sexta-feira, julho 19, 2024

O MºPº segundo Cunha Rodrigues

 No Público de ontem, Cunha Rodrigues, o antigo PGR, volta a acentuar aspectos que merecem atenção no campo mais vasto da Justiça e particularmente no Ministério Público. 



É um espírito lúcido este que aqui se revela, surpreendente, para quem durante tanto tempo esteve ausente das discussões sobre o tema. Nos últimos tempos soma já diversas intervenções e só ficamos a ganhar com isso, porque Cunha Rodrigues tem uma visão da Justiça e dos magistrados que me parece globalmente correcta, apesar de um ou outro aspecto discutível. 

Essencialmente pretende regressar a um modelo de controlo hierárquico que actualmente se encontra ultrapassado pela lei aprovada e que limita tal intervenção. Actualmente, segundo Cunha Rodrigues, "não há o poder de dar instruções na base do Ministério Público"...mas subsiste a directiva 4 que nem se torna empecilho a tal efeito. 
Cunha Rodrigues reivindica um poder da hierarquia poder dar instruções ( ordens?) ao Ministério Público de base, sempre que tal se justifique e não apenas nos termos da lei de processo penal com as limitações conhecidas ( no fim do inquérito ou durante o mesmo, com a respectiva avocação pelo imediato superior hierárquico. Mas percebe-se uma crítica à reforma que instituiu a dispersão de poderes hierárquicos pelos Coordenadores de Comarca, pelos directores aqui e ali e pelas procuradorias-regionais. Dantes não era assim porque havia procuradores e abaixo dos mesmos, na cadeia hierárquica os "delegados" que passaram a "procuradores adjuntos". Os procuradores tinham um poder hierárquico efectivo de dar instruções com algumas condicionantes mas menos que actualmente e a coisa funcionava. Cunha Rodrigues até disse numa entrevista ao Observador que nunca avocou nenhum inquérito...
Portanto se há um problema nesta área, o regresso ao passado será a melhor solução? Por outro lado, a propósito da imagem da justiça é certeiro em dizer que a mesma revela uma tendência mediática para a réplica de críticas acéfalas e ignorantes.
Depois entra no caminho pedregoso das críticas ao modo como se fazem inquéritos actualmente, estando há muito tempo afastado da dinâmica própria e da rotina introduzida. Escutas a mais? Cunha Rodrigues acha que sim, sem dizer onde e como...
Enfim, sobre os cidadãos que exercem na política tem uma posição curiosa: São iguais como pessoas, não são iguais como cidadãos...o que suscita logo a questão de saber em que qualidade podem ou devem ou terão sido investigados. 
Um político com suspeitas fortes de corrupção ou tráfico de influências ou prevaricações de outra ordem é uma pessoa ou um cidadão? 
"Exercendo funções públicas, funções de muito melindre que têm de ser protegidas" a frase poderia ter sido dita por...Salazar, Marcello Caetano um dos seus ministros da Justiça de então. Antunes Varela, por exemplo. E pela lei que protegia tais pessoas ( ou cidadãos?) com a garantia administrativa de só poderem ser investigadas quando largassem o posto...
Curioso...


quarta-feira, julho 17, 2024

Cunha Rodrigues continua em boa forma intelectual

 Uma excelente entrevista do antigo PGR Cunha Rodrigues ao Observador em que aborda os principais problemas da justiça, com a inteligência e saber que lhe são reconhecidos e a milhas de distância dos komentadeiros da opinião mediática ignorante. 

As soluções apresentadas são interessantes e no fim estraga tudo: comparando o que se passou nos anos noventa em Portugal, mormente com o processo de Macau, com o que aconteceu na Itália em que "a direita e a extrema-direita" veio a aproveitar os processos então instaurados contra certos políticos [por exemplo do PSI, acabando com tal partido-nota minha]. Cunha Rodrigues sempre foi de esquerda e entende que a direita e "extrema-direita", seja lá isso o que for que não é sequer definido, mas apenas intuído num processo manhoso de definição,  não têm direito de cidadania democrática, é o que se conclui...o que é pena.

