segunda-feira, fevereiro 02, 2004

O Jornalismo de Investigação e a Justiça


Num artigo publicado em 2002, o jornalista José Pedro Castanheira, escreveu neste local de além-mar, extensamente sobre o jornalismo de investigação em Portugal- antes do caso Casa Pia.

Vale a pena recordar o escrito e aqui ficam os últimos parágrafos e a seguir a cópia integral:

Todos sabemos que os tribunais funcionam muito deficientemente. Até há bem pouco tempo, a investigação sobre os chamados crimes de colarinho branco não passava de uma farsa. Quem contasse com conhecimentos bem colocados e bons advogados, pagos a peso de ouro, estava safo. "Em Portugal, temos desigualdade de justiça, só temos pobres diabos presos." A frase é de Maria José Morgado, a procuradora-geral-adjunta que saiu da Polícia Judiciária a bater com a porta (Público, 29/9/02). Ou seja: "A justiça que temos é forte com os pequenos e desigual em relação à criminalidade dos poderosos". O ex-presidente do Benfica, Vale e Azevedo, acabou por ter azar: foi a primeira figura do jet set nacional a ver os seus negócios investigados a sério. Julgado, foi a condenado a quatro anos e meio de prisão efectiva. Seguiu-se a Universidade Moderna, cujas conseqüências ainda são imprevisíveis no plano político. Muito provavelmente, com as recentes demissões na PJ, tudo voltará à farsa do costume.
Ora, um grande número de casos abordados pelos jornais incidem não tanto sobre os crimes of the streets, e mais sobre os crimes of the suites. Mal investigadas pela Polícia Judiciária ou pelo Ministério Público, as denúncias feitas pelos media acabam por dar em nada. Ou melhor, acabam por voltar-se contra os media, na medida que põem em causa a sua credibilidade.
Por outro lado, há a lentidão paquidérmica dos tribunais. Em 1985 escrevi em O Jornal uma história sobre a passagem de cheques sem cobertura em quatro países, por parte de um fulano que entretanto fora nomeado administrador de uma empresa para-pública, ainda por cima com o pendências financeiras. A história parecia-me meridiana e tinha como base aquilo que eu julgava ser a melhor fonte possível: uma ficha da Interpol, com identificação completa do homem, sem esquecer a própria impressão digital. Fui processado. Estávamos na altura do "Bloco Central", a grande aliança entre PS e PSD. O homem era do PSD, "irmão" num dos mais importantes ramos da Maçonaria e foi defendido por um dos mais conhecidos e caros advogados da nossa praça. Já estão a imaginar o resultado: perdi! Na primeira instância, fui condenado pelo crime de difamação a três meses de prisão. Apesar de se ter provado que a ficha da Interpol era autêntica. O processo, digno de Kafka, subiu e acabei por ganhar na Relação e no Supremo, mas ao fim de onze anos - isto numa época em que os crimes de imprensa ainda eram considerados de apreciação prioritária... Nesse ínterim, já eu saíra de O Jornal, que por sua vez já não existia, enquanto a minha principal fonte e testemunha de defesa já tinha falecido...
Já no Expresso, acompanhei de perto uma história sobre um escandaloso perdão fiscal, determinado pelo então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Oliveira e Costa. A história foi escrita em 1990. O caso continua - e já passaram 12 anos.
Não sei quantos processos tive, mas foram mais de uma dezena (presentemente, creio que não tenho nenhum). E eu até passo por ser um jornalista rigoroso e cauteloso. A verdade é que os tribunais acabam por transformar-se numa maçada para toda a gente - menos para os advogados, os únicos que ganham verdadeiramente com isso. Ninguém gosta de ir a tribunal: não é só o jornalista, são também as testemunhas de defesa, mesmo as abonatórias, o editor (que pôs em página e titulou a notícia), o director (que até 1999 era legalmente co-responsável por tudo quanto se publicava), e a empresa (que vê um seu jornalista e o seu jornal no banco dos réus e que teme o montante de uma eventual indemnização). Depois, são as sessões adiadas. E as ausências que têm de ser justificadas. E as multas que têm de ser pagas. E os interrogatórios sobre assuntos que quase todos já esqueceram. E os recursos para a Relação. E os contra-recursos para o Supremo. O jornalista acaba por se sentir "culpado" por incomodar tanta gente, fazer perder tanto tempo, esgotar tantas energias. Tudo isto acaba por se transformar numa forma de pressão inconsciente sobre o jornalista. Mas valerá a pena? - acabará por se interrogar, quando depara com um novo caso complicado.
Veja-se o que é feito dos grandes casos da Imprensa de há dez, doze, quinze anos. Veja-se o caso Malancia. Para os mais novos e para os que têm a memória mais curta, recordo que a primeira manchete de O Independente com o fax para o governador de Macau foi em fevereiro de 1990. O caso só foi definitivamente encerrado pelo Supremo Tribunal de Justiça há exactamente duas semanas - mais de 12 anos depois!
Perante tamanha morosidade e/ou incompetência da máquina judicial, a dúvida instala-se: valerá mesmo a pena continuar a esgrimir contra moinhos de vento? Valerá mesmo a pena correr riscos?
