Este artigo na revista Sábado de hoje, co-assinado pelos magistrados jubilados Euclides Dâmaso e Maria José Morgado suscita-me alguns comentários que seguirão:
Em primeiro lugar devo escrever que todo o artigo me parece influenciado pelo caso Influencer. Vejamos porquê, relativamente às "propostas de afinação de percurso" do MºPº:
A primeira refere a necessidade de revitalizar a matriz investigatória do MºPº na essência da descoberta da Verdade. Verdade que é a material mas que pode bem ter as suas nuances como já referi aqui em tempos. A Verdade que resulta de um processo penal, papel onde o MºPº exerce o seu múnus mais notório, é algo por vezes esconso mas não deixa de se aparentar à Realidade, ou seja o realmente vivido por alguém ou alguns de modo que todos percebam e aceitem como tal a apresentação dos factos que assim conduzem.
E os subscritores do artigo realçam logo que deve ser essa uma das principais preocupações do MºPº enquanto titular do inquérito. Mas...será que tal se compagina com a cultura de investigação policial que logo a seguir "entregam" exclusivamente aos órgãos de polícia criminal, que não são uma magistratura e estão formatados para outro conceito de "Verdade" e de procura da mesma à charge e na maior parte dos caso sem décharge alguma? A cultura, rotina, vícios de procedimento e modo de pensamento à "charge" é um apanágio de polícia, queiramos ou não. É assim, sempre foi assim e sempre será assim e por isso é que está muito bem que seja uma magistratura com aquelas preocupações de almejar a "verdade" do real, a dirigir efectiva e eficazmente o inquérito. Na maior parte dos casos, certamente nos mais complexos isso não acontece, por motivos óbvios: falta de preparação técnica da magistratura para tal.
Se num homicídio o resultado poder ser mais consentâneo com a investigação policial, com excepções tão relevantes quanto podem ser casos como o "Maddie" com as evidentes loucuras de inventividade policiesca e desvios à procura da "verdade material" do real, assentando em palpites de verdade plausível ou querida como tal, nos económico-financeiros a investigação policial carece de um arrimo firme e seguro, com perícias à "décharge" que pura e simplesmente não existem. O que o inspector Silva de Braga descobriu no processo Marquês, só para dar este exemplo, tornou-se a verdade material. E poderia ser de outro modo...
Não me parece que o bom caminho neste caso seja o de prosseguir na senda do já percorrido, pois me parece que há que arrepiar de algum modo tal tentação, sempre tentadora, passe a redundância, mas atentatória da "verdade real".
As considerações expendidas a propósito das investigações de órgãos de polícia criminal a propósito de "um maior distanciamento e objectividade na análise que derradeiramente fará da valia probatória alcançada" ( pelos opc), esbarrará invevitavelmente em tal escolho invisível que assenta na premissa do habitual " se não sabe, por que pergunta?..." e que contende com a matéria a investigar à décharge.
Um magistrado que não entenda o que se investiga não saberá investigar à décharge e escapar-lhe-á essa vertente quando se lhe apresentar o relatório final do opc que contém apenas a investigação à charge. Daí a importância da especialização da magistratura ou o saber particular deste ou daquele magistrado em determinados assuntos. Quem controla o inquérito tem que saber o que deve controlar e procurar saber onde estará a verdade que pode estar escondida. No caso EDP, por exemplo, o assunto parece-me muito premente.
No caso Influencer ainda mais, uma vez que a investigação se pautou por uma charge à la brigada ligeira, com efusiva atenção ao aspecto algo pitoresco de envolver um governo em funções. Num caso com tamanha susceptibilidade os cuidados deveriam ser redobrados, particularmente no que o aspecto à décharge imporiam normalmente.
À décharge deveria ter sido ponderado se a actuação política de um governo poderia ultrapassar tal barreira e entrar afoitamente no domínio do direito penal.
A mim, parece-me evidente que sim, pelos contornos conhecidos, pelo abuso de poder evidente que transpira de todo o processo, plasmado nos factos conhecidos à charge, com tráficos de influência vários e repetidos e actuações inadmissíveis legalmente. O MºPº não tem que se envergonhar de tais investigações ou justificar que as tenha feito quando outros, como certos juízes, não entendem do mesmo modo o direito e a justiça. Tem apenas que as explicar devidamente para que todos entendam e no seu devido tempo. Que é agora e não apenas no final do inquérito...
Mas pode haver a "décharge" de se considerar que afinal a opção política de decidir em colectivo de conselho de ministros pode muito bem estar a colocar fora da alçada do direito penal tais actuações ou até a própria existente do tipo penal em causa, de prevaricação, como se aventou já e o juiz de instrução o terá feito. Isso deveria ter sido ponderado à décharge ou pelo menos à cautela.
