segunda-feira, julho 26, 2010

"A Justiça às ordens"

A revista francesa Marianne é hoje, talvez, o modelo de jornalismo que nos falta. Sem apego a grupos partidários e principalmente de escrita sempre atenta ao poder e ao governo de momento, tem sido em França, a par do sítio Mediapart, de Edwy Plenel, o oasis onde o jornalismo verdadeiro, de investigação e princípios solidificados, tem vicejado, para bem dos leitores e da democracia que torna os cidadãos mais iguais perante as leis, direitos e deveres.
O número desta semana, saído no passado Sábado, tem um artigo de opinião de um dos seus mais prestigiados jornalistas, Guy Sitbon, um decano do jornalismo francês, já septuagenário e que escreve como muito poucos se atrevem, sobre aquele princípio da igualdade de todos perante as leis.
A capa da revista desta semana é impressionante: "querem abafar o caso" é a frase que nunca, por cá, poderíamos ler em jornais ou revistas de "referência". Falta-nos o 24 Horas, para essa tarefa...

O artigo reporta-se ao caso Woerth/ Bettencourt/ Sarkozy, por estes dias, o prato forte dos escândalos franceses ligados ao poder político.
Por cá, a semelhança com o caso Freeport é mais do que muita e amanhã poderá ler-se melhor por que razão a Justiça portuguesa não consegue ir mais além do que incomodar segundas figuras do poder, deixando de fora os verdadeiros autores morais e por vezes materiais, das malfeitorias da corrupção ambiente.
Em Portugal, por causa do caso Freeport e outros, o primeiro-ministro e um grupo de apaniguados tentou tomar conta de certos órgãos de informação que não lhe agradavam. Tal foi apurado em sede de comissão parlamentar, mas não há suficientes Guy Stibons em Portugal para ajudar a correr do poder com salafrários dessa espécie.
O jornalismo de investigação em Portugal estiolou completamente porque a crise tomou conta das redacções e o poder é implacável com aqueles que denunciam as suas malfeitorias.
Essa, porventura, será uma das maiores facetas da nossa crise. De valores e princípios por causa da necessidade de trabalhar e manter famílias e vida normal. E o poder sabe isso como ninguém. A única esperança que existe é a perspectiva de alternância de poder. Por algum tempo, haverá esperança em poder fazer justiça a quem nos aldrabou durante anos a fio. Mas será por pouco tempo e mesmo assim incerto. A nossa Justiça de topo, nestes casos mais flagrantes, falhou. Por motivos vários, nem todos eles imputáveis a quem nela trabalha, mas falhou. Amanhã se comprovará tal coisa, como já se comprovou no caso Face Oculta que representa nesse nível de topo, o maior escândalo judiciário de que há memória desde o 25 de Abril. Aparentemente sem consequências, porque poucos o denunciam como tal e com a característica do artigo de Sitbon, de "justiça às ordens".

Aqui fica a crónica de Sitbon.

Vale a pena traduzir o artigo intitulado A Justiça às ordens ( ressalvando as falhas que possam aparecer aqui ou ali):

A mulher do ministro dos impostos encarregou-se dos interesses privados da contribuinte mais afortunada. Talvez nada de ilegal.Ou então qualquer coisa de muito grave. Nada sabemos. Compete à justiça dizê-lo. E tudo indica que não o dirá.

Vários testemunhos dão a conhecer na imprensa que homens políticos, entre os quais o presidente da República, recebiam das mãos da família Bettencourt envelopes. Pura invenção, possivelmente. Mas poderia ser verdade. Não sabemos. Compete à justiça julgar. Podemos pressagiar que não julgará.
Várias personalidades públicas-pelo menos uma de esquerda-reconheceram ter ( aparentemente) contornado a lei sobre o financiamento partidário. Legalmente, pode dar-se até 7 500 € a cada partido. As formações políticas são bem conhecidas: UMP, PS, Les Verts, FN, MoDem,etc. M.Woerth, M. Sarkozy, M. Valls e outros aranjaram um esquema de associações para beneficiar de donativos idênticos aos dos grandes partidos, quando já eram membros de uma dessas grandes formações. Por conseguinte, os socialistas, por exemplo, podem receber de um simpatizante não apenas 7 500€ mas 1000 vezes mais. Bastaria que criassem 1000 monopartidos no seio da organização. Estas práticas serão conformes à letra e espírito da lei ou serão qualificáveis por um gribunal como "financiamento ilegal"? Compete ao juiz pronunciar-se. Não duvidemos, não se pronunciará.

Ministro do Orçamento nesse tempo, M. Woerth é suspeito de ter pedido ao representante de Mme Bettencourt o recrutamento da sua mulher. Se tal for verdade,estaríamos perante um caso de conflito de interesses ou pior, de tráfico de influência. Cada um admite que a natureza do assunto continua nebulosa. É de senso comum que estas incertezas carecem de ser determinadas por um juiz independente. Podemos augurar, sem riscos: o tribunal não se pronunciará.
De uma ponta à outra deste escândalo tentacular, o governo teve apenas uma preocupação: confiar a investigação a funcionários às suas ordens. Em qualquer democracia, o caso teria sido atribuido a um magistrado independente. Aqui, mesmo que a integridade dos grandes que nos governam esteja na berlinda, os inquéritos são conduzidos sob a intendência das personalidades suspeitas.

A visão do governo, que dirige a investigação com diligências contra o mesmo, não deixa lugar a questionamento. O secretário geral do Eliseu disse-o: Eric Woerth nada tem a explicar. Se não tomou todas as precauções foi porque nem lhe passou pela cabeça a ideia de um delito. Toda esta embrulhada é uma amalgama e uma caça ao homem e nenhum delito pode ser imputado a M. Woerth. Pela boca de Claude Guéant, o presidente dá as suas ordens. Resta arquivar o assunto. Talvez seja possível perseguir este ou aquele personagem secundário mas para o essencial o caso caminha em grandes passadas para um abafamento puro e simples. Algum vozeirão da oposição surgirá, um punhado de jornalistas fará perguntas, o poder fechará a concha. Passem uma esponja, o assunto está enterrado. Bem feito?
Nem tanto assim. Não se viu que vários membros do governo, como a ministra da Justiça Michèle Alliot-Marie, ou o ministro dos negócios estrangeiros, Bernard Kouchner, permaneceram silenciosos enquanto o colega Woerth subia o seu calvário? Os acontecimentos passam, o inconsciente colectivo permanece. Se o escândalo for escamoteado nas próximas semanas, como tudo augura, ficará nos espíritos a dúvida contra o presidente de que o seu reinado foi o da justiça serviçal.

2 comentários:

aristófanes disse...

Porque será que, seja ele que regime for, o único acto que nos resta é a revolução? Será que não saberemos "evoluir" sem sobressaltos? sem roturas?

Karocha disse...

Ontem o Maltês na sicn, deu a entender que algo se vai passar!
Agora o quê, não sei...