No entanto, toda a entrevista ao longo de quase uma hora merece audição ou leitura. No Observador.



quinta-feira, julho 11, 2024

O Ministério Público a la carte

 Há fregueses na sociedade portuguesa que pretendem um Ministério Público à medida dos seus conceitos e anseios, alguns legítimos e outros menos que isso porque esconsos e fáceis de adivinhar. Entre os fregueses Sócrates, Isaltino de Morais ou mesmo Ferro Rodrigues e Rui Rio há uma diferença entre eles...porque uns querem detergente que limpe bem e outros bacalhau para servir a quem lhes basta. 

Alguns dos que não gostam do modelo actual ou pelo menos do seu funcionamento, decidiram subscrever um manifesto a propor discussão e mudança, realçando o ponto particular da liderança da instituição se processar de modo diverso da que actualmente tem sido regra e apontando circunstâncias perturbadoras relativamente ao funcionamento da mesma se modificar quanto a regime de escutas, investigações a políticos e actuações pontuais que definem como abusos, apesar da lei as prever e a mesma ter sido aplicada sem crítica ou anulação pelas autoridades de controlo judiciário, os juízes.

No manifesto há gente de todos os quadrantes e formação, incluindo antigos magistrados como Fernando Negrão, novos que poderiam lá figurar como a magistrada Maria José Fernandes [Eleutério é outra e peço desculpa pela confusão] políticos como Rui Rio ou gente da estirpe de Maria Lurdes Rodrigues, com percurso político e profissional conhecido nos governos de José Sócrates. 

Todos criticam o MºPº actual, particularmente a actual PGR, Lucília Gago por ser a cabeça da instituição, sem alguns conhecerem sequer os limites do seu poder hierárquico. 

Ontem, um advogado associado ao tempo de Rui Rio como líder do PSD, Coelho Lima numa entrevista ao Público [ao DN] tecia considerações sobre a PGR que suscitam sérias reservas acerca da boa fé com o que o fez. A mais grave é que a mesma revelou na entrevista à RTP uma insensibilidade social [ "absoluta alienação social" ipsis verbis e uma frase absolutamente palerma a meu ver]]e que punha em causa a democracia. 

Pelo contrário outros comentadores entendem que a entrevista foi boa e que esclareceu o que havia a esclarecer, constituindo um exercício de defesa da instituição, com a resposta concreta a quem a atacou, mormente aqueles. 

Neste número, aliás reduzido, está Eduardo Dâmaso que na Sábado de hoje volta ao tema:


Porém, não é preciso ir mais longe do que algumas páginas depois, para ler a opinião em crónica de outra advogada, Leonor Caldeira a sustentar que tem havido abusos e excessos na actuação do MºPº em alguns casos, particularmente no caso Galamba, investigado durante anos e com escutas telefónicas de permeio.


Procurei em vão saber a opinião do cronista residente Pacheco Pereira sobre o assunto e verifico que não tem opinião que se escreva porque dedica as duas páginas ao tema magno da situação política em França, como se fosse um connoisseur. Não passei de algumas linhas dispersas.  

Temos por isso um problema de saber se o Ministério Público que temos funciona bem, porque não haja dúvida que assim vai continuar a actuar por uma simples razão: foi treinado ao longo das últimas décadas para tal, com a formação académica recebida, a formação profissional incutida e a rotina imbuída. 

As chefias actuais do MºPº saíram todas desse caldo de cultura que se gerou principalmente no CEJ desde meados dos anos oitenta. Todos os dirigentes intermédios da instituição, como os directores de departamentos de investigação penal e coordenação e ainda os procuradores regionais, passaram pelo CEJ e receberam a formação que têm como magistrados. A experiência profissional foram-na conseguindo através de intervenção em processos que não se distingue do que actualmente fazem os procuradores e inspeccionados em tal actuação, tendo recebido notação de elevado mérito, por procederem como procederam e que aliás se considera modelar. 

Não é por acaso que circula um abaixo-assinado entre procuradores do MºPº que já conseguiu obter quase metade dos elementos do MºPº  ( e quase todos o poderiam fazer) a repudiar o teor do manifesto dos 50 mais uns tantos. Todos se mostram solidários com o modo como o actual MºPºactua e deveria entender-se porquê, uma vez que há razões para tal. 

E é por aí que se deveria começar a questionar o modelo se alguém o quiser fazer, porque não é a mudança de titular na PGR que vai alterar seja o que for. 

