É este o título da revista francesa Valeurs Actuelles ( de direita) desta semana:
O assunto do enterro é a condenação do ex-presidente Sarkozy em pena de prisão, imediata, por receio de fuga ou perturbação da ordem pública, atenta a natureza dos factos que o tribunal correccional de primeira instância entendeu serem muito graves.
Que factos? Um "pacto corruptivo" em 2005, entre o então presidente da república, Nicolas Sarcozy e Abdallah Senoussi, chefe dos serviços secretos na Líbia de Kadhafi, no contexto da campanha eleitoral francesa para a presidência da República que iria desenvolver-se em 2007. Portanto o financiamento ilegal da campanha pela Líbia de Kadhafi. Contrapartidas seriam cumpridas após a eleição. Milhões de euros em jogo e a corrupção adveniente do uso de fundos públicos líbios para ajudar a campanha de um presidente da república francesa que prometia retribuir favores.
A sentença de 25 de Setembro tem 400 páginas e não há sinais de enriquecimento pessoal do visado, nem sequer financiamento ilegal mas "apenas" a pertença a uma "associação de malfeitores", com pena de prisão cuja moldura máxima atinge os 10 anos. Sarkozy apanhou cinco...vinte anos depois dos factos. E sem possibilidade de recorrer em liberdade, perante a declaração de perigosidade do condenado.
Esta decisão judicial suscitou esta semana toda uma discussão acesa sobre a justiça francesa, com semelhanças à de cá, portuguesa e cada vez mais confusa na aplicação do direito e na interpretação do direito e processo penais.
Vejamos:
A Valeurs Actuelles rasga as vestes com a indignação acerca de um julgamento político em que os juízes, muitos magistrados e outros intervenientes no processo, poderão ter usado um chamado julgamento moral que se sobrepõe e enterra o direito. É o professor de direito constitucional, Bertrand Mathieu, emérito da Sorbonne quem o afirma:
As considerações do professor são interessantes:
"A questão da exemplaridade é interessante. No julgamento que respeita a Sarkozy tal como no de Marine Le Pen, o carácter particularmente severo da pena, designadamente no que concerne à execução imediata de certas medidas é motivada pelo exemplo exigível aos titulares de funções públicas de primeiro plano".
"É invocado a título de circunstâncias agravantes o facto de os acusados não se terem arrependido. Contra o princípio da não incriminação que reconhece à pessoa processada o direito a não se auto-incriminar, assim o julgamento moral se sobrepõe ao direito e, à míngua de confissão, a pessoa processada deve ser condenada de modo mais severo."
"É deste modo que o juiz se torna justiceiro e por isso é que a sua imparcialidade, fundamento da legitimidade, fica em causa".
Mais importante:
"A presunção de inocência é provavelmente o princípio mais fundamental de direito penal e aplica-se a qualquer pessoa que não tenha sido condenada definitivamente. É certo que uma condenação judiciária faz desaparecer tal presunção mas o recurso repõe de alguma forma o contador a zero. Hoje, vários fenómenos tendem a enfraquecer consideravelmente este princípio. Em primeiro lugar o efeito da mediatização dos casos judiciários conduz por vezes a uma condenação pela opinião pública, antes do julgamento. Depois, o movimento de moralização e vitimização induz a busca necessária de um culpado. De maneira particularmente tópica, o movimento #MeToo contesta mesmo o princípio da presunção de inocência em nome do slogan "acreditamos em ti".
O tribunal mediático aplica muitas vezes a lei dos suspeitos e a justiça tende por vezes a incresver-se nesta lógica, por receito de afrontar a opinião pública, no menor dos casos e no pior, em nome dos seus preconceitos."
E...a machadada final:
"a justiça como instituição acha-se imbuída de uma missão moral, considera-se como encarnação do bem. Os juízes nacionais, tal como os europeus, em nome de um conceito tão generalista como o de Estado de Direito, cuja substância definem e que velam pelo seu respeito, tendem a substituir-se ao poder político". É...a "vocação justiceira que anima um certo número de juízes".
Pronto. Dito isto, há a opinião de outro lado, no caso a revista Marianne que mudou de direcção, formato e conteúdo há longos meses.
Reduziu drasticamente o número de páginas e resume os assuntos, mas não deixa de ter interesse e mostrar alguma equidistância político-ideológica. Neste caso é assim:
Perante as questões polémicas acerca da natureza da magistratura francesa indagou e publicou:
E até publica uma entrevista com um antigo juiz de instrução que se parece, nos dizeres, com o saudoso Manuel Soares que pelos vistos se dedica agora a harmonias de sopro...musical em grupo rock. Em harmónica de beiço. Sol e Dó.
Ora, será, lá como cá, que os juízes consideram os políticos exactamente como qualquer pessoa? Acredite quem quiser, mas sem ingenuidades. Mi em cima de Si sem Dó. Sustenido.
Segundo os artigos destas duas revistas, a decisão do tribunal correccional é polémica por várias razões sendo a principal a que conduziu à condenação por um crime aplicável em geral a criminosos de delito comum: a de considerar a existência de uma associação de malfeitores de que Sarcozy era o cabecilha. Ficaram de fora, por ausência de provas, o crime de financiamento ilegal de campanha eleitoral e o de corrupção passiva.
Mais, a condenação pode assentar em presunções derivadas da famosa prova indirecta, tão fluida que por vezes se torna líquida de injustiça grave. Em resumo: não há prova directa de que fossem utilizados fundos líbios na campanha de Sarkozy ou que este metesse ao bolso maquias duvidosas provenientes de "amigos" ou que participasse directamente no pedido e/ou recolha de tais fundos.
Ah! Mas é culpado de se associar a quem suspeitamente o terá feito...e tal deriva de convicção dos juízes.
Tudo visto, parece-me que esta sentença é um acto de fé. Um auto-de-fé?
Veremos, se for de se ver.
Quanto às comparações que eventualmente se poderiam fazer com alguns casos de cá, mormente o do divino marquês que continua a encantar com as suas rábulas no tribunal penal, dignas de uma comédia do absurdo, é evidente que estes juízes franceses se estivessem a julgar o dito cujo, nunca precisariam de provas indirectas ou presunções.
Bastavam-lhes as evidências dos factos já expostos...



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