e tinha como redactores, por exemplo, Daniel Ricardo ( exactamente); Cáceres Monteiro ( exactamente) ; Maria Antónia Palla ( mãe de António Costa, do PS) e tinha como director Francisco Mata ( exactamente).
Em 1968, o mesmo Século Ilustrado, tinha um leque redactorial interessante: além dos mais, Fernando Brederode dos Santos, Roby Amorim, Manuel Figueira ( para a Vida Mundial depois), Lauro António, José Mensurado, Carlos Pinhão, etc.
A diferença assinalável entre a Flama e o Século Ilustrado, a meu ver, era uma atenção mais aprimorada à música pop, em páginas assinadas por “Flipie”; a reprodução de artigos de Oriana Fallaci; as palavras cruzadas mais originais e…as fotos de “página três”! Sim! O Século Ilustrado, publicava em página discreta, fotografias indiscretas de mulheres interessantes em trajes de lucir e isso tornava a revista irresistível face á concorrência da revista do Patriarcado e dava-lhe vantagem competitiva nos quiosques…

Assim, O Jornal, em 1975, tornou-se herdeiro dessa geração de jornalistas que sabiam escrever um português irrepreensível; tinham aprendido a profissão em tarimbas de redacções salazaristas… ma no troppo- e alinhavam pelos ideias democráticos proclamados logo em Abril de 1974, porque também trabalharam para isso e sentiram diariamente o esforço da censura marcelista que lhes podavam constantemente as intenções e artigos mais ousados ou apenas mais interessantes.

Talvez por essas razões combinadas, os jornalistas e a redacção de O Jornal, bem como os colaboradores, entre os quais se contaram por exemplo, José Cardoso Pires, Fernando Assis Pacheco e Dinis Machado na escrita e João Abel Manta no desenho, acompanhassem a experiência do PREC, como autênticos compagnons de route do extremismo rompante, liderado por Vasco Gonçalves e o PCP.
Enquanto que o Expresso se demarcava ao ponto de ter sido apelidado de “pasquim” pelo dito Vasco, O Jornal mostrava na redacção das notícias uma boa compreensão para com os bravos capitães e militares de Abril transformados em agentes activos de um PREC impetuoso e imparável até ao 25 de Novembro.
Basta comparar manchetes, durante o PREC.
9.5.1975, O Jornal nº2- “Só a Unidade é revolucionária”, título que legenda uma foto em que se vêem Soares e Cunhal noo comício do 1º de Maio no Estádio…1º de Maio.
16.5.1975, O Jornal nº 3: “Na agenda do MFA- Tribunal Revolucionário”
23.5.1975, O Jornal nº 4: “ Por onde vamos Portugal?” e em legenda a uma foto de Costa Gomes e Vasco Gonçalves, “ na unidade do MFA a garantia da Revolução”.
4.7.1975, O Jornal nº 10: em pleno início do Verão Quente, por altura da fuga de 89 Pides de Alcoentre, o jornal dirigido por Joaquim Letria, perguntava : “ os homens sem sono andam a dormir?” E editorializava, logo na primeiras página: “ É urgente defender e consolidar a nossa Revolução-para defendermos agora, até, as nossas vidas, e para comnquistarmos o socialismo. Para isso é indispensável a unidade, coesão, formeza e disciplina revolucionária do MFA e do Povo. Fidel Castro o disse e repetiu: ser revolucionário consistirá em fazer coisas insensatas? Consiste em agir sem disciplina e fazer o que nos parece?(…)”
Em 15.8.1975,no período mais quente do Verão, titulava: “Só com documentos a gente não se governa”. No interior, um certo Eduardo Prado Coelho, articulava ideias luminosas como esta: “Estamos também a reconhecer que a etapa por agora nos importa consolidar é a de uma democracia avançada- com base numa aliança das forças monopolistas, mesmo que seja a pequena-burguesia a tomar a hegemonia do processo.” Só isto, ao transcrever, provoca alguma náusea, ao abrir actualmente o Público e dar de trombas com a crónica do costume…mais à frente, e para que não haja dúvidas: “ É importante que se faça uma frente de unidade popular”. Claro…
A fls. 8 e 9, o destaque vai todo para o papel da Igreja Católica e de um certo arcebispo, Francisco Maria da Silva( com direito a foto) e subtítulo “ detidos pelo COPCON dez reaccionários”, a propósito de uma manifestação de apoio ao episcopado bracarense que redundou num assalto à sede do PCP.
Em 26.9.1975, a notícia é: “O Governo aquece e o país escalda”; Bombas em Lisboa”; “A marcha dos SUV” e “Deficientes em luta”. Em editorial, reafirmava-se que “ Somos apenas jornalistas…” Pois eram!
Como os do Expresso, aliás, e que no número de 26 de Julho de 1975, titulava: “Costa Gomes, V. Gonçalves e Otelo tomam direcção política da revolução” e ainda “ “Uma Frente Unida Popular condição do V Governo?”
Em Janeiro de 1975, este jornal, em editorial tinha escrito: “ O que está em causa efectivamente é a liberdade. Do sindicato único ao partido único a distância pode ser curta.”