O recente falecimento da antiga PGR Joana Marques Vidal e o panegírico à sua volta não é suficientemente objectivo para reconhecer o seguinte: JMV também era um produto desse CEJ e dessa formação e a sua actuação no cargo não difere assim tanto da actuação da actual PGR, a não ser em pormenores de estilo pessoal que passam pelo interesse directo no desenrolar de certas operações judiciárias como foi o caso notório da Operação Marquês e nem sequer se distingue pela particular habilidade de comunicação.  A propósito da mesma basta ler ver e ouvir as intervenções do principal arguido, José Sócrates, quanto ao papel do MºPº e assim de JMV para perceber que o diapasão não é assim tão desafinado relativamente ao que se usa agora para com Lucília Gago. As críticas são ainda mais severas e contundentes, aliás.

A famigerada comunicação da PGR encontra-se seriamente limitada por um dever legal de reserva levado muito a sério pelos magistrados que temem, justificadamente, a intervenção dos conselhos superiores sempre que tal dever é posto em causa, por dá cá aquela palha ou por mera revindita, acicatada pelos media ao serviço de um jornalismo de causas ou fretes variados, incluindo o sensacionalismo interesseiro. Que o diga o magistrado Carlos Alexandre...e no caso do MºPº o medo é o melhor amigo da classe.

Portanto vamos lá ao princípio e no início era o CEJ instituído no dealbar da década de oitenta e dirigido por magistrados de uma velha guarda que tinha passado por um Ministério Público vestibular da carreira judicial e que percebiam a essência da sua actuação através de tal experiência, num tempo em que os crimes não tinham a dimensão política ou social dos actuais e se resumiam quanto a relevância mediática e social,  em qualidade e gravidade a crimes de sangue e um ou outro crime de tráfico de droga, aliás cada vez mais frequente nesses anos iniciais, para além do contrabando, implicando já certos poderes de facto na sociedade portuguesa ( caso do Aveiro Connection, por exemplo).

Assim, pergunta-se desde já e de chofre: o CEJ preparou nos anos oitenta ou noventa os seus magistrados para investigarem eficazmente crimes imputáveis a elites político-administrativas? A resposta é variável...e basta lembrar o caso da Universidade Moderna e depois da Independente para o expôr.

Tal resposta sucintamente é...não. O CEJ não preparou suficientemente os magistrados para tal porque não tinha que preparar. O que o CEJ poderia fazer e aparentemente nunca fez, directamente ou através dos formadores iniciais na carreira da magistratura seria incutir nos formandos uma educação pessoal que muitos não têm e nunca tiveram e  um espírito mais aberto à sociedade, mais consentâneo com a realidade actual, diversa daquela que viveram os magistrados formado no passado de há mais de cinquenta anos e em que um advogado para se dirigir ao juiz em audiência de julgamento para solicitar autorização em intervir, ainda dizia "com a devida vénia" ( data venia) ou que permite que um juiz titular de órgão de soberania se comporte como titular da sua soberania pessoal em saber que não pode ser responsabilizado por qualquer dislate mesmo em audiência e seja atreito ao exercício de um autoritarismo inadmissível. E ainda há muitos desses magistrados porque é impossível controlar tal exercício a quem se diz independente e irresponsável. Se fosse um inspector que participasse em audiências de julgamento aí outro galo cantaria e surgiria todo o sentido de dever e responsabilidade e mais urbanidade exigíveis a todos os magistrados, ou a qualquer interveniente processual. A única entidade que os juízes temem a valer é o CSM e o conjunto dos seus inspectores, eles mesmos formados na mesmíssima escola do que vem de trás toca-se para a frente. 

Os magistrados do MºPº nem sequer padecem desse mal endógeno, o do autoritarismo gratuito e sem sem consequências, mas ainda assim imputam-lhes o mal colectivo de assim procederem como corporação. 

Este é um aspecto relevantíssimo que ressuma do manifesto dos 50 mais uns tantos e que apenas denota o mal estar no mundo da justiça, por causa dos abusos. 

E que abusos serão esses, em concreto e segundo o manifesto? Afinal o de aplicarem a lei processual, neste caso penal, segundo o que aprenderam e lhes ensinaram e por isso são controlados em inspecções. Lei essa que foi aprovada pelo poder legislativo-executivo que vai aprimorando ao longo dos anos e outras tantas revisões a sua conformação segundo as queixas singulares de entalados, geralmente da classe dirigente política e do poder de facto e segundo os processos em que se vêem envolvidos, numa denegação prática da igualdade de todos perante a lei.

