domingo, junho 14, 2015

A radiotelevisão nacional

Artigo de Lucy Pepper no Observador:

O que é que andam a fazer exactamente os canais de TV terrestre em Portugal?

Não conheço quase ninguém que ainda acompanhe a sua programação, para além do telejornal da noite, o que já é um enorme desafio. Quem é que, às oito da noite, tem uma hora e meia ou duas horas para se sentar a ver tantas notícias, embora de facto não sejam muitas notícias, mas apenas três ou quatro histórias, espremidas até a última gota para encher a primeira hora (o contrário da ideia de soundbites).

Há reportagens de tiro rápido, filmadas na rua por jornalistas sem fôlego, sempre com “vox pops” de demasiadas pessoas com demasiadas coisas para dizer, mas que nunca acrescentam substância ou informação à notícia. No fundo, o vox pop da rua é o equivalente das caixas de comentários “below the line”. Depois segue o futebol, que enche o resto da programação. Poucos outros desportos aparecem.

Umas vezes, o telejornal fica num canto da sala como papel de parede. Outras vezes, é simplesmente ignorado.

Ao fim da noite, aparecem os tudólogos, sempre as mesmas caras cada semana, sempre nas mesmas discussões (ou não-discussões) sobre pormenores que pouco interessam à maior parte da gente, que naturalmente não vive obcecada pela política.

As horas do dia enchem-se com “shows” fúteis, feitos para velhotas pouco curiosas e capazes de se pasmarem perante muita coisa. As audiências no estúdio são compostas de mulheres de meia-idade ou velhotas com penteados grandes e pullovers justos, que seguem as deixas dos apresentadores para se rirem ou fazerem caras tristes nos sítios certos.


Depois, aos fins de semana, há os programas que seguem as festas dos santos pelo país todo, com apresentadores-palhaços entusiasmados pelos produtos do região, entrevistando os produtores de enchidos e cerâmica, tal como fazem em todas as cidades, todas as semanas, como se ainda ninguém soubesse o que é um chouriço ou um prato decorado. Quando a música pimba começa a tocar, a multidão salta devidamente e bate palmas, com as velhotas aparentemente indiferentes ao facto de o cantor estar apoiado por bailarinas, moças com idade para serem suas netas, e que não dançam muito bem mas que, praticamente nuas, mexem bem os cabelos, os rabos e os dentes para as câmaras.

A pior praga são as telenovelas, um disparate emitido durante horas, horas e horas em todos os canais terrestres durante a semana toda. Aos guiões falta quase tudo, de timing a interesse. Tudo consiste em histórias de homicídio, vingança e discussões de dinheiro e/ou amantes e, sem qualquer explicação, toda a gente parece ter criados que usam fardas. A representação é escandalosamente horrível, dando à nação (e a todas as nações onde se vendem as telenovelas portuguesas) a ideia de que a ficção televisiva é isto. Mas isto não é ficção televisiva. Nem é representação. Os solilóquios são especialmente hilariantes: os actores entram num quarto e falam com eles próprios. É que na telenovelalândia portuguesa não há diálogos internos expressos através da representação, porque ninguém sabe representar.

Esta infantilização do país que se chama televisão é pontuada por pausas para publicidade que são mais longas do que os programas, e durante as quais perdemos a vontade de viver, depois de vermos o mesmo anúncio três ou quatro vezes. Ou desligamos a televisão ou enfiamos um tijolo pelo écran.

Há, obviamente, uma audiência para estas tretas do dia e da noite… por enquanto. As pessoas que veem e gostam disto não conhecem outras coisas, e continuam a ver e a gostar, e a acreditar que isto é que é televisão. As velhotas sem curiosidade devem gerar rendimentos suficientes para que os canais continuem. Para já. Mas no futuro, o que poderá acontecer?

O que será quando a geração das velhotas sem curiosidade desaparecer, para ser substituída por uma geração mais sofisticada que nunca viu a televisão terrestre porque está agora a ver os canais americanos? Na televisão terrestre, não há uma evolução visível nas espécies de programação feitas. Não há ficção nacional (não… repito, telenovela não é ficção, é treta), não há comédia que valha uma menção, os documentários são tão raros como os dentes de uma galinha, e quando existem são entediantes até chega.

Um dia, a pimbalhada vai deixar de cativar as pessoas, ninguém ligará mais para as linhas de valor acrescentado para ganhar €1000, os “game shows” deixarão de receber autocarros das aldeias e talvez, um dia, as pessoas comecem a não apreciar a humilhação das audições dos “talent shows”.

Não haverá rendimento. E a televisão terrestre deixará de ser viável.

O que é que eles julgam que estão a fazer exatamente?

15 comentários:

zazie disse...

Um mundo que praticamente desconheço e de que me livrei desde que vendi as televisões.

jkt disse...

É o que vi num comentário do observador.

Portugal é um País de velhos para velhos.

Floribundus disse...

pertenço à velhada de 84 que detesta tv

a hora das refeições vejo o canal 24h kitchen para ter consciência do que não devo comer

no rectângulo nada é antigo tudo é velho e revelho

depois de ver outras tvs fica-se com a noção que estas são uma merda insuportável mesmo de passagem ou por engano

quando me iniciei na indústria no final de 50 inicio de 60
havia uma moça alcunhada de 'coxas, cu e mamas'

actualmente faria inveja a muitas que se rebolam enquanto uns pimbas fingem que cantam

Lura do Grilo disse...