Fico-me por aqui. Não distingui, propositadamente, os aspectos conjunturais, dos aspectos mais estruturais ou, se se preferir, das tendências mais profundas, de longo prazo. Como não me pronunciei sobre as formas de tentar alterar esta situação de estado de crise. Fica para o debate.





Pois, para constar, esta porta vai abrir-se a esta problemática e aqui fica o extenso artigo integral:
O espaço da investigação no jornalismo português

José Pedro Castanheira (*)
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/iq231020021.htm

O espaço da investigação no jornalismo português
José Pedro Castanheira (*)
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/iq231020021.htm


I
No domingo, 8 de setembro de 2002, os jornais publicaram um anúncio de página inteira da direcção do CDS/PP. Com o título "O Expresso mente", o anúncio foi largamente noticiado nas rádios e por todas as televisões. Em causa, estava o tratamento informativo dado pelo semanário ao chamado "caso Universidade Moderna" e ao envolvimento do líder do CDS e actual ministro de Estado e da Defesa, Paulo Portas. Vou poupar-vos a detalhes do anúncio. Retenho apenas o ponto nº 9: "Em defesa do seu bom nome, o CDS instruiu o seu advogado para processar o Expresso, exigindo uma indemnização no valor de um milhão de contos".
Um milhão de contos - uma verba inexistente, na medida em que contos, escudos e tostões deixaram de existir há quase um ano. Mas como bem assinalou, com a sua habitual ironia, o jurista Francisco Teixeira da Mota, os portugueses "tiveram a alegria de voltar a ver brilhar a nossa ex-moeda nas páginas dos meios de comunicação social..." (Público, 15/08/02).
Agora a sério: seja um milhão de contos, sejam cinco milhões de euros, trata-se porventura do maior pedido de indemnização alguma vez exigido em Portugal no âmbito de um processo de liberdade de Imprensa. Até agora, o recorde de indemnizações pedidas ao Expresso era de 70 mil contos. O CDS de Portas reclama 14 vezes mais! O objectivo é claro: não se trata de ressarcir os queixosos, mas tão só de intimidar, atemorizar, não apenas o Expresso, mas os demais órgãos de informação. Basta reparar que, na hipótese simplesmente absurda de algum tribunal estipular uma indemnização daquele montante, isso significaria o fecho quase automático - por falência - do Expresso ou de qualquer outro jornal ou rádio.
Será que a "violência" deste ataque é proporcional à qualidade média, ao impacto e à credibilidade do jornalismo que se está a praticar presentemente? Se assim fosse, seríamos levados a pensar que estamos a viver um excelente momento, designadamente em matéria de jornalismo de investigação. Nada mais falso, como irei tentar demonstrar.
II
Como se sabe, o chamado jornalismo de investigação teve o seu momento mais alto em 1974, com a revelação do "caso Watergate". Pela primeira vez na história da Imprensa, uma investigação conduzida por um jornal, o Washington Post, levou à renúncia de um presidente da República, ainda por cima da maior potência do planeta.
Em agosto de 1974 - data em que o presidente Richard Nixon se viu obrigado a abandonar a Casa Branca - Portugal dava os primeiros passos na aprendizagem e na experimentação da liberdade de Imprensa, conquistada após quase meio século de censura. Só dez anos depois é que se verificam as primeiras incursões, digamos a sério, nesta espécie de disciplina do jornalismo que se convencionou chamar jornalismo de investigação. Ao contrário do que já tenho lido e ouvido, não foi o semanário O Independente quem começou por se aventurar nesta área. Ainda este título não existia e já dois outros semanários tinham publicado, com alguma regularidade, excelentes reportagens do género. Refiro-me, como já devem ter adivinhado, ao Expresso e a O Jornal. No Expresso, os pioneiros foram principalmente Joaquim Vieira e o já falecido Celestino Amaral. Alguns recordar-se-ão certamente de excelentes trabalhos sobre a empresa Emaudio, o caso "Dopa" ou os GAL - só para citar alguns que me vêm à memória. O seu mais directo concorrente, O Jornal - infelizmente já extinto - seguiu as pegadas do Expresso.
Nessa altura, eu trabalhava em O Jornal. Durante cerca de dois anos (1984/85), investiguei uma espécie de saco azul existente na então secretaria de Estado do Emprego, destinado à manutenção dos postos de trabalho e a apoiar empresas em situação económica difícil. Só à minha conta, escrevi 81 artigos sobre o assunto. Orgulho-me de ter sido o primeiro jornalista a levar a Assembléia da República a constituir uma comissão parlamentar de inquérito sobre um assunto revelado nas páginas de um jornal. (Foi a primeira de muitas comissões de inquérito do género. Sobre os seus resultados muito haveria a dizer.)
