O Público de Domingo passado publicou em três páginas um texto de Pacheco Pereira, de recensão crítica a um livro de um historiador do regime actual, Fernando Rosas. O livro, intitulado "Salazar e o poder. A arte de saber durar", é obsceno. Por um motivo: falsifica a realidade do Estado Novo para ganhar uns cobres e fazer propaganda política habitual e esquerdista. Rosas, sobrinho de um governante de Salazar, anda nisto há anos. Em vez de distância e recuo temos imersão na crítica sistemática e esquerdista às opções salazaristas, sem um momento de tentativa de compreensão e contexto. A realidade que espelha é por isso a de uma virtual falsificação como a adveniente dos espelhos convexos.
Pacheco Pereira acha que o livro "vai marcar por muitos anos a historiografia do Estado Novo e a historiografia de Salazar". Não admira porque o que Pacheco Pereira escreve para testemunhar a sua experiência de Estado Novo é semelhante à que um preso político faria para descrever o ambiente social do seu bairro enquanto esteve preso...
Esta página relata um caso pessoal vivido pelo próprio Pacheco Pereira, demonstrativo do que o mesmo entende pelo "medo" que a PIDE infundia no "ar que se respirava" e que os mais novos não entende por não terem respirado tal ambiente. Pacheco Pereira, esse, respirou como bem se lembra ao contar o episódio de "uma daquelas discussões habituais entre o motorista e o passageiro, ou porque parou à frente ou porque parou atrás...neste caso, a maioria das pessoas estava a favor do motorista ( num autocarro cheio, o perspicaz Pacheco percebeu logo tudo-nota minha). A dada altura, o passageiro saca do cartão da PIDE, manda parar o autocarro e prende o motorista. O mais impressionante é que, de toda a gente que estava a protestar contra o homem, ninguém falou-ninguém falou." Ou seja, toda a gente protestava mas ninguém falou. Devem ter protestado como dantes se fazia no final dos fados de Coimbra- com tossicadas. Pobre Pacheco que nem percebeu que o cartão era da DGS...porque a PIDE deixara de existir em nome, quando Caetano assumiu o poder. Porém, a força do reflexo condicionado levou Pacheco a ver PIDE onde nem viu cartão algum...
Este episódio que Pacheco usou para provar a sua tese- de que o ar que se respirava era irrespirável pelo medo difuso- é exemplar da cretinice desta gente em tentar explicar aos mais novos o que só se explica com exemplos de contexto ou casos morais ou mesmo números, factos e fotos de época, e ainda assim sem grande objectividade.
Porém, o que lhes interessa, ao Pacheco como ao Rosas, do mesmo clube da poesia revolucionária morta, é mostrar como o "fassismo" era pior que as cobras de água- que não fazem mal algum.
Por isso mesmo, obriguei-me a rebuscar alguns jornais do tempo e para mostrar que Pacheco dá sequência a estas abordagens cretinas e revisionistas, ficam algumas notícias que só por si dão uma imagem do tempo muito mais aproximada da realidade do que os discursos da memória reprimida dos pachecos.
Como se pode ler, Pacheco e Rosas acham que havia por cá uma "política do espírito" e "propaganda" como na União Soviética, "utilizando também mecanismos como cartazes, teatro de massas para os analfabetos" ( devem querer referir o teatro de revista, popular... coisa indigna para intelectuais tão aprimorados), como "grandes percursores do marketing e da publicidade colectiva contemporânea". Que coisa mais cretina! Que coisa mais infrene!
Antes tinha referido a Censura, em termos equívocos e que destroem por si mesmos o que pretende dizer. Tanto admite a suavização da censura política, por efeito deletério sobre os jornalistas como aproveita para encarecer o papel da tesoura censória em casos que noticiados pusessem em causa a" falta de respeito à autoridade".
Exemplifica os casos singulares de censura, apontando "questões de costume" como "casos de pedofilia" que no entender de Pacheco eram "particularmente comuns", embora não tivessem lá a palavra pedofilia...esclarece o preclaro Pacheco. Refere também os casos de "assassinatos, os crimes violentos" como sendo "tudo aquilo que a censura cortava".
Mais uma vez, não desfazendo o papel vigilante da Censura de Salazar e Exame Prévio, do tempo de Caetano, deve dizer-se que afinal não seriam todos os casos censurados porque os que chegaram aos jornais da época, das duas uma: ou passaram despercebidos aos censores, apesar de letras garrafais ou então, Rosas & Pacheco são uns meros alfaiates da memória colectiva, apostados em vender azeite fora da tabela. Não é o ofício deles...
Assim, a Capital de 31 de Dezembro de 1972 relatava com objectividade a condenação, em tribunal militar, de um sargento por dois crimes de atentado ao pudor cometido nas pessoas de duas menores ( pedofilia, de acordo com o entendimento hodierno).
Sobre menores e violência induzida, esta notícia do Diário Popular de 22 de Outubro de 1971 não teria lugar publicado no tempo que Rosas & Pacheco relatam.
Por outro lado, esta notícia deveria servir precisamente para os Rosas & Pachecos estudarem e lembrarem que a noção que dantes existia sobre os menores ( aqui três crianças de três, quatro e cinco anos, queimadas por negligência paternal) era diferente da actual. Uma notícia destas, hoje em dia, seria abertura de telejornal, mas com comentários à mistura dos ideólogos tipo Rosas, e sociólogos formados no ISCTE sobre os direitos das crianças. A culpa desse tempo e das tragédias desse tipo, obviamente, para os Rosas & Pachecos, seria do "fachismo".
Porém o que melhor pode concentrar a atenção de quem quiser estudar o regime e o modo como reagia à "subversão" comunista será ler os relatos dos julgamentos no tribunal Plenário, coisa que nunca acontece, porque o que os Rosas & Pachecos contam sobre isso é a sinopse do habitual filme de terror em que o Plenário é apresentado um pouco como o reino do arbítrio e da ilegalidade.
A Capital de 1 de Fevereiro de 1972 apresenta o caso singular do julgamento de alguns indivíduos por factos relativos a "actividades subversivas contra a segurança do Estado". É ler...o que os Rosas & Pachecos nunca contam.
E em 19 de Outubro de 1971 o Diário Popular relatava outro caso no Plenário, em que se dá conta da distribuição de panfletos "subversivos", coisa que Pacheco também terá experimentado ( mas nunca inalou, que se saiba).
Para entende melhor o ambiente de época e o sufoco do ar respirado pelos Rosas & Pachecos deve ler-se esta crónica de...Eusébio, na Capital de 1 de Fevereiro de 1972. Por aí se pode ler como o "fachismo" era tão terrível que até os jogadores da selecção eram confinados e sequestrados em quartos de hotel, sem poderem sair para se divertirem...
De resto para se entender melhor como era essa coisa da Censura que tirava o ar de respirar a Rosas & Pacheco também seja útil ler as considerações jurídicas de Manuel Lopes Rocha ( é ver ao Google onde esteve e com quem...) sobre as leis de imprensa da época, 7 de Junho de 1972.
Finalmente, quanto à pergunta- porque é que o Estado Novo durou tanto?- as respostas são diversas. Uma delas poderá mesmo ter a ver com a razão explicativa de alguns indivíduos andarem sempre a escrever sobre o assunto, sem lhe apanharem a essência. O tempo em que viveram no Estado Novo andaram distraídos ou ocupados em "actividades subversivas", o que lhes tolda agora, irremediavelmente, a objectividade e lucidez, passando o tempo todo, agora, a rememorar experiências desagradáveis e pessoais. E a nós, isso interessa?