É abuso constituir alguém arguido logo que contra a pessoa haja uma queixa fundada? É abuso ordenar e organizar buscas domiciliárias sempre que se entenda que possam ser frutíferas na recolha de elementos documentais para a instrução de um processo? É abuso proceder a escutas telefónicas, durante mais ou menos tempo para se tentar entender o grau de participação de suspeitos ou arguidos na prática de crimes? Não, não é e nunca o foi se as regras processuais para tal forem cumpridas.

Então o que incomoda os preocupados do manifesto? Enfim, que um dia lhes bata à porta o infortúnio das diligências aludidas. E que pretendem afinal os mesmos? Limitar tais poderes e de tal modo que se tornem residuais e inúteis no final de contas. Quem não deve não teme e quem se mete na política actua de modo diverso dos magistrados, como se tem visto no resultado de tais escutas. Pode mesmo dizer-se que no ambiente político o regabofe ou a displicência entre "amigos" e compadres ou correligionários que anda a par da corrupção mais chã,  é moeda corrente e de troca entre tais pessoas que tendo o poder político por terem sido eleitos não compreendem nem aceitam que se possa sindicar esse à-vontade e a actuação que pode violar as regras de direito que eles mesmos instituíram. Para os outros, preferencialmente da oposição.

Esse é o aspecto mais negro das preocupações dos "manifestantes". Outro porém, que lhe subjaz e que subscreveria, nem sequer é expresso: precisamos de uma magistratura ( juízes e mp) algo diferente, mas no seu todo e com uma formação adequada a uma função que alguns magistrados nunca interiorizaram verdadeiramente ou se deixaram corromper pela rotina e pela embriaguês da perseguição próxima da policial ou do entendimento exclusivamente à charge do processo penal. 

Essa crítica, tenho-a feito aqui ao longo dos anos e continuo a fazer. 

Do que precisamos é de outro CEJ, com outra direcção e com outros formadores...e isso não vai ser fácil de encontrar porque não os há em quantidade suficiente e o "que vem de trás, toca-se para a frente".

terça-feira, julho 09, 2024

Joana Marques Vidal, magistrada.

 Morreu Joana Marques Vidal e ficou o exemplo de uma magistrada do MºPº como deve ser, como há muitos que o são, incluindo a actual PGR. 

Mesmo com os defeitos inerentes, já por aqui apontados, fica o meu preito de homenagem, aliás melhor prestada aqui, por Euclides Dâmaso. 

quarta-feira, julho 03, 2024

Ministério Público: começou a corrida à PGR

 Tal&Qual é de hoje.



 O primeiro milho é dos pardais, como dantes se dizia...

E porque estamos nas aves, nos pássaros, passarinhos e passarões e outros animais de capoeira, este artigo do Público da autoria de um conhecido político socialista, suscita a tese da cabala sob o ponto de vista marreco que é o que normalmente lhe assiste:


Ora então façamos lá o teste do pato para os patos perceberem o pathos;

Um político que foi primeiro-ministro e que deu ocupação política a este político sectariamente patológico, foi apanhado em escutas telefónicas a combinar esquemas de organização de negócios em que o Estado era parte, com empresas privadas, intermediados por um amigo que segundo tudo indica para lá foi por ser amigo de quem era ( a tal parte do parece um pato...); esses negócios careciam de variada intervenção político-administrativa e chegou a um ponto em que tal só poderia ser feito em Conselho de Ministros presidido por aquele. Foi levado a cabo o esquema manhoso que o presidente da república rejeitou por o ser ( é a parte em que o pato actua como um pato porque o esquema apresentava-se como indiciador de corrupção, indiciada pelo modus operandi).

 De acordo com a lógica mago-patológica, o que deveria fazer o Ministério Público? De pato? Ou de caçador? Optou pelo seu papel legítimo e concluiu que se o esquema parecia corruptivo e alguém se actuou como se o fosse, mesmo primeiro-ministro,  só poderia ser...logo, fez o que tinha a fazer e comunicou a quem de direito ( ao pSTJ) as suspeitas legítimas, dando a conhecer tal facto através de um comunicado, para esclarecer a população acerca do que se passava e não esconder o essencial. 