Quando O Independente surge nas bancas, em maio de 1988, a concorrência entre os semanários intensifica-se. Até porque o novo periódico pratica um jornalismo que cedo se diferencia dos restantes. Não é só por ser mais jovem e inovador. Nem por ser mais agressivo na forma e mais acutilante no conteúdo. É um estilo - diria mesmo: um modelo - diferente dos demais, que se vai desenvolvendo a pouco e pouco. De acordo com Mário Mesquita (Público, 22/9/02), o aparecimento de O Independente "assinalou uma nova era na Imprensa portuguesa, cultivando o tipo de investigação jornalística a que os norte-americanos no início do sec. XX chamavam 'muckracking', o que se poderia traduzir, livremente, por 'varrer o lixo'". Sucessivos directores - com especial destaque para Paulo Portas, mas não só - vão contribuindo, semana a semana, para a definição desse novo modelo de jornalismo. É um novo jornalismo militante, de combate, de denúncia, que se propõe contribuir para o saneamento e moralização da vida pública, que acaba por ser sintetizado (caricaturado?) na expressão "O 4º Poder" que actualmente O Independente exibe como subtítulo.
III
Durante alguns anos, os três semanários, numa saudável concorrência, tentam descobrir novas histórias, ir mais ao fundo, dar uma informação mais completa. Por vezes, e inevitavelmente, as investigações e as reportagens incidem sobre os mesmos episódios. Alguns deles, ficarão a marcar profundamente a vida política. Quem não se lembra do caso do aeroporto de Macau e do fax de uma empresa alemã para o então governador Carlos Melancia? Ou do célebre relatório da Inspecção Geral da Saúde, durante a vigência da ministra Leonor Beleza?
É uma época em que o jornalismo de investigação é assumidamente uma das prioridades - senão mesmo a prioridade - dos jornais de referência. Aos semanários, acabarão por se juntar alguns diários: o Público, criado em 1990, e até o centenário e circunspecto Diário de Notícias. Alguns serão levados a dizer que foi uma moda. Eu penso que foi muito mais que isso.
A cotação no mercado dos jornalistas especializados nesta área nunca terá sido tão alta como então. Os jornais investiram fortemente neste tipo de jornalismo: em meios financeiros (aumentando substancialmente as dotações orçamentais da Redacção) e em meios humanos. Aos escândalos revelados, era reservado um lugar de destaque nas primeiras páginas, inclusivamente como manchete.
Lembro-me que no semanário O Jornal, onde trabalhava, em 1987 passei a coordenar um gabinete de investigação, instalado numa sala própria, e de que faziam parte, a tempo inteiro, mais cinco jornalistas: quatro seniores e um estagiário (para além de vários colaboradores). Os seniores eram o João Garcia (que é presentemente editor do Expresso), o Rogério Rodrigues (argumentista de programas de televisão), o Nuno Ribeiro (o correspondente do Público em Madri) e o José Rui Cunha (que viria a ser correspondente da SIC e da RTP em Bruxelas); o "júnior" era o João Adelino Faria, que agora é um dos pivots da SIC Notícias.
Quando, em 1989, me mudei para o Expresso, fui integrar uma estrutura semelhante, embora com um perfil mais informal. Chegámos a ser sete jornalistas. A importância estratégica dada pelo jornal era de tal monta que a coordenação era assegurada directamente pelo próprio director-adjunto, Joaquim Vieira. Era uma época em que a direcção do Expresso ainda não era composta por cinco pessoas, mas apenas por duas - uma das quais, como disse, coordenava uma área considerada nobre: a investigação.
Ao tempo áureo do jornalismo de investigação correspondeu um aumento sensível dos processos judiciais por alegado abuso da liberdade de Imprensa. Às revelações, denúncias, críticas e ataques dos media responderam os visados com recursos em catadupa para os tribunais. Os queixosos eram de toda o tipo: governantes, deputados e autarcas; patrões e sindicalistas; juizes e advogados, sei lá que mais. A agenda dos directores dos jornais - que à luz da Lei de Imprensa da época eram co-responsáveis por tudo quanto se escrevia no respectivo periódico - passou a estar repleta de idas à Polícia Judiciária e de audiências em tribunal. Os advogados dos jornais nunca tiveram tanto trabalho. E os jornalistas passaram a coleccionar processos.
Os dados estatísticos são elucidativos. O quadro anexo foi elaborado a partir de dados fornecidos pelo gabinete de Imprensa da Polícia Judiciária. Ilustram o número de inquéritos efectuados pela PJ, em nível nacional, a partir de processos instaurados aos meios por alegados abusos da liberdade de imprensa. Os anos em apreço são os últimos 15: entre 1987 e 2001. A curva mostra um pico muito acentuado no triénio 1992/1994. O recorde foi atingido em 1993, com 91 processos. É a época áurea de um determinado jornalismo de investigação, correspondente, em termos políticos, ao período de declínio do cavaquismo [referência ao governo Cavaco Silva].
IV
Feita esta espécie de flashback, vejamos agora a actualidade.
