domingo, agosto 29, 2010

Caso Freeport ou um advogado disfarçado de político

José Augusto Rocha é um advogado que escreve hoje no Público uma crónica de página inteira, no lugar do Provedor do jornal ( em férias, mas com substitutos atípicos).
Escreve sobre o caso estranho do jornalista José António Cerejo que teve o topete de se constituir assistente no caso Freeport para assim melhor conhecer o processo.

O advogado JAR. na qualidade de "vigilante cívico" de jornalistas transviados ( embora já fosse, na respectiva Ordem, presidente da comissão de direitos humanos ) , retira logo ao assistente a legitimidade para tal: tal coisa é nada menos do que...um escândalo!

E porquê? Porque o jornalista publicou depois do processo ser público, uma série de artigos ( é como quem diz, porque foram dois ou três e parou por aí... por motivos que se desconfia sejam de pura censura encapotada) sobre aspectos do processo que só alguém com acesso aos mesmos o poderia fazer.
Para JAR, o escândalo é esse. E não o é a circunstância de os jornalistas em geral não poderem aceder de imediato à consulta de tal processo, por motivos apresentados publicamente por alguns deles e conhecidos de todos: denegação da respectiva consulta do processo pelas autoridades judiciárias, com os mais diversos pretextos legalistas.
Portanto, o que incomoda mesmo JAR foi a esperteza do jornalista em aproveitar exactamente e legalismo processual para a consulta que devia ser pública, aberta, transparente, explicada devidamente e não o tem sido, como se sabe.
Em vez da clareza e rigor na citação de elementos e peças processuais, JAR indigna-se com a possibilidade processual, prática e legal de um jornalista constituído assistente poder consultar os autos de um processo que tal admite. Estranho? Nem por isso.

O que incomoda sobremaneira JAR não é que o jornalista JA Cerejo se tenha constituído assistente: é que escreva sobre o que viu nessa qualidade. Porque JAR acha que todos os jornalistas deveria estar no mesmo plano de igualdade, porque segundo ele " O acesso a documentos de um processo pela comunicação social é legalmente transparente e de acesso igual e não preferencial a qualquer jornalista". Esta passagem é deliciosa pelo que revela de ingenuidade, de alguma hipocrisia e de uma pouca má-fé, até, pelo seguinte motivo: se todos os jornalistas entendessem constituir-se assistentes no processo, nada nem ninguém o impediria. Porque o não fizeram? Respondam eles.
Mas por que razão particular, de decoro profissional ou ético, deveria um jornalista constituido assistente, eximir-se a publicar o que soube e objectivamente relata? A ética republicana, agora, já não se confunde com a lei?

Até nisso JAR implica: o jornalista celerado, atreve-se a publicar o que lhe interessa, mormente notícias de primeira página que continuam a denegrir a imagem do pequeno deus caseiro que alguns idolatram por motivos óbvios ( A. Santos dixit).
É essa verdadeira questão: o jornalismo de Cerejo estraga sempre a cereja que advogados como JAR entendem colocar no bolo governamental. E é exactamente por isso que JAR enquanto advogado, mesmo na pele de "vigilante cívico" , se indigna com a publicação pelo jornalista de uma opinião de dois juristas anónimos ( ambos magistrados de tribunais superiores) em que se dá conta da interpretação jurídica da nulidade relativa e não absoluta como JAR e outros defendem com unhas e dentes) do conteúdo do célebre dvd incriminatório e que foi considerado "nulo e de nenhum efeito" para a tranquilidade salvífica dos visados e que agora pretendem enterra até a memória vívida dos seus ecos.

