A entrevista é de Jardim Gonçalves e com excertos como estes que mostram uma identidade diferente do nosso país e que desapareceu completamente destes media que herdamos daqueloutros que surgiram há trinta anos. Como curiosidade aparece o nome do famigerado "tenente Rosário Dias", o aparatchick de Vasco Gonçalves relatado no livro O ataque aos milionários e que andava sempre de pasta com um pistolão lá dentro, para o que desse e viesse:
Porque escolheu o general Eanes para prefaciar o livro?
Conheci-o
na sua primeira visita de Estado como Presidente da República, que foi a
Espanha, mas que podia ter sido às ex-colónias independentes, mas não
foi. O chefe de gabinete, o Granadeiro [Henrique], preparou-lhe uma
lista com nomes de bons profissionais que tinham saído do país. Eu
estava, então, em Espanha, para onde fui a seguir ao 25 de Abril.
Não ficou em Portugal porquê?
Tive
vários convites de empresas para trabalhar, mas não havia liberdade de
admitir quadros pois todas as comissões de trabalhadores vetavam o meu
nome por, embora não sendo capitalista, ser “o lacaio do capitalismo”.
Eu tinha então cinco filhos e não tinha emprego e fui pedir ao tenente
Rosário Dias, que era comunista e assessor do general Vasco Gonçalves, e
que trabalhava à frente da minha casa, na Rua da Imprensa, para sair do
país.
(...)
A sua vida dava um filme?
Todas as vidas davam um
filme. Mas sim... eu vivi um século inteiro e o início de outro. Pouco
depois de ter nascido, em 1935, aos 7 e aos 8 anos, tomei consciência do
que foi a crise dos anos 30. O meu pai teve dificuldades económicas,
pois era um grande empresário e um grande comerciante e deixou de o ser.
A minha mãe, que tinha fechado o colégio por o meu pai ter uma boa
situação económica, reabre-o para viver. E lembro-me de conversas sobre a
I Grande Guerra e vivo em pleno a II Grande Guerra e depois há a guerra
colonial. Tive uma vida académica muito agradável. Li muito.
O que lia?
Li
de tudo. Aos 17 anos adoeci e fui para o Norte da Madeira, onde vivia o
senhor Carlos Santos, casado com uma senhora muito rica, para a escala
da Madeira, e que tinha uma excelente biblioteca. Li muito o Camus
[Albert]. E tenho voltado sempre a Camus.
Porquê o Camus?
Camus
viveu na Argélia, na altura uma colónia francesa, e viveu os problemas
da autodeterminação que eu também vivi. E, mais recentemente, todo o
clima de tribunal, por que tenho passado nos últimos anos. E no livro O Estrangeiro [passado
na Argélia] ele [o narrador Meursault comete um assassinato e é
julgado] dá o tiro e vê a faca a brilhar com o sol, mas está cansado,
pois foi ao enterro da mãe e encontra justificação para o que fez. Por
isso, retratou bem a dificuldade de transferir para um quadro de
tribunal o ambiente que se vive quando se efectivam as acções e que o
tribunal lê com um espírito diferente daquele que presidiu aos
acontecimentos.
(...)
E teve uma conversa com o Presidente Craveiro Lopes...
...
que me disse: "Não vá para civil, que há muitos, mas para minas, pois
temos de gerir bem o ultramar onde estão os recursos.”
Falaram em que contexto?
Eu
era o tesoureiro da comissão central da Queima das Fitas de Coimbra,
onde estavam os melhores alunos, e viemos convidar o Presidente... A
praxe em Coimbra era uma coisa muito bonita, vinha dos calouros até à
Sala dos Chapéus, dos doutoramentos. E quando foi do doutoramento honoris causa do
Presidente brasileiro Juscelino Kubitschek (08-08-1960) pela
Universidade de Coimbra, o Presidente da República ficou em cima do
varandim, e no outro varandim estava o bispo de Coimbra. Era a força da
academia. E era tão praxe quanto o calouro entrar de gatas no quarto do
doutor…
Hoje não o chocam as praxes?
