quinta-feira, julho 11, 2024

O Ministério Público a la carte

 Há fregueses na sociedade portuguesa que pretendem um Ministério Público à medida dos seus conceitos e anseios, alguns legítimos e outros menos que isso porque esconsos e fáceis de adivinhar. Entre os fregueses Sócrates, Isaltino de Morais ou mesmo Ferro Rodrigues e Rui Rio há uma diferença entre eles...porque uns querem detergente que limpe bem e outros bacalhau para servir a quem lhes basta. 

Alguns dos que não gostam do modelo actual ou pelo menos do seu funcionamento, decidiram subscrever um manifesto a propor discussão e mudança, realçando o ponto particular da liderança da instituição se processar de modo diverso da que actualmente tem sido regra e apontando circunstâncias perturbadoras relativamente ao funcionamento da mesma se modificar quanto a regime de escutas, investigações a políticos e actuações pontuais que definem como abusos, apesar da lei as prever e a mesma ter sido aplicada sem crítica ou anulação pelas autoridades de controlo judiciário, os juízes.

No manifesto há gente de todos os quadrantes e formação, incluindo antigos magistrados como Fernando Negrão, novos que poderiam lá figurar como a magistrada Maria José Fernandes [Eleutério é outra e peço desculpa pela confusão] políticos como Rui Rio ou gente da estirpe de Maria Lurdes Rodrigues, com percurso político e profissional conhecido nos governos de José Sócrates. 

Todos criticam o MºPº actual, particularmente a actual PGR, Lucília Gago por ser a cabeça da instituição, sem alguns conhecerem sequer os limites do seu poder hierárquico. 

Ontem, um advogado associado ao tempo de Rui Rio como líder do PSD, Coelho Lima numa entrevista ao Público [ao DN] tecia considerações sobre a PGR que suscitam sérias reservas acerca da boa fé com o que o fez. A mais grave é que a mesma revelou na entrevista à RTP uma insensibilidade social [ "absoluta alienação social" ipsis verbis e uma frase absolutamente palerma a meu ver]]e que punha em causa a democracia. 

Pelo contrário outros comentadores entendem que a entrevista foi boa e que esclareceu o que havia a esclarecer, constituindo um exercício de defesa da instituição, com a resposta concreta a quem a atacou, mormente aqueles. 

Neste número, aliás reduzido, está Eduardo Dâmaso que na Sábado de hoje volta ao tema:


Porém, não é preciso ir mais longe do que algumas páginas depois, para ler a opinião em crónica de outra advogada, Leonor Caldeira a sustentar que tem havido abusos e excessos na actuação do MºPº em alguns casos, particularmente no caso Galamba, investigado durante anos e com escutas telefónicas de permeio.


Procurei em vão saber a opinião do cronista residente Pacheco Pereira sobre o assunto e verifico que não tem opinião que se escreva porque dedica as duas páginas ao tema magno da situação política em França, como se fosse um connoisseur. Não passei de algumas linhas dispersas.  

Temos por isso um problema de saber se o Ministério Público que temos funciona bem, porque não haja dúvida que assim vai continuar a actuar por uma simples razão: foi treinado ao longo das últimas décadas para tal, com a formação académica recebida, a formação profissional incutida e a rotina imbuída. 

As chefias actuais do MºPº saíram todas desse caldo de cultura que se gerou principalmente no CEJ desde meados dos anos oitenta. Todos os dirigentes intermédios da instituição, como os directores de departamentos de investigação penal e coordenação e ainda os procuradores regionais, passaram pelo CEJ e receberam a formação que têm como magistrados. A experiência profissional foram-na conseguindo através de intervenção em processos que não se distingue do que actualmente fazem os procuradores e inspeccionados em tal actuação, tendo recebido notação de elevado mérito, por procederem como procederam e que aliás se considera modelar. 

Não é por acaso que circula um abaixo-assinado entre procuradores do MºPº que já conseguiu obter quase metade dos elementos do MºPº  ( e quase todos o poderiam fazer) a repudiar o teor do manifesto dos 50 mais uns tantos. Todos se mostram solidários com o modo como o actual MºPºactua e deveria entender-se porquê, uma vez que há razões para tal. 

E é por aí que se deveria começar a questionar o modelo se alguém o quiser fazer, porque não é a mudança de titular na PGR que vai alterar seja o que for. 

O recente falecimento da antiga PGR Joana Marques Vidal e o panegírico à sua volta não é suficientemente objectivo para reconhecer o seguinte: JMV também era um produto desse CEJ e dessa formação e a sua actuação no cargo não difere assim tanto da actuação da actual PGR, a não ser em pormenores de estilo pessoal que passam pelo interesse directo no desenrolar de certas operações judiciárias como foi o caso notório da Operação Marquês e nem sequer se distingue pela particular habilidade de comunicação.  A propósito da mesma basta ler ver e ouvir as intervenções do principal arguido, José Sócrates, quanto ao papel do MºPº e assim de JMV para perceber que o diapasão não é assim tão desafinado relativamente ao que se usa agora para com Lucília Gago. As críticas são ainda mais severas e contundentes, aliás.

A famigerada comunicação da PGR encontra-se seriamente limitada por um dever legal de reserva levado muito a sério pelos magistrados que temem, justificadamente, a intervenção dos conselhos superiores sempre que tal dever é posto em causa, por dá cá aquela palha ou por mera revindita, acicatada pelos media ao serviço de um jornalismo de causas ou fretes variados, incluindo o sensacionalismo interesseiro. Que o diga o magistrado Carlos Alexandre...e no caso do MºPº o medo é o melhor amigo da classe.