Pois bem! Esta actuação do MºPº é entendida pelo preclaro patológico como um atentado ao Estado de Direito, um golpe de Estado não violento, apenas porque lhe pareceu que o seu mentor foi apeado por causa de um parágrafo desse comunicado. Esquecendo tudo o resto, incluindo uma quantia de várias dezenas de milhar de euros escondidos em lugares esconsos no gabinete ao lado do mentor em funções e cuja proveniência continua por explicar cabalmente, sem pactos e sem ser para pato ver. 

Golpe de Estado porque lhe parece golpe de estado. Poderia parecer-lhe outra coisa, por exemplo, o exercício legítimo da acção penal segundo o princípio geral e constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei, mas não, isso não lhe ocorreu. Enfim, poupemos em adjectivos porque é demasiado fácil malhar em gente desta estirpe..

A terminar, um pequeno artigo do procurador-geral adjunto jubilado, Alberto Pinto Nogueira, pessoa estimável e que no outro dia escreveu no mesmíssimo Público um artigo com sentido contrário, a anunciar o medo que devemos ter do MºPº . Hoje, escreve que não o teme. Ufa! Ao Ministério Público, entenda-se. Ainda bem.

 Quanto ao resto apenas deve dizer-se que a personagem mistério exposta no escrito pode muito bem ser...Rui Rio. Também ocorreram com este político ressabiado com o MºPº coisas idênticas pelo que é legítimo supor tratar-se de uma e a mesma pessoa. Edificante! 


Do resto do artigo que daria pano para mangas muito compridas, já tenho comentado por aqui que o MºPº é o que é actualmente porque sempre foi assim, particularmente depois de conquistada a autonomia externa e interna de que goza. 

O problema não reside aí, mas na formação dos seus magistrados, nas faculdades, no CEJ, nos formadores, nas rotinas processuais e métodos de trabalho etc etc. Muito complexo, tudo isso e principalmente muito difícil de alterar. O que vem de trás, toca-se para a frente e quem divergir, apanha com inspecções para o arrimo conveniente, com pleno conhecimento da hierarquia. 

Este problema, curiosamente é que não vejo a ser tratado. Vamos a isso, caro dr. Pinto Nogueira?


terça-feira, julho 02, 2024

Os obituários de Fausto nos jornais

 A notícia da morte de Fausto ocorreu ontem e os jornais tiveram todo o tempo para coligir elementos para o obituário da praxe. Percorrendo as folhas dos principais diários temos um ponto comum, na memória de um disco de 1982 sobre as viagens marítimas dos portugueses nos séculos XV e XVI, Por este rio acima. Os demais discos ou nem são referidos ou são-no em nota fugidia.

Não há falta de informação sobre a obra musical de Fausto disponível à mercê de alguns clicks na internet. No entanto, parafraseando Frank Zappa, a informação não é conhecimento; conhecimento não é sabedoria; sabedoria não é verdade. Verdade não é beleza e Beleza não é amor. Amor não é música. Música é o melhor que há.  ( Information is not knowledge. Knowledge is not wisdom. Wisdom is not truth. Truth is not beauty. Beauty is not love. Love is not music. Music is the best.”).

A música de Fausto não se resume ao disco  do rio acima nem a meu ver esse será o melhor de Fausto porque muito previsível e repetitivo, musicalmente. Prefiro outros, dos anos setenta, mesmo os panfletários. 

O primeiro disco de 1970 já mostrado no postal anterior, não precisa de mais acrescentos do que os que lá estão. 

O disco de 1974, Pró que der e  vier começa com um som de harmónica baixo e continua com o Daqui desta Lisboa, com  letra de Alexandre O´Neill e vozes de Adriano Correia de Oliveira e Zeca Afonso, para além de Fausto e uma instrumentação já um pouco mais elaborada relativamente ao primeiro disco de 1970. 

O disco foi editado por Arnaldo Trindade e gravado em Madrid, nos estúdios Kírios, "até 17 de Abril de 1974". Três temas, os mais panfletários- Venha cá senhor buguês, Marcolino e O patrão e nós- foram já gravados em Outubro de 1974 nos estúdios Polisom.

O tema Carta de Paris é uma reprise do som do primeiro lp e até ficava bem nesse primeiro disco, pelos vistos renegado pelo artista ao ponto de nunca ter sido reeditado. O tema seguinte, Não canto porque sonho com letra de Eugénio de Andrade e voz de José Afonso a acompanhar, poderia figurar num disco posterior dos anos oitenta. 