Não sei
muito bem se é aquilo que se escreve. Mas isso não tem nada a ver com a
praxe académica. A comissão central da Queima, antes da Queima, vinha a
Lisboa convidar pelo menos quatro pessoas: o Presidente, onde íamos de
capa e batina e colarinhos engomados e dobrados, o d.r Salazar, onde
íamos de camisa branca, gravata e capa e batina, e depois o ministro da
Educação, Francisco de Paula Leite Pinto, muito contestado, e também
íamos cumprimentar sempre o senhor director do Diário de Notícias, que se chamava Augusto de Castro.
E porquê?
Por que era uma pessoa muito importante no país. Que jornais havia: O Século, que tinha uma folha internacional muito boa, O Primeiro de Janeiro, que era mais aberto, O Comércio do Porto, do grupo Borges, o jornal da Igreja, o Novidades, o Diário da Manhã, o do regime, e havia os vespertinos, o [Diário de] Lisboa e o [Diário] Popular. E o DN, que era muito importante por não dar notícias, mas o que lá vinha escrito estava consagrado.
Mas se não dava notícias...
... as pessoas sabiam que aquilo que lá vinha estava certo, normalmente era com uma diferença de 24 horas.
Era um jornal oficial?
Não, não. Era da confiança do regime. Mas todos estavam submetidos à censura.
O encontro com o Salazar marcou-o?
Ele
cumprimentou-nos um a um e quando chegou a mim disse: “Então os
senhores vão contratar uma orquestra do estrangeiro? No meu tempo a
Queima das Fitas era uns tambores, umas gaitas-de-foles… Os senhores não
deixem a Academia de Coimbra ficar mal. As contas têm de ficar certas."
A conversa foi praticamente comigo, que era o tesoureiro.
Ele estava preocupado era com as contas?
Sim.
Porque realmente foi um atrevimento nosso querer fazer uma Queima à
grande. E fizemos. E, por isso, é que nesse ano apareceu um relatório
das contas da comissão que nunca se tinha feito.
Por sugestão de Salazar?
Foi
resposta minha à intervenção do dr. Salazar. Eu disse ao Nuno Pimenta,
presidente da Queima: “Ele pode não ler, mas vai receber o relatório.”
Houve lucro e criámos cinco bolsas.
Apesar de terem contratado uma orquestra estrangeira?
Que
estava a actuar muito bem. Na véspera tínhamos estado no cabaret
Maxime, na Praça das Flores, onde a orquestra actuava, e
aproveitámos bem a noite.
Qual era a sua relação com o regime?
Era a relação que o povo português tinha. Havia lucidez.
Nunca pôs em questão o regime?
É
preciso ver que eu fui estudante de 1954 a 1959. E o que é que deu
oportunidade a que nos pudéssemos manifestar? A candidatura do Humberto
Delgado. E aí tomámos posição. Mas nem era bem contra o regime, era para
uma alteração do regime. Por que o general era um senhor que tinha
crescido e desenvolvido a sua carreira no regime, era da alta confiança,
e que depois teve aquela saída no Rossio: “O que se faz ao dr. Salazar?
Demito-o.” E houve ainda a atitude de apoio ao bispo do Porto, D.
António Ferreira Gomes, que saiu do país com o propósito de não votar.
Ora, nós pertencíamos ao grupo deste bispo. O dr. Salazar enviou-lhe
então uma mensagem para regressar a Portugal e votar, a que ele
respondeu: “Recebe-me?” O Salazar disse que sim. Mas o D. António
Ferreira Gomes, sabendo como ele era, escreveu-lhe a informar que
estaria em Portugal num determinado dia e explicou-lhe o que lhe ia
dizer: defender a autodeterminação das colónias e a questão da mudança
do regime. Não houve encontro.
O bispo personificava uma voz contra ao regime?
E
diferente da hierarquia da Igreja, em que a maior parte das pessoas
ainda vivia na memória de que depois dos republicanos tinha vindo o dr.
Salazar e devolvido à Igreja um certo estatuto e a possibilidade de
haver seminários. De tal modo que, quando o seminário dos Olivais abriu,
o Cerejeira foi buscar sacerdotes holandeses para professores por não
haver em Portugal. O Estado Novo devolveu uma certa dignidade à Igreja.
Houve uma evolução que o D. António quebrou e que era preciso ir mais
longe.
(...)
O jornal on line não publica mais nada da entrevista, mas vale a pena ler o resto, para se perceber o que andou a fazer o senhor Ricardo do BES e porque é que Roma não devia pagar a traidores, além do mais, e porque é que nem tudo se paga neste mundo.