Atente-se por isso na passagem exposta: " Afigura-se inacreditável que um jurista possa, perante um documento de prova absolutamente nulo e, por isso, inexistente no processo, defender e sugerir a maneira enviesada e de grave fraude à lei da sua indirecta relevância e que um jornalista de formação democrática possa ser o lugar e o meio de passagem de uma mensagem tão lesiva da vida privada, promovendo-a numa peça jornalística de ampla divulgação".
Esta pequena passagem do artigo fala por si, para qualquer jurista que preze a interpretação da lei, mas o que releva sobremaneira é a menção à coisa " tão lesiva da vida privada". Alguém se recorda do dvd que passou na tvi, "amplamente"? Alguém viu ou ouviu algo aproximado a factos ou alusões à vida privada de alguém? Não, ninguém viu e daí a má-fé deste escrito. O que se viu e ouviu e não se esquece, foi um suspeito, agora acusado de crime de extorsão, dizer alto e bom som, coisas graves sobre o comportamento público de governantes do nosso país. Privado, isto?
Só mesmo para quem tem a noção de que isto é uma pequena quinta em que alguns feitores levam vida de pequenos reizinhos, com a ajuda directa e permanente do pequeno deus caseiro que os acalenta.

O resto do artigo é um ataque soez e ad hominem à honra profissional do jornalista Cerejo. Uma coisa assim:

"JAC procura , no caso Freeport, um processo de selecção de informação e documentos e no ambiente próprio e privilegiado de comunicação, de que dispõe, a sua transformação em opiniões e mensagens políticas em relação a ele, num quadro em que os leitores não têm uma informação contextual e um envolvimento cognitivo suficiente e necessário de resistência a mensagens unilateralmente persuasivas, mesmo em relação a argumentos inconsistentes, com as suas predisposições culturais e políticas."

Nesta pequena frase se concentra todo o veneno hediondo da censura no Estado Novo. Basta ler os discursos de Salazar e Caetano sobre esta matéria para reconhecer neles todo o exacto argumentário que aqui exala.
José Augusto Rocha é democata? Se é, não parece.

9 comentários:

rita disse...

Não fossem os meios de hoje e a coragem de poucos e estaríamos bem perto do antes... povo informado/formado não interessa a pseudo governantes e seus bajuladores embevecidos, antes pelo contrário, porque a incompetência/interesses não lhes permite mudar de paradigma.

Carlos Enes disse...

O problema de JAR é, aproveitando a terminologia dele, de "envolvimento cognitivo". Adjectiva contra José António Cerejo porque não pode apresentar um único argumento de substância contra ele. José António Cerejo é jornalista e cumpre, por meios legais, o comando constitucional, que nos dá a todos o direito a sermos informados. Nada no código deontológico dos jornalistas dispõe em contrário, nem poderia - seria inconstitucional.

Sucede que JAR, até prova em contrário, deve, ele próprio, obediência ao Estatuto da Ordem dos Advogados, publicado no Diário da República como Lei, a Lei 15/2005, de 26 de Janeiro. Diz o art.º 107 ser obrigação de JAR e dos demais inscritos na OA "Não emitir publicamente opinião sobre questão que se saiba confiada a outro advogado, salvo na presença deste ou com o seu prévio acordo".

Com tantos advogados estranhos ao processo Freeport a falar dele, os advogados de assistentes e arguidos devem ocupar o tempo todo a autorizar este exército de colegas, de JAR ao bastonário, a botar faladura. Ou andarão todos a violar a Lei, em directo na televisão?

Sucede ainda que um JAR, um Júdice, ou mesmo um menos ocupado bastonário, não podem ter consultado ainda o processo, porque o DCIAP não tem "disponibilidade de secretaria"*. O signatário e outros jornalistas há muito apresentaram requerimentos e continuam à espera. Como bem refere o José, é para aprendermos a fazer como José António Cerejo, que andou melhor do que nós todos juntos.

Mas, se JAR, Júdice, bastonário e os outros não leram o processo, como alcançaram a "informação contextual", "suficiente" e "necessária", a não nos contaminarem com as suas "predisposições culturais e políticas"?


*http://portugaldospequeninos.blogspot.com/2010/08/o-beirao-do-portugal-dos-pequenitos.html

fernado satos disse...