Os gabinetes de investigação, criados em algumas redacções, desapareceram. Eu, pelo menos, não conheço nenhum. Evidentemente que continua a haver jornalistas mais soltos, livres, vocacionados para este tipo de abordagem. Mas normalmente trabalham isolados, sem uma equipa de apoio, sem uma estrutura permanente e organizada. As task forces só surgem em momentos e casos especiais (como aconteceu recentemente com o caso da Universidade Moderna), que logo de desfazem assim que esses casos desaparecem das agendas políticas e mediáticas. O que significa que o jornalismo de investigação quase passou a ser conseqüência de rasgos individuais, de iniciativas pontuais. Perdeu grande parte do carácter colectivo, planeado e organizado. Deixou de ser uma aposta estratégica das empresas e direcções editoriais.
Voltemos ao quadro da Polícia Judiciária. Atingido o pico de 1993, a curva é praticamente sempre a descer, até atingir o seu mínimo "histórico" - como gostam de dizer os nossos camaradas especializados na análise dos altos e baixos das bolsas. Esse mínimo foi no ano de 2000, com apenas 22 inquéritos - um quarto dos registado nos anos de 92 e 93. O aumento verificado em 2001, para 64 inquéritos efectuados pela PJ, tem uma explicação especial: parece dever-se mais à informação desportiva do que aos media de informação geral.
Embora não comparáveis com a estatística da Judiciária, o número de processos que estão em curso contra o semanário O Independente confirma a mesmíssima tendência. Os últimos dois anos trouxeram ao "Indy" muito menos processos do que antes. Assim, estavam em curso até há muito pouco tempo, 14 processos relativos ao ano de 1997, outros 14 de 1998 e 23 de 1999, número que baixou para apenas 7 em 2000 e 9 em 2001. E sei que algo de muito semelhante se passa quer como o Expresso, quer com o Público.
Estes dados parecem falar por si. Constituem um indicador seguro de uma desaceleração ou mesmo de uma crise - chamemos-lhe assim - do jornalismo de investigação. Se o número de processos diminuiu substancialmente, das duas uma: ou o número de "casos" reportados pelos media diminuiu, ou então as notícias deixaram de incomodar seriamente os seus intervenientes, a ponto de estes não sentirem necessidade de contra-atacar através dos tribunais. A verificar-se esta segunda situação - e, com os dados que possuo, não estou em condições de o poder afirmar -, estaríamos perante um indicador de uma outra situação: a falta de credibilidade das denúncias e revelações. Ou seja: a falta de credibilidade dos media.
Chegados a este ponto, a questão que se coloca é esta: o que aconteceu, nos últimos anos, para que o jornalismo de investigação tenha passado de uma prioridade estratégica dos media de referência, para uma modalidade de jornalismo simplesmente tolerada? O que levou a esta profunda alteração?
Tenho procurado reflectir sobre esta situação. Darei em seguida algumas pistas ou linhas de força. São certamente discutíveis, até por serem contraditórias entre si, mas poderão ajudar a compreender um fenómeno obviamente complexo.
V
A tabloidização dos media - ou a preferência por uma informação mais light.
Um estudo realizado pela Media Monitor (Público, 11/9/02) revelou o top ten das figuras mais vistas nos canais generalistas da televisão portuguesa durante o passado mês de agosto. O estudo incidiu sobre as chamadas visualizações, um indicador que cruza o número de notícias com o número de pessoas que as viram. Vamos então ao tal top ten. Primeiro: Mário Jardel (com a espantosa média de 18,6 visualizações - e atenção que não estamos perante uma percentagem, porque o mês não tem cem dias mas apenas trinta, o que significa que cada espectador viu o Jardel na televisão mais do que dia sim, dia não). Depois do Jardel vêm: Nuno Gomes, Laszlo Boloni, Pinto da Costa, Valentim Loureiro, Manuel Vilarinho. Só em sétimo lugar surge a primeira figura não ligada ao futebol - Durão Barroso, que, para quem se tenha esquecido, é o primeiro-ministro de Portugal. Seguem-se, nos três últimos lugares deste ranking, Paulo Portas, Jesualdo Ferreira e Ferro Rodrigues. Ou seja, o futebol - e estamos a falar de um mês em que não há competições, nem nacionais nem internacionais - ocupa sete dos dez primeiros lugares, contra apenas três da política. A esta "ditadura" do futebol renderam-se os três principais canais: TVI, SIC e RTP1. O Jornal das Nove da RTP2 é o serviço noticioso mais equilibrado: Jardel mantém-se destacado à frente, mas no segundo lugar surgem, praticamente ex-aequos, Durão Barroso, Paulo Portas e Nuno Gomes.
Instalada de armas e bagagens nas televisões, a tabloidização tem influenciado a pouco a pouco a informação produzida pelos restantes media, incluindo alguns diários e semanários de referência. Exemplo paradigmático é a atenção e destaque concedidos ao divórcio do famoso casal Tallon. O alegado interesse do público substituiu o conceito de interesse público. A informação pura e dura cedeu o passo. A prioridade passou a ser dada às histórias de sucesso, de preferência oriundas do jet set nacional. Ao sensacionalismo junta-se a invasão da privacidade, especialmente das pessoas que mais ignoram os seus direitos.
O que importa é uma informação que possa ser consumida de forma rápida e simples, com grandes e belas imagens, que não incomode, não questione, nem faça pensar, e se possível que tenha o seu quê de comovente ou faça sorrir.