Portanto vamos lá ao princípio e no início era o CEJ instituído no dealbar da década de oitenta e dirigido por magistrados de uma velha guarda que tinha passado por um Ministério Público vestibular da carreira judicial e que percebiam a essência da sua actuação através de tal experiência, num tempo em que os crimes não tinham a dimensão política ou social dos actuais e se resumiam quanto a relevância mediática e social,  em qualidade e gravidade a crimes de sangue e um ou outro crime de tráfico de droga, aliás cada vez mais frequente nesses anos iniciais, para além do contrabando, implicando já certos poderes de facto na sociedade portuguesa ( caso do Aveiro Connection, por exemplo).

Assim, pergunta-se desde já e de chofre: o CEJ preparou nos anos oitenta ou noventa os seus magistrados para investigarem eficazmente crimes imputáveis a elites político-administrativas? A resposta é variável...e basta lembrar o caso da Universidade Moderna e depois da Independente para o expôr.

Tal resposta sucintamente é...não. O CEJ não preparou suficientemente os magistrados para tal porque não tinha que preparar. O que o CEJ poderia fazer e aparentemente nunca fez, directamente ou através dos formadores iniciais na carreira da magistratura seria incutir nos formandos uma educação pessoal que muitos não têm e nunca tiveram e  um espírito mais aberto à sociedade, mais consentâneo com a realidade actual, diversa daquela que viveram os magistrados formado no passado de há mais de cinquenta anos e em que um advogado para se dirigir ao juiz em audiência de julgamento para solicitar autorização em intervir, ainda dizia "com a devida vénia" ( data venia) ou que permite que um juiz titular de órgão de soberania se comporte como titular da sua soberania pessoal em saber que não pode ser responsabilizado por qualquer dislate mesmo em audiência e seja atreito ao exercício de um autoritarismo inadmissível. E ainda há muitos desses magistrados porque é impossível controlar tal exercício a quem se diz independente e irresponsável. Se fosse um inspector que participasse em audiências de julgamento aí outro galo cantaria e surgiria todo o sentido de dever e responsabilidade e mais urbanidade exigíveis a todos os magistrados, ou a qualquer interveniente processual. A única entidade que os juízes temem a valer é o CSM e o conjunto dos seus inspectores, eles mesmos formados na mesmíssima escola do que vem de trás toca-se para a frente. 

Os magistrados do MºPº nem sequer padecem desse mal endógeno, o do autoritarismo gratuito e sem sem consequências, mas ainda assim imputam-lhes o mal colectivo de assim procederem como corporação. 

Este é um aspecto relevantíssimo que ressuma do manifesto dos 50 mais uns tantos e que apenas denota o mal estar no mundo da justiça, por causa dos abusos. 

E que abusos serão esses, em concreto e segundo o manifesto? Afinal o de aplicarem a lei processual, neste caso penal, segundo o que aprenderam e lhes ensinaram e por isso são controlados em inspecções. Lei essa que foi aprovada pelo poder legislativo-executivo que vai aprimorando ao longo dos anos e outras tantas revisões a sua conformação segundo as queixas singulares de entalados, geralmente da classe dirigente política e do poder de facto e segundo os processos em que se vêem envolvidos, numa denegação prática da igualdade de todos perante a lei.

É abuso constituir alguém arguido logo que contra a pessoa haja uma queixa fundada? É abuso ordenar e organizar buscas domiciliárias sempre que se entenda que possam ser frutíferas na recolha de elementos documentais para a instrução de um processo? É abuso proceder a escutas telefónicas, durante mais ou menos tempo para se tentar entender o grau de participação de suspeitos ou arguidos na prática de crimes? Não, não é e nunca o foi se as regras processuais para tal forem cumpridas.

Então o que incomoda os preocupados do manifesto? Enfim, que um dia lhes bata à porta o infortúnio das diligências aludidas. E que pretendem afinal os mesmos? Limitar tais poderes e de tal modo que se tornem residuais e inúteis no final de contas. Quem não deve não teme e quem se mete na política actua de modo diverso dos magistrados, como se tem visto no resultado de tais escutas. Pode mesmo dizer-se que no ambiente político o regabofe ou a displicência entre "amigos" e compadres ou correligionários que anda a par da corrupção mais chã,  é moeda corrente e de troca entre tais pessoas que tendo o poder político por terem sido eleitos não compreendem nem aceitam que se possa sindicar esse à-vontade e a actuação que pode violar as regras de direito que eles mesmos instituíram. Para os outros, preferencialmente da oposição.

Esse é o aspecto mais negro das preocupações dos "manifestantes". Outro porém, que lhe subjaz e que subscreveria, nem sequer é expresso: precisamos de uma magistratura ( juízes e mp) algo diferente, mas no seu todo e com uma formação adequada a uma função que alguns magistrados nunca interiorizaram verdadeiramente ou se deixaram corromper pela rotina e pela embriaguês da perseguição próxima da policial ou do entendimento exclusivamente à charge do processo penal. 

Essa crítica, tenho-a feito aqui ao longo dos anos e continuo a fazer. 

Do que precisamos é de outro CEJ, com outra direcção e com outros formadores...e isso não vai ser fácil de encontrar porque não os há em quantidade suficiente e o "que vem de trás, toca-se para a frente".

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O MºPº segundo Cunha Rodrigues