O jornal Público de hoje explora em duas páginas o estranho caso da licenciatura de Miguel Relvas, uma espécie de "remake" do filme que já vimos em tempos: um político profissionalizado e que nada mais sabe fazer, nem sequer estudar, tira um curso superior, em regime acelerado e com manigâncias que não consegue explicar a quem o ouve perorar sobre valores, princípios, regras de conduta democrática, etc. etc. e sem esquecer o principal: estas pessoas têm uma influência na nossa vida colectiva descomunal. Mandam, ponto final. Daí a importância destas coisas e a legitimidade para se investigarem e publicarem.
O caso da licenciatura de Miguel Relvas tem já vários pontos de contacto com o outro, do sem-vergonha que anda por Paris.
O assunto, desta vez, começou num jornal marginal, o Crime, e só agora saltou para as primeiras páginas. Há um progresso notório, desta vez: na outra ocasião o assunto tinha começado no blog Do Portugal Profundo, de António Caldeira ( que mais uma vez e com este novo caso faz o que os jornais não conseguem fazer) e só muitos, mas mesmo muitos meses depois ( o sem-vergonha andava em estado de graça, nessa altura longínqua do ano de 2006...) é que um jornalista do Público, José António Cerejo ( sempre vilipendiado pelos visados) lhe pegou e conduziu ao escândalo da Páscoa de 2007, abafado pelos poderes que estavam e estão, porque não lhes interessava investigar e averiguar o percurso de um aldrabão. No fundo, identificavam-se com a personagem.
Conta agora o Público, neste caso que não precisou de um ano para se dar à estampa que "Começou cedo na JSD e aos 24 anos foi eleito pela 1ª vez deputado para a A.R. No registo biográfico entregue no Parlamento, Miguel Relvas escreveu na alínea das habilitações literárias: ´estudante universitário, 2º ano de Direito´"
Pelo que o Público diz, tal menção é falsa. Nem sequer o primeiro ano tinha completado. Mas irrelevante para o caso, a não ser para dar um retrato aprimorado e póstumo da elegância moral da personagem. Pecados velhos, mas nada que se assemelhe a uma completa falsificação de licenciatura que constava de um documento em tudo idêntico, com depósito na A.R. e cujo original desapareceu.
É verdade: o original da ficha de registo biográfico do deputado José Sócrates, apresentada em 1992 e que existiria na A.R. à guarda de um "arquivo histórico" que a mesma A.R. guarda e cujos responsáveis podem identificar-se, desapareceu misteriosamente, na altura da Páscoa de 2007. Nessa ficha original cuja cópia existe figura o mesmo como tendo habilitações literárias de "Engenharia Civil" . Na profissão constava a honrosa designação de "engenheiro", título usado para o tratamento formal. Em vez desse original, na altura do escândalo surgiu um apócrifo com uma menção menos pomposa: uma redução para "engenheiro técnico" e atrás da menção à tal "engenharia civil" e imediatamente entalado à frente dos dois pontos, alguém conseguiu intercalar a menção salvífica e musical: "Bach." Não deu para mais, mas nem por isso se ouviu o requiem, antes um magnificat amplificado pelos próceres e sabujos que nessa época eram legião, incluindo catedráticos como Freitas do Amaral que elogiava amplamente as qualidades do dito. Todos sabiam e conheciam essa vergonha que nunca admitiriam a outros seus alunos. Ainda assim, contemporizaram, desvalorizaram e esqueceram. Em troca de prebendas ou cargos.
José Sócrates nunca foi incomodado com essa falsificação de documento, crime público de cuja autoria evidentemente é suspeito. O DCIAP, no fantástico inquérito que realizou e que se recusa agora a reabrir, nem lhe fez menção sequer. E contudo o crime é público, ocorreu em data que não evidencia qualquer prescrição e a investigação do mesmo passaria por dois momentos: saber onde estava o documento original e à guarda de quem estava. Quem acedeu ao mesmo nessa altura, ou seja quem o pediu e levou para qualquer lugar e quem o entregou depois disso.
Tais factos, na altura e agora ficaram em águas de bacalhau. O jornalismo caseiro serventuário de alguns apaniguados não deram destaque e José Sócrates lá continuou a legislatura, conduzindo-nos aonde chegamos, com a complacência desses poderes fáticos e com os custos que agora suportamos.
Na época de 2006-2007 quase ninguém estava interessado em apear José Sócrates por tão pouca coisa, afinal. Que é isso de uma licenciatura marada obtida em fraude e com aldrabices da universidade que a concedeu? Nada de nada como agora se vê e é objecto da atenção dos jornais, novamente.
Mas nenhum deles que agora se esforça por alimentar mais este escândalo vai repristinar o outro, bem maior e que permanece activo. Alguém está a imaginar o inefável José Alberto Carvalho na TVI e a ultra-inefável Ana Lourenço a repescarem o assunto?
Hipocrisia? Não. Apenas falta de objectividade, rigor e credibilidade. Para quem é, bacalhau basta.