sexta-feira, dezembro 21, 2018

Lucília Gago já perdeu o pé?

Luís Rosa do Observador conta a história da escolha do magistrado Amadeu Guerra, director do DCIAP para a PGD de Lisboa.

Parece bem informado e tal história deixa entrever algo inesperado: uma notória dificuldade no relacionamento institucional entre a novel PGR e o CSMP. Prova ainda uma coisa simples: quem manda no MºPº , naquilo que é essencial é o CSMP. A PGR tem um papel institucional importante, de representação a apoio aos magistrados, particularmente no que concerne à jóia da coroa, ou o sector mais sensívle do MºPº, o DCIAP. Lucília Gago parece ter quebrado tal elo, inexplicavelmente.

Este episódio poderia não ter gravidade ( até Souto Moura perdeu no CSMP uma iniciativa deste género quando foi escolhido como PGD do Porto o magistrados Pinto Nogueira que Souto Moura assumidamente não escolheu mas acolheu na cerimónia pública de tomada de posse.) mas denota algo mais preocupante: o relacionamento inter-institucional derivado da idiossincrasia pessoal.

Neste contexto, a declaração corajosa de Lucília Gago, acerca da eventual demissão, caso o projecto do PSD tomasse forma de lei, vem aumentar a perplexidade acerca do feitio e modo de actuar da PGR. 

Veremos o que virá a seguir e será o mais importante: o nome escolhido para dirigir o DCIAP, pelo menos com a competência e categora que Amadeu Guerra tinha. Não sendo perfeito teve um papel meritório nessa função. Tudo melhorou substancialmente a partir da saída de Cândida de Almeida, de um tempo em que o MºPº não tinha grandes chatices com os poderes de facto da corrupção em Portugal. Era ela, aliás quem  dizia que nem havia assim tanta corrupção entre nós. E tinha alguma razão: a maior parte da fatia desse problema grave  da democracia estava acantonada no seio dos seus amigos políticos do PS...e por isso nem dava conta. 

Esta imagem retirada da net resume o problema de Cândida de Almeida na miopia grave que a afectava: 


Veremos se Lucília Gago resiste ao mesmo síndrome, desta vez protagonizado pela mulher de Eduardo Paz Ferreira, de quem é amiga e do respectivo sistema de contactos.   A prova dos nomes está perto.

Foi o primeiro choque entre Lucília Gago e os membros do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) — e também foi a primeira derrota da procuradora-geral da República (PGR) no órgão de gestão desta magistratura. A escolha de Amadeu Guerra para liderar a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa contra a vontade de Lucília Gago acaba por ser o primeiro sinal de que algo não está bem na cúpula do Ministério Público. E logo numa semana em que a procuradora-geral fez as suas primeiras declarações públicas polémicas, ao admitir a demissão do cargo caso o PS e o PSD alterassem a composição legal do CSMP. Afinal, o que aconteceu?

Teimosia de Lucília Gago — essa é a explicação mais provável. A PGR manteve a sua posição apesar do claro desejo de saída de Amadeu Guerra do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), da sua vontade expressa em substituir Maria José Morgado à frente do MP do distrito judicial de Lisboa e das reuniões discretas para sensibilizar a procuradora-geral a acolher o nome de Amadeu Guerra. No final do processo, a líder do MP ainda sentiu necessidade de fazer uma declaração de voto em que justificou perante o Conselho as razões que a levaram a não escolher o candidato preferido pela maioria.

A entrevista que o ainda diretor do DCIAP concedeu ao Observador em Outubro, a última até à data, serve de ponto de partida para perceber o contexto desta decisão que provocou polémica no Ministério Público (MP). Nessa entrevista, Amadeu Guerra deixou indícios claros de que o seu futuro estava em aberto. Por um lado, afirmou que o DCIAP “foi o maior desafio da minha carreira”; por outro, enfatizou que tinha sido “muito extenuante, com investigações muito complexas e com elevada exposição pública, situação que exige uma dedicação constante, muitas vezes com prejuízo pessoal e familiar para todos os magistrados do DCIAP”. Tudo para dizer que o diretor do DCIAP deveria ter “dois mandatos de três anos, não renováveis” — a cumprir um segundo mandato que terminaria em março, seria essa a situação de Amadeu Guerra. A saída, portanto, era uma opção. Contudo, Amadeu Guerra também falou com entusiasmo do futuro do DCIAP e de novos instrumentos de combate à corrupção.