Pró que der e vier ( com um som de Moog tocado por Vitorino), Marcolino ( com guitarra eléctrica de Júlio Pereira e uma sonoridade zappiana que o rio acima nem perscruta alguma vez)  e Daqui desta Lisboa são dos temas que o programa Página Um do Rádio Renascença passava muitas vezes nos primeiros meses de 1975, até à interrupção do programa em Fevereiro desse ano por causa do...Prec. O tema o Homem e a Burla parece...Paul Simon de 1972, com a harmónica baixo.

O segundo disco da década, de 1975, Um Beco com saída, editado pela Orfeu, ainda mais panfletário do que essoutro. O tema Queremos ver tudo diferente não mascara as palavras na frase final: "viva a Revolução Popular". O tema Final que afinal tem uma Introdução ...e coragem, logo no primeiro temavale o disco e nenhum tema do rio acima se equivale.

O disco de 1977, Madrugada dos Trapeiros, tem pelo menos quatro temas de antologia. Atrás dos tempos, Se tu fores ver o mar ( Rosalinda),  Uns vão bem outros mal, do lado um. Mariana das sete saias, do lado dois. Nenhum dos temas do rio acima os supera mas apenas repete.

O disco de 1979, Histórias de Viageiros, começa aliás com um tema da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, continuado no tema A Nau Catrineta, esta do Cancioneiro de Garret. O tema Roupa Velha é um hit e a balada Eu tenho um fraquinho por ti é insuperável. 

Depois desses nem me apetece cronicar o Por este rio acima, mas mostro-os aqui a todos


Os obituários reflectem uma carência de informação e conhecimento para não dizer sabedoria ou amor pela música. Aposto que os obituaristas nunca ouviram o primeiro disco de Fausto ou sequer o segundo ou o terceiro, já dos anos setenta. Assim replicam-se uns aos outros, num fenómeno que também se replica noutros assuntos, ressumando internet em todos os parágrafos, sem digestão cultural ou compreensão de contexto.  
O que ainda escapa é o artigo de Nuno Pacheco no Público, uma página a acrescer às duas, mais  vulgares. O resto é uma tristeza e um sinal de decadência cultural.

Jornal de Notícias:


Correio da Manhã:




Diário de Notícias:



 Público:





segunda-feira, julho 01, 2024

Na morte de Fausto lembro discos antigos

 Republico um postal de 22 de Maio de 2022 sobre Fausto cuja notícia de falecimento li agora.

Fausto, para mim, foi o cantor de Ó pastor que choras, ouvido já alguns anos depois de ter ouvido o disco de 1974, um panfleto revolucionário com uma música deliciosa, intitulado Pró que der e vier e  principalmente Rosalinda ( se tu fores ver o mar), uma canção ecológica dos anos setenta do LP Madrugada dos Trapeiros de 1977. E de muitas outras dos lp´s dos anos setenta, particularmente. 

Republico o postal porque provavelmente ninguém vai mencionar estes discos esquecidos que aqui ficam lembrados...

 Fausto, o autor-cantor e artista da música popular portuguesa que publicou vários discos de música de protesto e de intervenção durante as décadas que se seguiram a 1970, tem o seu primeiro disco, em formato LP, completamente esquecido e para muitos totalmente desconhecido. 

O disco é este e saiu na primeira metade do ano de 1970, tendo sido publicado na Holanda ( terra da Philips). Até hoje nunca foi reeditado, seja em que formato for e por isso é uma perfeita raridade discográfica. Aliás, nunca vi sequer em publicações portuguesas da época imagem da capa ou publicidade ao mesmo. 

Até há pouco tempo, só um ou outro blog tinham fotos da capa do disco e sempre em resolução fraca que nem sequer dava para observar em pormenor os detalhes das cores vivas, do vermelho-verde e as indicações da contra-capa. 

No Discogs, no dia de hoje, há dois exemplares disponíveis para venda, qualquer um com preço acima das duas centenas de euros:


Para mim é sem dúvida um dos grandes discos da música popular portuguesa, dos anos setenta e de sempre. É um disco algo melancólico, como o primeiro de Jackson Browne, para ir um bocado longe, mas de uma beleza segura e intemporal. 