O O Jornal nunca teve, nessa época do PREC, um discurso assim tão claro- e é essa a diferença que marca uma geração: a dos que fizeram um caminho do lado de uma ala liberal, vinda já dos tempos do marcelismo, como foi o caso inequívoco do Expresso e a daqueles que retomaram uma rota ao lado dos pretensos lutadores pelas mais amplas liberdades e que se aprestavam a dizimá-las com a melhor das intenções e nas oportunidades que foram criando, sempre, sempre ao lado do povo.
O melhor exemplo disso mesmo, aliás jaz na experiência notável do nosso Nobel á frente do Diário de Notícias:
"Militante comunista desde 1969, José Saramago deixa de assumir uma posição discreta quando é nomeado director-adjunto do Diário de Notícias em 10 de Abril. Ao lado do director, Luís de Barros, torna-se então, o defensor do 'verdadeiro socialismo', contra a 'democracia burguesa' e os 'salazaristas do CDS'.
Durante o "Verão Quente", o jornal transforma-se em palco de saneamentos por motivos puramente políticos. Muitos jornalistas queixam-se de serem obrigados a relatar tudo o que se passava no PCP e outras forças progressistas e que os artigos são passados a pente fino. As repreensões verbais sucediam-se. O processo ficou conhecido pelo "Manifesto dos 24", quando um conjunto de jornalistas resolveu organizar-se para denunciar o clima interno. Vinte de duas pessoas foram afastadas sem indemnizações.
Em 1991, Saramago ripostava, a esse respeito: "O jornal tinha uma certa linha e não podia transformar-se numa espécie de tribuna onde toda a gente poderia dizer do jornal aquilo que quisesse."
Em Novembro de 1975, a livraria do Diário de Notícias é destruída por uma bomba. Uma semana depois, dá-se o 25 de Novembro, Luís de Barros e um conjunto de jornalistas alinhados com as suas posições são afastados, por sua vez, do jornal.”- In Público, As polémicas de Saramago, 9 de Outubro de 1998

E efeméride de O Jornal deve assim assinalar-se, mas com o destaque devido a uma reconstituição histórica que não se fique pelo mero panegírico. É que realmente muito se caminhou desde Maio de 1975 até chegar à Visão das coisas de hoje, mas a verdade é que muito desse caminho foi feito com compagnons de route de companhia democraticamente duvidosa.
E esse caminho bifurcou-se depois por outras publicações que são referências incontornáveis da nossa vida cultural popular, dos últimos trinta anos: O Sete; o Jornal de Letras , o Jornal da Educação e a revista História, são outros tantos rebentos dessa linha editorial começada em 1975, mas com tradições ainda mais antigas e remotas que atingem a essência de um envolvimento socio-cultural cuja história está por fazer, mas que me parece fundamental para perceber o desenvolvimento cultural e até político, em Portugal.

Está por entender como cerca de duas dúzias de pessoas - se tanto!- em cerca de trinta anos de vida pública, condicionaram e acompanharam também um modo de pensar a política e as orientações socio-culturais, de forma singular e que sob um manto diáfano de fantasia moderada chegaram, numa época propícia, a acreditar em amanhãs que cantavam supostamente noutras latitudes.

O Público activista e relapso