domingo, maio 17, 2009

A culpa segundo A. Barreto

...é dos outros. Será?

"A CULPA é um fenómeno errático e fugidio. A sua trajectória é circular. Juiz, procurador, oficial de justiça, advogado, solicitador, polícia, ministro e deputado: cada um tem a certeza do seu comportamento exemplar e não hesita em culpar o vizinho ou todos eles. Para o juiz, a culpa do estado em que se encontra a justiça portuguesa é, sem dúvida, dos agentes do ministério público, dos advogados e dos políticos incompetentes. Já o procurador se queixa do governo, da falta de meios que este lhe concede, dos deputados que fazem más leis, dos juízes que se julgam infalíveis, dos advogados que não cessam de criar problemas e das polícias que estão às ordens do governo. Os advogados não têm dúvidas e apontam o dedo aos deputados, aos magistrados e aos procuradores, sem esquecer as polícias. O ministro, por sua vez, invoca a independência dos juízes para justificar o seu absentismo, ao mesmo tempo que se queixa das polícias, dos advogados e da verdadeira máquina de poder que é a Procuradoria-Geral. Os polícias consideram os juízes brandos, os deputados inúteis, o governo oportunista e os advogados obstáculos à justiça. Em comum, os corpos judiciais e outros “operadores” condenam os cidadãos impacientes, os comentadores e os jornalistas. Também em comum, o seu desinteresse pela causa pública e pela reforma deste estado de coisas."

António Barreto, sociólogo que escreve em jornais, tem dedicado vários dos seus artigos e declarações públicas à “Justiça”. Numa entrevista recente à TVI voltou ao tema e destacou a sua opinião que não deveriam existir sindicatos na magistratura. Razão ? O poder que os magistrados têm é demasiado grande para tal benesse. Passo esta opinião que ficará para mais tarde recordar.

No artigo de hoje no Púbico, transcrito aqui, A. Barreto volta ao tema para fazer um requisitório contra os fautores da desgraça na Justiça. Como está escrito escuso de transcrever integralmente, mas comento.

Segundo tudo indica, A. Barreto não percebe o funcionamento, a filosofia, a estrutura do sistema de Justiça que temos.

Portanto, seguindo esse palpite, parece-me que A. Barreto deveria abster-se de análises perfunctórias ( et pour cause) de jornal sobre o fenómeno que não conhece inteiramente, mas apenas superficialmente e lateralmente como qualquer vulgar cidadão. Comentar assim em modo lato todo um fenómeno do qual se conhecem apenas certas consequências, releva da filosfia de taxista que desanca em tudo o que mexe com a sua condução.

Estas análises contribuem para uma entropia indesejável e retiram credibilidade ao autor que se apresenta como sociólogo.

E é aqui que pretendo comentar. O que deve ser um sociólogo destes fenómenos na sociedade portuguesa?

Um estudioso, um conhecedor empenhado em compreender e julgar segundo uma bitola alargada de razões e conhecimentos de factos, circunstâncias, princípios, programas, políticas, projectos, leis, constituição, em resumo, do sistema jurídico português.

Há estudiosos que já o fizeram e indicaram as traves mestras da nossa construção jurídica. O nosso sistema é de raiz continental. Não absorveu ideias inglesas ou anglo-saxónicas, senão em muito poucas soluções práticas. Teoricamente, pouco ou nada lhe deve.

A.Barreto deve começar por aí, para perceber o que é o sistema.

No seu requisitório alarga a culpa aos operadores do sistema, incluindo advogados, magistrados funcionários polícias e políticos.

Escapa-lhe todavia, uma classe inteira por motivos que se apresentam freudianamente óbvios:

Os pais do sistema. Os sociólogos, precisamente. Os professores de cátedra jurídica, concretamente. Os dirigentes de institutos de ciências humanas, genericamente. Os teóricos do Direito, completamente.

As leis que temos nascem de ideias vindas de lados diversos. São essas ideias que os sociólogos estudam e analisam que fomentam as soluções codificadas para os problemas sociais.

As leis penais que temos nasceram de ideias vindas dos anos sessenta, da sociologia e criminologia alemãs, principalmente. Está tudo muito bem explicado nas introduções e estudos preparatórios dos códigos que temos.

O Código Penal que vigora, com as suas penas comparativamente brandas e a formulação teórica de relevo “marcadamente humanista e em muitos aspectos profundamente inovadora” ( Introdução ao Código Penal de 1982) , foi beber ao teórico de Direito, sociólogo criminalista Hans Heinrich Jesheck, a Roxin, Welzel e outros e foi estruturada pelos portugueses Eduardo Correia ( foi ministro da Justiça da Democracia) e ainda Jorge de Figueiredo Dias, presidente das comissões que reformularam essas leis penais, com destaque para o Código de Processo Penal. Os portugueses contibuiram para adocicar as penas aos brandos costumes que tínhamos, divergindo da severidade daqueles países de raiz protestante.

Pode sempre dizer-se que eles são apenas as primeiras figuras neste assunto e será verdade. Mas são as figuras fundamentais da filosofia das leis que temos. Uma filosofia marcadamente humanista, de pendor sociológico em que a função ético-social do direito penal assume um relevo fulcral.


Se há problemas de funcionamento da Justiça em modos alarmantes, devemos questionar esses modelos de referência filosófica e sociológica, antes do mais, para percebermos a origem do problema.

António Barreto esquece isto e alija a culpa para os outros que elenca, todos eles práticos e fieis executantes das doutrinas sociológicas do Direito.

Ora, no Direito Penal que temos, a ideia basilar é a da culpa. “Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.”, escreve-se na Parte Geral do Código Penal de 1982.

Portanto, para se dilucidar a culpa concreta neste estado de coisas a que chegamos, coloquemos os sociólogos, particularmente os da corrente “humanista” que se formou nos ano sessenta, precisamente a de António Barreto, no centro deste problema e erijamo-los em bodes expiatórios de preferência e relevância de primeira linha.

Porque efectivamente o devem ser. A culpa, então, deixará de ser dos outros.

Questuber! Mais um escândalo!