sexta-feira, fevereiro 04, 2011

Costa Andrade- mais uma lição, de luva branca

O professor de Coimbra, Manuel da Costa Andrade, desenvolveu a matéria dos dois artigos que escreveu no Público, sobre as escutas do processo Face Oculta em que interveio o primeiro-ministro, numa revista jurídica publicada no mês passado- a Revista de Legislação e Jurisprudência.
Segundo o Sol, no artigo, Costa Andrade não as poupa, ao presidente do STJ, nem ao PGR: «A lei prescreve precisamente o contrário do que foi sustentado pelas instâncias supremas do nosso sistema judiciário. As escutas, essas eram irredutivelmente válidas, não assistindo, em qualquer caso, ao presidente do STJ (menos ainda ao PGR) competência para o questionar. Menos ainda para ordenar a sua destruição».

A TVI, em notícia assinada por Carlos Enes, vai mais longe um pouco e confronta Noronha Nascimento com o artigo, particularmente num aspecto deveras delicado: o da sua isenção e imparcialidade, amplamante glosado por Costa Andrade no artigo em questão, citando um autor- Luhmann- e um conceito- sistemas de contacto-um eufemismo académico para explicar a promiscuidade de interesses pessoais entre titulares de cargos públicos. Assim:

LUHMANN faz intervir o conceito e a teoria dos “sistemas de contacto”. Que emergem e se instalam em relação aos diferentes sistemas (judicial, administrativo, político, económico, desportivo, etc) que têm de tomar decisões, no termo de um processo que, por suposição normativa, tem de ser organizado e conduzido segundo as exigências de diferenciação e autonomia face aos sistemas-ambiente.
Por exemplo, do juiz em relação às partes e nomeadamente aos advogados; da administração pública em relação aos interessados nas suas decisões como, por exemplo, os oponentes num concurso; dos governantes face aos agentes económicos, aos grupos de interesses, associações, organizações sociais, lobies, etc.
Há sistema de contacto quando agentes dos diferentes sistemas (vg., juiz/advogado, Ministro/empresário), esbatendo ou mesmo neutralizando as fronteiras da diferenciação e autonomia, criam entre si teias de amizade, compromisso ou confiança de que emergem expectativas comuns a suportar critérios generalizados para a solução dos “casos” que venham no futuro a colocá-los frente a frente.

No artigo, Costa Andrade, conclui deste modo o assunto, verdadeira vexata quaestio dos tempos que correm na PGR e no gabinete do presidente do STJ e que estes deveriam explicar ao povo em nome do qual devem aplicar a justiça:

Fechando o percurso e o discurso, temos assim que, por sobre não sugerir a interpretação que o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e a Procuradoria-Geral da República subscreveram, a lei corta cerce todas as vias que a ela possam levar.
De forma apodíctica e sincopada, a lei prescreve precisamente o contrário do que foi sustentado pelas instâncias supremas do nosso sistema judiciário. a
) As escutas, essas eram irredutivelmente válidas, não assistindo, em qualquer caso, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (menos ainda ao Procurador Geral da República) competência para o questionar. Menos ainda para ordenar a sua destruição.
b) Quanto aos conhecimentos fortuitos, atinentes ao primeiro Ministro, não faz qualquer sentido questionar a sua validade nem a sua equacionação à luz do regime das intromissão hipotética sucedânea. Em relação a eles sobrava, unívoca e única, a via da submissão à fórmula da hypothetische Ersatzeingriff.
E sindicar, a esta luz, da admissibilidade/inadmissibilidade da sua utilização probatória. Tratando o caso como aquilo que ele paradigmaticamente é: um caso e um problema de proibição de valoração.
Precisamente como o faria o comum juiz de instrução em relação a um comum cidadão.

Este é, em nosso entendimento, o caminho que a lei positiva e vigente impõe. Não custa conceder que, se ele tivesse sido trilhado, bem poderia acontecer que o resultado final acabasse por ser o mesmo.
Isto é, se concluisse pela insubsistência de indícios de crime do catálogo imputável ao Primeiro Ministro.
Se assim se tivesse procedido, ter-se-ia escrito direito por caminhos direitos. Mas em Direito, e particularmente em Direito Processual Penal, o respeito pelos caminhos da lei representa, só por si, um dos valores supremos da ordenação da vida, da sociedade e do Estado. Logo porquanto aqueles caminhos constituem, em si mesmos, instituições irrenunciáveis do Estado de Direito. A sua defesa e a sua afirmação confundem-se com a afirmação e a defesa da dignidade, da liberdade e da igualdade.

No meio do artigo há noções com as quais não concordo: por exemplo, Costa Andrade entende que as escutas só valem para os processos criminais. Para o resto, mormente para avaliação política de condutas público-privadas de governantes, em sede de audição parlamentar em comissões de inquérito, Costa Andrade acha que valem nada e nada poderão significar.
Sobre esta matéria ocorre-me perguntar ao ilustre professor o seguinte: se numa escuta efectuada e válida, num processo penal, vier a descobrir-se que determinada mulher de um indivíduo o engana e este toma conhecimento "fortuito" do caso, por vias travessas, o que deverá fazer?
Ignorar a validade da escuta, por não ser válida a não ser em processo-crime? Fazer de conta que o que soube através da escuta inválida também não deve ser valorado pessoalmente?

A ironia de Costa Andrade, por vezes de finura rendilhada, assoma em algumas passagens. Por exemplo nesta, deliciosa e verdadeira chapada de luva branca na lógica jurídica daqueles dois superiores magistrados:

"Só por absurdo se poderia esperar da lei que ela dispensasse aos políticos o privilégio da nulidade das escutas em que ocorrem os conhecimentos fortuitos … só porque na origem, as escutas não foram autorizadas pelo Presidente do STJ. Para tanto seria necessário que a lei partisse da suposição de que os juízes de instrução são adivinhos ou bruxos, dotados, como os augures, do poder mágico de antecipar o futuro a partir do desenho feito pelo voo das aves sobre as entranhas expostas das vítimas sacrificiais."

Ahahahahaha!

3 comentários:

joserui disse...

A questão da avaliação política, na minha opinião, é apenas para retirar esse detalhe do caminho e o artigo não poder ser desvalorizado por aí. O essencial está dito.
A última faz-me lembrar "O Adivinho" (a aventura de Astérix...). Já na época se embrulhava o peixe em papel de jornal para os adivinhos lerem nas entranhas.
Às tantas os ditos senhores receberam alguma caixa de robalos embrulhados desse modo... e puseram-se a adivinhar. -- JRF

Floribundus disse...

dificilmente este país voltará a ter outro noronha. às vezes ficou com a sensação de ter sido deportado para o zimbabué ou para a papua.
felizmente para noronha não tem peso suficiente para ser enforcado

Karocha disse...

Grande post José, como sempre.
A reportagem do Carlos Enes muito boa também!

O Público activista e relapso