Na realidade, Amadeu Guerra queria continuar no DCIAP até ao Verão de 2019 — altura em que estaria em condições de se jubilar. Porquê? O diretor do DCIAP queria sair com o processo Universo Espírito Santo — a mega-investigação ao Grupo Espírito Santo e a Ricardo Salgado — encerrado.

O objetivo poderia ser fechar o seu mandato com uma acusação histórica, como será a do Universo Espírito Santo. Foi Amadeu Guerra quem reorganizou, recrutou e reconstruiu um DCIAP afetado na sua credibilidade pelo último mandato de Cândida Almeida. Foi este DCIAP que liderou a Operação Marquês, detendo o ex-primeiro-ministro José Sócrates e acusando-o juntamente com Carlos Santos Silva, Armando Vara, Ricardo Salgado, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro, entre outros. Como foi durante o mandato de Amadeu Guerra que Ricardo Salgado foi constituído arguido na investigação do Universo Espírito Santo e em que se verificaram investigações tão importantes como o caso EDP, a Operação Fizz, Vistos Gold, caso José Veiga, caso Monte Branco, a conclusão da Operação Furacão ou a sentença do caso principal do BPN, que levou à condenação, entre outros arguidos, de Oliveira Costa, o ex-líder do banco, a uma pena de 14 anos de prisão. Ou ainda investigações recentes, como o caso de Tancos e a criação de uma equipa especial de investigação para coordenar as investigações ao Benfica, Sporting, Porto e outros clubes de futebol.

O que se passou para que estes planos fossem mudados? A questão resume-se a uma falta de empatia clara entre Lucília Gago e Amadeu Guerra. Apesar de a nova procuradora-geral ter feito questão de elogiar no seu discurso de tomada de posse o trabalho do DCIAP na Operação Marquês e demonstrar “plena confiança” em Amadeu Guerra, na realidade a relação não fluiu de acordo com esse discurso.

Amadeu Guerra tinha com Joana Marques Vidal, tal como afirmou na entrevista ao Observador, “excelentes relações e de franca cooperação”, “um grande consenso e sintonia em relação aos temas da investigação criminal” e uma “troca de pontos de vista constante”. Nem mesmo quando Marques Vidal sugeriu formalmente que Rosário Teixeira fosse afastado da liderança da Operação Marquês devido aos atrasos na conclusão da investigação, o que não foi seguido por Amadeu Guerra, a relação ficou afetada. Com Lucília Gago, a situação foi outra.

Em primeiro lugar, não havia, com a sucessora de Joana Marques Vidal, uma “troca de pontos de vista constante” entre a PGR e o diretor do DCIAP. E aqui é importante frisar que o DCIAP é um órgão da Procuradoria-Geral da República, sendo que os DIAP’s, por exemplo, são serviços do Ministério Público. Isso é importante porque o diretor do DCIAP reporta diretamente à procuradora-geral, enquanto os diretores dos DIAP’s têm uma relação funcional com os procuradores distritais.

O facto de Lucília Gago ter determinado que o seu chefe de gabinete, Sérgio Pena, fosse o interlocutor natural de Amadeu Guerra deixou o diretor do DCIAP insatisfeito: desapareceu a relação próxima com a procuradora-geral, passando a ter de dialogar com um intermediário. Por outro lado, há uma questão simbólica que pode ser vista como uma desconsideração: independentemente do valor profissional de Pena, um dos homens mais influentes do Ministério Público neste momento por via do poder que Gago lhe transmite, certo é que se trata de um procurador da República, enquanto Amadeu Guerra é procurador-geral adjunto — uma categoria acima e o topo da carreira no MP. Sendo uma magistratura hierarquizada, as categorias são matérias relevantes quando se trata de dar ou receber ordens.

Amadeu Guerra, portanto, queria sair do DCIAP. Daí ter afirmado ao Observador em outubro que o seu “futuro” seria “oportunamente analisado com a senhora procuradora-geral [Lucília Gago]”. E, de facto, foi tratado mas não da melhor forma.