VI
Os excessos do "jornalismo justiceiro" - ou um certo tipo de Quarto Poder.
Em 1981, o Washington Post conheceu a maior vergonha da sua história. Uma jovem e brilhante jornalista, de seu nome Janet Cooke, escreveu uma série de reportagens, com o título genérico de "O mundo de Jimmy", que ganhou o prémio Pulizer de reportagem. O problema é que a história não passava de uma simples efabulação: era tudo uma invenção, uma ficção, como a autora - mais vocacionada para a literatura que para o jornalismo - acabou por reconhecer.
O Post despediu a jornalista - melhor seria chamar-lhe ficcionista - e não teve outro remédio senão pedir desculpas aos leitores e à opinião pública. Sete anos depois de ter conhecido a merecida fama mundial, devido ao exemplar "caso Watergate", o Post cobria-se de ridículo e corava de vergonha. O Provedor dos Leitores do diário norte-americano analisou exaustivamente o episódio. Uma das conclusões a que chegou vem registada na espantosa autobiografia de Katharine Graham, a célebre proprietária do jornal. "Os jovens jornalistas - sentenciou o Provedor - queriam encontrar um Watergate debaixo de cada pedra."
Esta modalidade de jornalismo "arqueológico" ou "detectivesco" chegou até nós e está muito em voga. Ela é praticada por muitos jovens, mas também por alguns de cabelos brancos. O mimetismo chegou a um ponto tal que um caso de polícia ocorrido há uns anos no Porto logo foi apelidado de "Sãobentogate"... A inspiração não veio apenas no outro lado do Atlântico. Já nos anos noventa, sopraram, intensos, ventos de Itália, na seqüência da famosa mega-operação "Mãos Limpas", conduzida por uma brilhante e aguerrida geração de magistrados, com a cumplicidade activa dos media. Em Itália, recorde-se, o alvo era a corrupção generalizada do mundo da finança e da política, envolvendo forças aparentemente tão distintas como a Mafia siciliana, o Partido Socialista e o bloco democrata-cristão eternamente no poder.
Destas e outras influências e cruzamentos genéticos, caldeadas por uma interpretação muito portuguesa, foi nascendo um jornalismo que eu chamo de "jornalismo justiceiro". É freqüentemente um jornalismo maniqueísta, que só vê o mundo a preto e branco: os bons e os maus, os sérios e os desonestos, os íntegros e os corruptos, os puros e os impuros, os santos e os pecadores. Sendo que todos os políticos e homens públicos pertencem, até prova em contrário, à segunda categoria. Cabendo-lhes a eles o ónus da prova de que o não são. É uma forma pervertida de olhar o mundo e relatar a realidade. E que, no limite, conduz ao isolamento, ao divórcio, mesmo à hostilidade face ao mundo que nos rodeia - quando o que se espera do jornalismo é que também seja porta-voz da sociedade.
Ou muito me engano ou este tipo de jornalismo atravessa uma grave crise de credibilidade. Tudo o que é excessivo acaba por ter efeitos nefastos ou mesmo contrários ao que se pretende. A lista de vítimas deste tipo de jornalismo é longa. Por ordem alfabética, para não criar susceptibilidades a ninguém, nem provocar falsas interpretações, aqui ficam alguns nomes: António Vitorino, Armando Vara, Braga de Macedo, Carlos Melancia, Costa Freire, Duarte Lima, Jorge Seabra, José Luís Judas, Leonor Beleza, Miguel Cadilhe, Murteira Nabo, Rui Mateus, Sousa Franco, Torres Couto, Vale e Azevedo, Zé Zé Beleza...
Nalguns casos, o futuro e/ou a justiça encarregaram-se de confirmar a correcção, a justeza e o mérito do trabalho jornalístico. Noutros casos, há que reconhecer que se verificaram erros, calúnias, excessos e campanhas que só envergonham o jornalismo. Uma primeira e imediata conseqüência foi o desfazer de reputações, a destruição de carreiras políticas e profissionais. Uma segunda conseqüência, mediata, foi a perda de credibilidade de alguns jornais e jornalistas, ao mesmo tempo que se instalava na opinião pública uma sombra de dúvida e de desconfiança sobre os fundamentos, métodos e objectivos deste tipo de jornalismo. Tanto mais quanto se verificaram algumas deserções do campo jornalístico para o campo do poder político - seja partidário, seja governamental. O caso de Paulo Portas é apenas o mais conhecido - mas está muito longe de ter sido o primeiro, como não será certamente o último. Estas transferências prejudicaram seriamente a imagem de isenção e independência dos jornalistas, de seriedade e mesmo de honestidade do jornalismo.
VII
A superioridade, a sobranceria, o desprezo, a arrogância de algum jornalismo.