No próximo comentário Augusto Rocha vai insurgir-se contra Bob Woodward e Carl Bernstein porquanto violaram os mais elentares principios do jornalismo ao darem origem ao processo que, através da sua intervenção no Washington Post, levou á destituição de Nixon.
O problema é que A.Rocha assume a postura de jurista-cidadão portador de valores e princípios, autêntica vestal da res publica, mas não conseque inscrever no seu escrito o rigor e a objectividade que o retirariam da galeria daqueles que têm a caneta presa nos interesses.
A.Rocha esquece-se de dizer que nos crimes de corrupção qualquer cidadão se pode constituir assistente- artigo 68 do CPP- e que todos os cidadãos são iguais, ou seja, não existem os jornalistas (a exautorar na praça pública, e que não podem ser assistentes, salvo se tiverem as nossas ideias) e os outros.
Ao arrepio da sua fina sensibilidade da ética, e dos altos valores que defende, escapou a A Rocha o esclarecimento de que o depoimento daquele que ouviu dizer é uma questão técnica-artigo 129 do mesmo Código- e que é coisa distinta da proibição de prova da gravação.
Afinal aonde estão os valores e princípios: com o jornalista que no exercicio de um direito assume a sua tarefa ou o escriba que conta apenas o que lhe convem.

Streetwarrior disse...

Boas José.
Peço desculpa por só agora responder mas só agora tive tempo.
Aqui há dias o José disse...
"Não concordo com esta frase: "Decretos-Lei não são lei".

Decretos-lei são mesmo leis e nunca se transformam em leis porque não precisam disso..."

Será José?
Ou será...
Estatutos legislativos e decretos - lei, são actos do governo ou Assembleia da República que dizem que temos que cumprir, quer sejamos indivíduos, empresas ou corporações, mas na verdade. não temos que os cumprir, pois eles não são lei, possuem a força de lei e isso não é lei. Ora o que é a força da lei? A força da lei é dada por nós através de consentimento...

Tenho a 2ª parte do Portugal visto como uma empresa já subido, gostaria que visse José e claro, mais uma vez a sua opinião.

Nuno

josé disse...

Street:

A nomenclatura dos actos legislativos é assunto de direito administrativo e já vem do tempo de Marcelo Caetano, pelo menos. É da sua autoria o manual que muitos ainda utilizam e copiam.

Leis, decretos-leis e regulamentos são categorias de actos legislativos bem precisos e definidos.

A Lei é um instrumento com origem exclusiva na Assembleia da República. O Decreto-Lei tem origem governamental, por deferimento de competência. Isto assim grosso modo.
No entanto, ambos têm o mesmo valor vinvulativo.

Aqui há uns anos o prof. Freitas do Amaral, quando ainda não era candidato a presidente de coisa algma, escreveu um pequeno livro sobre a génese dos actos legislativos. Interessante.

Streetwarrior disse...

Boas josé.
Tentei procurar alguma das coisas escritas por F.A e nada encontrei.
Recorda-se do titulo ou de alguma forma por onde procurar mais especificamente?
Obrigado pela sua opinião, mais tarde irei fundamentar melhor acerca do que escrevi sobre os decretos Lei.

"Interessante"...o quê? o meu artigo ou a situação em sí da altura de quando F.Amaral escreveu o livro, fiquei na dúvida.
Depois direi quando subir a 3ª parte.

Até já.
Nuno

josé disse...

Interessante, o livro de F.A. Não o tenho aqui à mão, mas amanhã já lhe posso dizer alguma coisa, porque o tenho na estante de casa.

Streetwarrior disse...

ok, Obrigado.

Nuno

josé disse...

Afinal o livro de F.A. não é o que pensava.

Tinha ideia que havia um livro específico sobre esse assunto mas não o tenho.

O que tenho é um artigo de Marcelo Rebelo de Sousa na revista Legislação, de Abril-Junho de 1991 que fala no assunto de modo muito preciso e esquemático em duas dúzias de páginas.

E reafirma o que escrevi.

O Público activista e relapso