No final de seis anos de trabalho intenso, o diretor do DCIAP queria sair para um cargo condigno com o seu currículo e estatuto: coordenador do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Durante os seus dois mandatos no DCIAP, Amadeu Guerra também deixou passar oportunidades como candidatar-se a juiz conselheiro do Supremo, por exemplo. Como fez Francisca Van Dunem — que foi empossada quando já era ministra da Justiça.

Na verdade, Lucília Gago queria que Amadeu Guerra continuasse como diretor do DCIAP ou, em alternativa, fosse para o STJ. O grande problema é que Gago já teria prometido o cargo de coordenador à procuradora-geral adjunta Leonor Furtado — magistrada que foi responsável pela acusação do caso Isaltino Morais no DCIAP.

Foi todo este contexto que fez com que o nome de Amadeu Guerra começasse a surgir entre a cúpula do MP como um possível sucessor de Maria José Morgado à frente da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa.

A jubilação de Maria José Morgado, uma das figuras de referência do MP, já era conhecida nos bastidores há vários meses — tal como a do seu colega Euclides Dâmaso. Sendo o processo de jubilação particularmente burocrático, só a 7 de dezembro é que ficou concluído com a publicação em Diário da República do despacho da Caixa Geral de Aposentações. Mas as movimentações para encontrar um substituto de Morgado iniciaram-se ainda antes de o Observador ter noticiado que Maria José Morgado iria jubilar-se.

Entre 10 e 15 dezembro, a procuradora-geral Lucília Gago começou a auscultar alguns dos membros do Conselho Superior do Ministério Público, dando conta que tinha chegado a uma pré-seleção de três procuradoras-gerais adjuntas, sendo que Paula Peres (inspetora do MP) lhe parecia a pessoas mais indicada para o cargo.

A reação da maioria dos membros do CSMP — quer os indicados pelo poder político, quer os magistrados do MP — não foi positiva. Mesmo assim, Lucília Gago não recuou. Apesar de ser informada pelo seu gabinete que a reação não estava a ser positiva, a procuradora-geral persistiu.

Os elementos mais experientes do CSMP ficaram incomodados por a procuradora-geral não ter em conta um facto legal: o Conselho é um órgão colegial, logo qualquer procurador-geral submete-se à votação e à deliberação da maioria dos conselheiros. A fase de contactos informais entre o gabinete da procuradora-geral e os membros do CSMP antes da escolha de alguém para um cargo relevante é uma prática corrente que visa consensualizar um nome e encontrar um equilíbrio entre o nome preferido pelo líder do Ministério Público e a sensibilidade da maioria do órgão de gestão daquela magistratura. Tal equilíbrio, contudo, foi recusado por Lucília Gago. E é aqui que surge o nome de Amadeu Guerra — que ganha automaticamente força.


Os proponentes formais de Amadeu Guerra foram nove: quatro membros indicados pela Assembleia da República e pela ministra da Justiça (Manuel de Magalhães e Silva, Alfredo Castanheira Neves, João Madeira Lopes e Augusto Arala Chaves) e cinco magistrados (Carlos Teixeira, Alexandra Neves, entre outros).

Ou seja, do lado dos ‘políticos’ estamos perante um grupo plural (PS, PSD e PCP são os partidos representados) e um membro indicado pela ministra Francisca Van Dunem (Arala Chaves). Quanto aos magistrados, que estão em maioria neste grupo, são eleitos pelos seus pares para estarem no Conselho.

Este grupo de proponentes toma a iniciativa de tomar uma última diligência antes de o substituto de Morgado ir a votos na reunião desta terça-feira, 18 de dezembro: solicitar uma audiência a Lucília Gago para fazer uma última proposta de consenso.

O escolhido para representar os proponentes de Amadeu Guerra foi o advogado Manuel Magalhães e Silva. Ex-assessor jurídico de Jorge Sampaio, ex-secretário adjunto de para a Administração e Justiça de Macau, ex-colega de escritório do primeiro-ministro António Costa e membro do CSMP eleito pela Assembleia da República por indicação do PS, Magalhães e Silva entrou na sede da Procuradoria-Geral da República, em Lisboa, ao final da tarde de sexta-feira, 14 de dezembro, com uma proposta que representava uma tentativa de chegar a um acordo com Lucília Gago.