Nas vésperas do campeonato mundial de futebol, na Coréia e no Japão, Luís Figo assinou um interessantíssimo artigo no Público. Foi num domingo, dia 2 de junho, com chamada de primeira página. Não sei se foi o próprio número sete da selecção quem o escreveu, mas o que importa é o que lá vem. Figo reivindica a "liberdade de expressão" para "apontar abusos de quem com indiferença se assume como juiz arrogante e prepotente, em situações que desconhece ou das quais conhece apenas parte". E explicita, com inteiro acerto: "Muitos daqueles que me criticam são porventura os mesmos que lemos de manhã num jornal diário a escrever sobre agricultura, que ouvimos poucas horas mais tarde na rádio a falar de política e à noite acabam numa das televisões a comentar o actual momento da RTP", ou a perorar sobre a "guerra no Afeganistão" ou a "crise das pescas"... A que eu acrescento: quase sempre com um ar de quem tem certezas absolutas e que nunca se engana. É a mentalidade de quem se alcandorou ao Quarto poder e aí se instalou durante anos a fio. O problema é que, ao contrário dos outros três poderes, o enorme poder dos media não é alvo de uma fiscalização democrática.
Se é verdade que o poder dos media incomoda muita gente, deveria incomodar (e não sei se incomoda...), antes de mais, os próprios jornalistas. Como assinalou Jorge Wemans, ao tempo Provedor do Leitor do Diário de Notícias (in O Público em público. As colunas do Provedor do Leitor, ed. Minerva, Coimbra, 1999), o jornalista "é detentor de um poder extraordinário face aos seus concidadãos". É a consciência desse poder que nos obriga a um código deontológico, que visa regular, através de uma reflexão ética, "os conflitos gerados entre o uso desse poder e os outros direitos dos cidadãos".
Ora, todos estaremos de acordo em como a verdadeira democracia é feita de contrapoderes e controles múltiplos. Como lembra Giancarlo Bosetti, na introdução a um conhecido livro de Karl Popper, "qualquer poder incontrolado contradiz os princípios da democracia". A solução está, antes de mais, na auto-regulação, que se me afigura absolutamente indispensável. E na criação de instâncias de controle, dinamizadas de preferência por profissionais de informação, englobando as universidades, os empresários e o público.
Excelente caricatura deste tipo de jornalismo foi dada por Manuela Moura Guedes, ao confessar numa entrevista o prazer que lhe dá em "apanhá-los ao virar da esquina. Eles estão com um ar deliciado e tu, zumba!, cais-lhes em cima e mordes a canela e eles não estão preparados. Aí dá um gozo supremo".
Longe de mim defender o contrário: o jornalismo de microfone ou de megafone, reverencial, dependente, bajulador, que se limita a estender um tapete vermelho aos grandes, ricos e poderosos. É inteiramente possível rejeitar este tipo de jornalismo sem cair no inverso: o jornalismo caceteiro, inquisitorial, justiceiro, narcisista, pesporrento, que no fundo despreza os leitores e o público.
Veja-se o que aconteceu com o direito de resposta. Os abusos cometidos pelos media levaram o poder político a regulamentar, por mais que uma vez (a última das quais em 1999), este direito cada vez mais importante. Uma surpreendente lição veio de onde menos se esperaria: o diário sensacionalista 24 Horas. Na edição de 30 de julho último, este tablóide enchia a capa com o título "Baixa de Jardel sai-nos do bolso". Lá dentro, a revelação de que a baixa psiquiátrica do bota de ouro iria custar uma boa porção de milhares de contos à segurança social. A notícia, contudo, era falsa. No dia seguinte, o 24 Horas trouxe o desmentido. Alguns jornais respeitáveis teriam optado pela página do correio dos leitores, ou limitar-se-iam à coluna destinada à correcção dos erros. O tablóide lisboeta, contudo, deu um tratamento equivalente, de manchete, à rectificação: "Baixa de Jardel não nos sai do bolso". Mais ainda: o erro era assumido, na própria capa, pelo director, editor-adjunto e autor da notícia.
O tablóide mais sensacionalista da imprensa diária portuguesa, neste caso, não precisou de um Provedor dos Leitores. Não se veja neste à parte uma crítica à figura dos provedores. É uma instituição extremamente importante e útil - não apenas para defesa dos leitores, mas também para moderar o poder de jornalistas, editores e directores. Mesmo se a sua eficácia é muito relativa. Pena é que não se alarguem a outros diários, semanários e mesmo televisões.
VIII
O recurso a procedimentos e meios pouco ou nada éticos.
Um deles é o "offismo". Ou seja: a utilização freqüente, senão mesmo sistemática, de declarações anónimas. Em finais de 1995, ao fazer o balanço de um ano de actividade enquanto ombudsman da Folha de S. Paulo, Marcelo Leite verificava que, "em lugar de um procedimento excepcional, aceitável apenas sob condições muito especiais, o off tinha virado regra". Em Portugal também. Uma pessoa pega num jornal, lê uma notícia, uma peça de investigação, mesmo uma reportagem, e por vezes não encontra identificada uma única fonte. Uma única. É o reinado do off. Até as opiniões, enquadramentos e interpretações são atribuídas a fontes não identificadas. Diz o artigo 6º do Código Deontológico dos jornalistas portugueses: "O jornalista deve usar como critério fundamental a identificação da fontes". E mais à frente: "As opiniões devem ser sempre atribuídas". Sublinho o advérbio "sempre".