No caso concreto do Influencer, as propostas dos subscritores são inócuas porque o processo foi dirigido por magistrados experientes, com a hierarquia devidamente informada dos passos a dar e com as cautelas de preservação essencial e muito eficaz, neste caso concreto, do segredo de justiça. Portanto, não é por aqui que o gato vai às filhós...mas pode ir por outro meio.
E esse meio é outra coisa que os subscritores do artigo não aventam: a natureza dos magistrados que investigam, a formação específica para atender a tal vertente da atenção ao "décharge" e a política geral e conhecida, de algum modo populista, de o Ministério Público considerar que é sempre um sucesso uma operação de envergadura das que foi encetada, com acusações e suspeitas sumárias de grandes actos criminosos, com prisões preventivas pedidas à cabeça e com a intenção de dedução de acusações agigantadas, na perspectiva de condenações de preceito. Não é assim e é preciso que tal cultura seja substituída por outra, mais consentânea com a realidade que temos, legal, jurisprudencial e prática. O MºPº não pode ser uma ilha de pequenos robespierres ou de saint-justes, que para quem não sabe, foram revolucionários do terror jacobino francês que acreditavam piamente na lei...e esta tendia a dar-lhes razão, até que foram executados por força das mesmas leis.
A falta de bom senso ou de ponderação concreta e acertada de medidas a tomar em certos casos depende muito dos magistrados que dirigem as investigações e não é por terem mais de dez anos de experiência e classificação de mérito que se adquirem tais atouts.
Quem já deu mostras de insensatez uma vez, continuará a dá-las no futuro e disso não haja dúvidas. A noção de "Verdade" vem mais uma vez ao de cima e sobrepõe-se à da noção subjectiva da realidade que se confunde com verdade processual adquirida do modo indicado: investigação à charge e sem atenção à décharge.
A proposta de uma hierarquia mais disseminada entre os "mais velhos", supostamente mais sabedores porque nas cadeiras de cima da hierarquia pode ser tentadora, mas na realidade quem conhece os processos é quem neles trabalha, particularmente os mais delicados ou complexos. E por isso são os magistrados do DCIAP quem conhece os fios das meadas que têm nas mãos e não os procuradores-regionais ou outros ainda mais acima. Não se trata de um "primado de inexperientes" mas de um primado fundamental: entregar a quem sabe melhor o que está melhor preparado para tal. E pode nem ser um director de DCIAP. Veja-se por exemplo o que sucedeu no caso Aníbal Pinto que proibiu magistrados titulares de um inquérito de ouvir outros titulares de órgãos de soberania, como o primeiro-ministro ou o presidente da República apenas por um dever de "respeitinho". Não pode ser assim e isto nada tem a ver com controlo hierárquico e se tiver é precisamente por isso que a autonomia interna do MºPº deve ser melhor preservada, sem directivas formais a impor regras inexequíveis de acordo com os princípios gerais da igualdade geral da lei para todos. Já sucedeu e os magistrados subscritores sabem muito bem do que escrevo. Tal distorção é mais perniciosa para a verdade material do que qualquer investigação à charge e à décharge, porque é simplesmente a postergação de princípios fundamentais do estado de Direito.
Assim, o controlo hierárquico das investigações deve fazer-se por iniciativa da hieraquia e "imersão" dos hierarcas no próprio processo investigatório, com apoio prático e permanente, através do acompanhamento das mesmas, pessoal e intransmissível, ao ponto de compreenderem o que está em jogo, com respeito inteiro sobre as barreiras de actuação individual. Será possível tal actuação hierárquica? Duvido, perante a complexidade de algumas investigações.
Quanto à distinção entre "actos políticos" e actos criminais relativamente aos mesmos factos o problema é de direito, puro e duro. De interpretação de regras jurídicas. E quem as faz? E quem as deve interpretar na fase de inquérito, como no caso Influencer?
Sendo o assunto delicado é necessário tomar uma opção que é de natureza jurídica, correndo os riscos de se levar em cima com a contestação da "lawfare" como agora acontece.
Tudo isso contende aliás com outro tema muito querido de um dos subscritores do artigo, Euclides Dâmaso e que é o do relevo da "prova indirecta" para sustentar acusações em processo penal. O assunto por vezes é tão delicado que aí sim!, seria curial a intervenção hierárquica apoiada em juristas de renome da PGR. Que os tem, mormente no Conselho Consultivo...
Quanto ao último ponto, sobre as críticas à actuação do MºPº, "internas ou externas", o recado vai direitinho para o processo disciplinar instaurado à PGA Maria José que por escrever um artigo de opinião, discutível e até lamentável se vê agora em palpos de aranha, num CSMP que se dividirá quanto à eventual responsabilidade disciplinar, o que deveria ter sido evitado.
Não é por se escreverem críticas acerbas a colegas magistrados ou se apresentarem visões diferentes, ou nem tanto assim, do MºPº, que um magistrado deve ser punido nesse exercício de liberdade de expressão.
Em Abril...águas mil!