É uma pena que esteja assim esquecido, porque tem pelo menos duas canções que merecem figurar entre as melhores de sempre, na música popular portuguesa: Chora, Amigo, Chora Ó Pastor que choras. E tem o tema Denúncia involuntária da atracção, da autora de A. Pinho/L. Linhares, os responsáveis pela Filarmónica Fraude e no caso de A. Pinho, também da Banda do Casaco. 

O tema Ó Pastor que choras, juntamente com África,  foram  aliás publicados em single, no ano de 1970, em "mono", o que destoa da versão em lp que é em "stereo":



Quanto ao som destes temas, na versão em Lp e single, as diferenças são notórias, devido ao registo mono/stereo, com vantagem para a versão em LP, mais definido e espacial, talvez resultante da prensagem ser estrangeira, no caso holandesa ( a matriz impressa no disco, no lado 1, tem a referência AA 6330 001 1 Y 1 P 1970).  Melhor, em suma, se bem que o tema África tenha a mesma percussão bem batida e arejada, em mono e prensagem nacional, no single. 
O som do LP é excelente, segundo o meu critério com exigência qb. Bem gravado e produzido de modo satisfatório e com audição sonora muito agradável, nada ficando atrás dos melhores discos da Island, da mesma altura ( Jethro Tull, de Stand Up, por exemplo), com aquele "ar" de som que paira no estúdio e é transportado para o suporte em vinil, particularmente nas percussões, o que o cd ou gravações digitais mesmo em alta resolução ( DVD-Audio ou SACD)  não conseguem transmitir do mesmo modo.  

Para além desta versão de dois temas do Lp, em Março de 1970 ainda foi publicada no LP " Disco Comemorativo da Inauguração do Novo Edifício Philips" ( Nas Amoreiras, onde ainda funciona nos dias de hoje) o tema "Chora, Amigo Chora". Porém, esta versão não é a do primeiro LP; é sim a do primeiro EP de Fausto, do ano anterior, ainda incipiente. É uma versão em balada, menos ritmada do que a do LP, que tem percussão em barda para animar o tema choroso.


É muito difícil encontrar informação sobre a música de Fausto desse tempo, não havendo registos que sejam do meu conhecimento, impressos em jornais ou revistas da época que dêem conta da saída do primeiro LP.
Apenas do single, na revista  Mundo Moderno de 1 de Maio de 1970:


E a Mundo da Canção de Junho e Julho de 1970 publicou as letras do single, nunca tendo feito nesse ano ( e seguintes) menção a esse primeiro Lp ou sequer ao seu autor, Fausto, o que é no mínimo estranho. 



Dá a impressão que a música de Fausto, com aquelas excepções, foi simplesmente "cancelada", omitida, censurada na imprensa portuguesa da época. 
Tal mistério nunca foi devidamente esclarecido e há uns tempos a apresentadora de tv, Fátima Campos Ferreira entrevistou Fausto na primeira pessoa e organizou um programa televisivo sobre a vida do mesmo, no qual este refere ter sido censurado, atribuindo ao "lápis azul" tal responsabilidade. 
Falta saber é a quem pertencia tal lápis azul ( ver desde os minutos 14 a 17) . Ou vermelho...porque diz que a Antena Um é que lhe ofereceu esse primeiro disco, com riscos azuis. 
Aliás, a intelectualidade jovem da época que produzia o Em Órbita e os que o escutavam ligaram nada de nada ao disco. Em 1967 tinham escolhido o disco A Lenda d´El rei d. Sebastião do Quarteto 1111 como algo importante e fundamental na música popular portuguesa. Três anos depois, este disco mereceu-lhes...nenhuma referência. Zero. 

De resto, na internet, há quem tenha escrito sobre Fausto, mas são poucos e parca é a informação. Sobre este primeiro disco quase nada...




Assim, resta dizer que este primeiro disco de Fausto, de longa duração, é efectivamente um grande disco e que ouvido em vinil revela toda a sua beleza intrínseca, inclusivé sonora e própria do vinil. 
Quem quiser ouvir um sucedânio pode sempre procurar no You Tube porque há pelo menos um aficionado que se deu ao trabalho de transpor o som do vinil para a resolução ( baixa) do digital do youtube. Mas a procura de todos os temas carece de trabalho de pesquisa aturada. 
Vale a pena, no entanto. 

O Público activista e relapso