A não identificação das fontes não é exclusivo da Imprensa escrita. Ela já invadiu a rádio e a televisão. Na tela, ela é de tal forma chocante que acaba por ser simplesmente ridícula. Já vi vulgares reportagens de acidentes de automóveis, ou de incêndios, em que alegadas testemunhas não dão a cara nem o nome, e mesmo a voz é distorcida. Simplesmente patético. Eu pergunto: que credibilidade é que merece uma reportagem televisiva construída sem nomes, sem caras e com vozes falsas?
Outro truque freqüente é o repórter omitir a sua condição de jornalista, ou até disfarçar-se de outra profissão. E utilizar microfones direccionados e as famosas câmaras ocultas. Todos estes procedimentos são condenados pela generalidade dos códigos deontológicos. São recursos que um jornalista só pode usar em última instância, depois de esgotados todos os outros meios, e quando estiver manifestamente em causa o interesse público. Infelizmente, esquecemo-nos que a nossa profissão não nos confere apenas direitos, obriga-nos a um conjunto muito sério de deveres. Não é, pois, por acaso que o Código Deontológico é uma carta de deveres.
IX
O "vazamentismo", ou a instrumentalização dos media pelo poder.
A expressão é acolhida por Eugênio Bucci, que a foi buscar a Marcelo Leite, o muito criativo e crítico [ex-]ombudsman da Folha de S. Paulo. Ou seja: "os escândalos postos no colo da Imprensa", "vazados" directamente dos gabinetes do poder. As estatísticas confirmam que foi durante os dez anos de governo de Cavaco Silva que o jornalismo de investigação - e mormente O Independente - conheceu o seu período áureo e contabilizou maior número de "vítimas". A uns bons anos de distância, não tenho dúvidas em que uma das principais explicações reside na aliança entre alguns centros de poder e alguns jornais. Fenómenos idênticos observaram-se em muitos outros países - democráticos, claro está, que o jornalismo de investigação (como de resto o jornalismo tout court) só é possível em democracia. As motivações foram certamente várias, desde rivalidades e ódios pessoais, até mesquinhos ajustes de contas dentro de um partido com maioria absoluta, passando por uma saudável reacção a um estilo muito vincado de exercício do poder: intolerante, arrogante, pontualmente autoritário.
Certo é que aos jornais começaram a chegar dicas, denúncias, histórias, relatórios e dossiês - polémicos, quentes e explosivos. A origem era muito variada: gabinetes de ministros ou secretários de Estado, vários departamentos de inspecção, círculos da Polícia Judiciária, fontes da Procuradoria Geral da República, tribunais de várias instâncias, Presidência da República. Com o fim do cavaquismo e a eleição de Guterres, o "vazamentismo" diminuiu. Talvez porque os socialistas nunca conseguiram a maioria absoluta e imprimiram um estilo de governação diferente. Estou cheio de curiosidade para ver o que se irá passar com a actual aliança de direita. Os primeiros sintomas são interessantes...
X
Concentração da propriedade dos media.
Como escreve Eugênio Bucci, no seu livro Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, São Paulo, 2000), "a partir das megafusões, o problema da independência editorial mudou de patamar - e ser independente do dono tornou-se tão essencial quanto ser independente dos governos e dos anunciantes". A advertência do autor é feita sobre a realidade do Brasil - mas também serve para Portugal, e cada vez com mais actualidade.
O poder económico está aí, em toda a sua pujança. As excepções são raras e limitam-se a confirmar a regra da aliança e da promiscuidade entre os grandes grupos económicos e os órgãos de comunicação social. O facto até nem é novo em Portugal, uma vez que já no fim do Estado Novo quase todos os jornais estavam nas mãos da banca. O que é novo agora não é a propriedade, é a concentração dos media - não apenas dos jornais, mas também de rádios e televisões. Fernando Correia, que se tem dedicado a estudar este tema, recenseou quatro grandes grupos privados multimídia. O ex-secretário de Estado da Comunicação Social, Alberto Arons de Carvalho, já veio chamar a atenção para os riscos de um inaceitável "oligopólio" - que, no panorama televisivo, poderá ser mesmo "duopólio", com "reflexos muito negativos" quer na "diversidade" da oferta, quer "no pluralismo informativo". Arons teme mesmo que se esteja a caminho de uma "berlusconização" (Valerá a pena desmenti-los?, ed. Minerva, Coimbra, 2002).
A subordinação dos media ao poder económico e a sua concentração não promovem nem facilitam - antes pelo contrário! - a liberdade de informação. São mesmo um entrave ao desenvolvimento do jornalismo de investigação. Ainda recentemente, Emídio Rangel, em entrevista ao Diário de Notícias (de 20/9/02), afirmou: "Há situações em que os órgãos de comunicação fazem campanhas em defesa dos seus próprios accionistas. Há também casos concretos de sonegação de informação". Director que foi da TSF, da SIC e da RTP, não há dúvida que Rangel sabe do que fala... Sabe, como mais ninguém... É realmente uma ironia que esta advertência seja feita por quem chegou a avisar que seria capaz de fazer eleger um presidente da República...