No gabinete da procuradora-geral, virado para a rua da Escola Politécnica e com vista para a sede do PS no Largo do Rato, Magalhães e Silva propôs à procuradora-geral da República que alargasse a sua lista de três nomes e incluísse Amadeu Guerra. O experiente advogado deu à procuradora-geral da República duas informações essenciais:
Um número significativo de membros do Conselho estava disponível para apoiar o nome de Amadeu Guerra para procurador-geral distrital de Lisboa. Na realidade, tratava-se de um eufemismo para designar uma maioria clara que os proponentes já tinham como certa;
O próprio Amadeu Guerra tinha manifestado intenção de aceitar o cargo, se fosse essa a vontade do Conselho.

Os conselheiros representados por Magalhães e Silva queriam preservar a “dignidade institucional” da Procuradoria-Geral da República, diz um deles, possibilitando a Lucília Gago a hipótese de propor o nome que não era do seu agrado mas que garantia sempre que o nome aprovado pelo Conselho teria sido formalmente proposto pelo líder do MP. Precisamente para evitar a leitura que foi feita depois de se conhecer o que estava a acontecer na reunião do Conselho: Amadeu Guerra tinha sido aprovado contra a vontade da procuradora-geral.

Lucília Gago, contudo, optou pela fuga em frente e ignorou a proposta que Magalhães e Silva lhe fez. A procuradora-geral não só alegava que não tinha substituto para Amadeu Guerra, como essa sucessão deveria ser feita com cuidado.


Chegados a 18 de dezembro, a situação extremou-se. De um lado a procuradora-geral, entendendo que tem direito a escolher os procuradores-gerais distritais que são seus interlocutores diretos em cada um dos quatro distritos judiciais. Do outro lado, a maioria do CSMP, que não se revia no nome indicado pela procuradora-geral da República.

Do ponto de vista prático, não houve duas listas. Houve, sim, os nomes que foram propostos por Lucília Gago (as três procuradoras-gerais adjuntas lideradas por Paula Peres) e o nome de Amadeu Guerra, proposto pelos nove conselheiros acima referidos.

No debate que antecedeu a votação, os proponentes de Amadeu Guerra tomaram a palavra para defender a sua opção, enquanto do outro lado surgiram nomes como José António Pinto Ribeiro (ex-ministro da Cultura de José Sócrates e um crítico feroz do MP), que levantou questões de metodologia sobre a inclusão do nome de Amadeu Guerra, e Raquel de Almeida Ferreira (procuradora-distrital do Porto).

Numa reunião que foi descrita ao Observador por diversos interlocutores como “tensa” e com “um ambiente de cortar à faca” no que diz respeito a este diferendo, o nome de Amadeu Guerra acabou por ser escolhido por 12 pessoas, enquanto apenas 9 votantes escolheram Paula Peres. As duas magistradas que tinham sido igualmente propostas por Lucília obtiveram zero votos.

Durante a reunião, Maria José Morgado chegou a comentar que “não sabia que o cargo era tão concorrido” — o que fez atenuar por breves minutos a tensão claramente existente.

A procuradora-geral Lucília Gago fez questão de apresentar uma declaração de voto para explicar as razões que a tinham levado a não propor o nome de Amadeu Guerra para a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa.

Agora, tudo terá de ser feito com timings apertados:
Amadeu Guerra terá de tomar posse como procurador-geral distrital de Lisboa até ao dia 4 de janeiro, de forma a concluir o processo de movimentação dos magistrados do quadro complementar;
E Lucília Gago terá de apresentar um nome ao CSMP para a direção do DCIAP.

Não está fora de hipótese que se venha a verificar um novo confronto entre Lucília Gago e o Conselho a propósito da escolha para o DCIAP. É que, uma vez mais, os conselheiros terão de aprovar a proposta da procuradora-geral, sendo que só após duas rejeições (que equivalem a vetos) é que o CSMP é obrigado a aprovar o nome escolhido por Lucília Gago.

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