Também, se vivesse sozinha, tentaria vender as televisões. Aquilo é horrível: depois são papel químico umas das outras.

A competição tornou-se uma corrida para o inconcebível.

Zephyrus disse...

É interessante comparar a grelha da RTP dos anos 70 e 80 com a actual.

No passado a RTP exibia as melhores séries americanas e inglesas. E os melhores filmes de Hollywood. Havia cinema europeu e durante uma fase a RTP2 passou até o que de melhor se fez no cinema erótico dos anos 70 e 80.

Na programação infantil, estava a marca da influência anglo-saxónica e recordo a Rua Sésamo e inúmeros clássicos dos desenhos animados... importados dos EUA, Reino Unido e também Espanha.

Houve documentários de produção nacional interessantes.

As novelas brasileiras dos anos 70 tinham grandes actores que vinham do teatro e do cinema e havia qualidade. A prova disso é que algumas chegaram a ser exibidas nos EUA e na Europa dita «civilizada». Houve produções interessantes como «Gabriela», «O Bem Amado», «Escrava Isaura», «Dona Beija», «Vale Tudo».

Nos EUA e pela Europa fora também exibem telenovelas do Brasil mas costumam ser muito selectivos e só exibem as que têm mais qualidade. Recordo que a «Xica da Silva» fez muito sucesso no mundo «civilizado».

Em Portugal chegou-se a um ponto em que as telenovelas ocuparam o espaço das séries, filmes, cinema e programação infantil. A SIC tinha as brasileiras da Globo, que começou a exibir a partir de meados dos anos 90, e a RTP ficou com as da Rede Record, SBT ou com as mexicanas.

Depois vieram os programas de variedades que ocupam o espaço da manhã e da tarde com cantores pimba e festivais do chouriço.

A RTP nos tempos da outra senhora tinha uma qualidade que hoje não tem e o serviço público é inexistente.

Zephyrus disse...

Existem 4 grandes produtores de telenovelas no mundo.

México, Brasil, Portugal e Argentina.

Espanha faz ficção... com uma qualidade que nós não temos pois os espanhóis têm efectivamente séries.

As telenovelas portuguesas copiam com frequência guiões e cenas de telenovelas da América Latina. Alguém denuncia isto? Ninguém.

Tinha muitas colegas de faculdade que não perdiam os episódios dos Morangos e até gravavam. E viam as novelas da noite. Sinceramente, não achava normal e saudável que sendo alunas universitárias perdessem tempo com aquilo.

Zephyrus disse...

Mas podemos ir até à imprensa.

Eu compro a Economist. Todas as semanas. Em língua portuguesa não temos nada assim.

Na Sábado ou na Visão encontrei com frequência erros científicos grosseiros. Fiquei farto dos guias de restaurantes e de esplanadas, e dos artigos gastronómicos ou listas de praias, spas e hotéis.

Não há bons artigos de economia ou ciência, com dados, números, gráficos, documentos. Há polémicas e sensacionalismos.

Zephyrus disse...

E desisti do Expresso.

Um saco cheio de lixo. Anexos e mais anexos com anúncios de condomínios, os guias de restaurantes e esplanadas, artigos de empresas que na realidade vivem encostadas ao Estado, a revistinha da TV, brindes diversos...

A imprensa anglo-saxónica não tem nada disto.

Só compro o Sol ou o Jornal de Negócios quando trazem algum artigo de interesse. O Público está de fugir e deixei de comprar há anos.

José disse...

É em vão que se pode procurar qualquer artigo de interesse real na imprensa portuguesa.
Não vale a pena porque não existem. É tudo muito fraco e superficial. O melhor ainda são algumas pequenas reportagens sobre curiosidades avulsas.
Artigos de fundo e bem estruturados como se podem encontrar nas revistas francesas ou americanas, não há.

Em informação geral compro revistas estrangeiras, como a L´Obs ou a Marianne que são de esquerda mas têm artigos fabulosos e agora o jornal Le Un, magnífico e único no formato e conceito.

Em hifi compro quase tudo o que vale a pena, inglês, francês e americano.

Compro as revistas francesas de História que são várias e as espanholas, de vez em quando.

luis barreiro disse...

O melhor combate é instalar o xbmc.

Merridale and Ward disse...

A televisão em Portugal é degradante.

BELIAL disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
BELIAL disse...

Concordo inteiramente com a autora, que já havia lido (leio-a sempre) no OBSERVADOR.

Se não fosse o cabo, que também não é famoso, a tv era um móvel decorativo, aberto quando em vez para ver dvds (nos últimos 30 anos, fui 2 vezes ao cinema...)

muja disse...

E a pergunta é: temos o que merecemos/queremos ou somente o que há?

Kaiser Soze disse...

Esta é uma discussão muito interessante mas sinto-a pedante, as mais das vezes.
É como quando o Acontece acabou; a indignação foi claramente superior às audiências. Ou a obra primorosa que é a Guerra e Paz que ninguém leu.

É cool parecer intelectual.

O Público activista e relapso