XI
Déficit acentuado no funcionamento de algumas instituições.
Todos sabemos que os tribunais funcionam muito deficientemente. Até há bem pouco tempo, a investigação sobre os chamados crimes de colarinho branco não passava de uma farsa. Quem contasse com conhecimentos bem colocados e bons advogados, pagos a peso de ouro, estava safo. "Em Portugal, temos desigualdade de justiça, só temos pobres diabos presos." A frase é de Maria José Morgado, a procuradora-geral-adjunta que saiu da Polícia Judiciária a bater com a porta (Público, 29/9/02). Ou seja: "A justiça que temos é forte com os pequenos e desigual em relação à criminalidade dos poderosos". O ex-presidente do Benfica, Vale e Azevedo, acabou por ter azar: foi a primeira figura do jet set nacional a ver os seus negócios investigados a sério. Julgado, foi a condenado a quatro anos e meio de prisão efectiva. Seguiu-se a Universidade Moderna, cujas conseqüências ainda são imprevisíveis no plano político. Muito provavelmente, com as recentes demissões na PJ, tudo voltará à farsa do costume.
Ora, um grande número de casos abordados pelos jornais incidem não tanto sobre os crimes of the streets, e mais sobre os crimes of the suites. Mal investigadas pela Polícia Judiciária ou pelo Ministério Público, as denúncias feitas pelos media acabam por dar em nada. Ou melhor, acabam por voltar-se contra os media, na medida que põem em causa a sua credibilidade.
Por outro lado, há a lentidão paquidérmica dos tribunais. Em 1985 escrevi em O Jornal uma história sobre a passagem de cheques sem cobertura em quatro países, por parte de um fulano que entretanto fora nomeado administrador de uma empresa para-pública, ainda por cima com o pendências financeiras. A história parecia-me meridiana e tinha como base aquilo que eu julgava ser a melhor fonte possível: uma ficha da Interpol, com identificação completa do homem, sem esquecer a própria impressão digital. Fui processado. Estávamos na altura do "Bloco Central", a grande aliança entre PS e PSD. O homem era do PSD, "irmão" num dos mais importantes ramos da Maçonaria e foi defendido por um dos mais conhecidos e caros advogados da nossa praça. Já estão a imaginar o resultado: perdi! Na primeira instância, fui condenado pelo crime de difamação a três meses de prisão. Apesar de se ter provado que a ficha da Interpol era autêntica. O processo, digno de Kafka, subiu e acabei por ganhar na Relação e no Supremo, mas ao fim de onze anos - isto numa época em que os crimes de imprensa ainda eram considerados de apreciação prioritária... Nesse ínterim, já eu saíra de O Jornal, que por sua vez já não existia, enquanto a minha principal fonte e testemunha de defesa já tinha falecido...
Já no Expresso, acompanhei de perto uma história sobre um escandaloso perdão fiscal, determinado pelo então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Oliveira e Costa. A história foi escrita em 1990. O caso continua - e já passaram 12 anos.
Não sei quantos processos tive, mas foram mais de uma dezena (presentemente, creio que não tenho nenhum). E eu até passo por ser um jornalista rigoroso e cauteloso. A verdade é que os tribunais acabam por transformar-se numa maçada para toda a gente - menos para os advogados, os únicos que ganham verdadeiramente com isso. Ninguém gosta de ir a tribunal: não é só o jornalista, são também as testemunhas de defesa, mesmo as abonatórias, o editor (que pôs em página e titulou a notícia), o director (que até 1999 era legalmente co-responsável por tudo quanto se publicava), e a empresa (que vê um seu jornalista e o seu jornal no banco dos réus e que teme o montante de uma eventual indemnização). Depois, são as sessões adiadas. E as ausências que têm de ser justificadas. E as multas que têm de ser pagas. E os interrogatórios sobre assuntos que quase todos já esqueceram. E os recursos para a Relação. E os contra-recursos para o Supremo. O jornalista acaba por se sentir "culpado" por incomodar tanta gente, fazer perder tanto tempo, esgotar tantas energias. Tudo isto acaba por se transformar numa forma de pressão inconsciente sobre o jornalista. Mas valerá a pena? - acabará por se interrogar, quando depara com um novo caso complicado.
Veja-se o que é feito dos grandes casos da Imprensa de há dez, doze, quinze anos. Veja-se o caso Malancia. Para os mais novos e para os que têm a memória mais curta, recordo que a primeira manchete de O Independente com o fax para o governador de Macau foi em fevereiro de 1990. O caso só foi definitivamente encerrado pelo Supremo Tribunal de Justiça há exactamente duas semanas - mais de 12 anos depois!
Perante tamanha morosidade e/ou incompetência da máquina judicial, a dúvida instala-se: valerá mesmo a pena continuar a esgrimir contra moinhos de vento? Valerá mesmo a pena correr riscos?
Fico-me por aqui. Não distingui, propositadamente, os aspectos conjunturais, dos aspectos mais estruturais ou, se se preferir, das tendências mais profundas, de longo prazo. Como não me pronunciei sobre as formas de tentar alterar esta situação de estado de crise. Fica para o debate.



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