Artigo de Lucy Pepper no Observador:
O que é que andam a fazer exactamente os canais de TV terrestre em Portugal?
Não conheço quase ninguém que ainda acompanhe a sua programação, para além do telejornal da noite, o que já é um enorme desafio. Quem é que, às oito da noite, tem uma hora e meia ou duas horas para se sentar a ver tantas notícias, embora de facto não sejam muitas notícias, mas apenas três ou quatro histórias, espremidas até a última gota para encher a primeira hora (o contrário da ideia de soundbites).
Há reportagens de tiro rápido, filmadas na rua por jornalistas sem fôlego, sempre com “vox pops” de demasiadas pessoas com demasiadas coisas para dizer, mas que nunca acrescentam substância ou informação à notícia. No fundo, o vox pop da rua é o equivalente das caixas de comentários “below the line”. Depois segue o futebol, que enche o resto da programação. Poucos outros desportos aparecem.
Umas vezes, o telejornal fica num canto da sala como papel de parede. Outras vezes, é simplesmente ignorado.
Ao fim da noite, aparecem os tudólogos, sempre as mesmas caras cada semana, sempre nas mesmas discussões (ou não-discussões) sobre pormenores que pouco interessam à maior parte da gente, que naturalmente não vive obcecada pela política.
As horas do dia enchem-se com “shows” fúteis, feitos para velhotas pouco curiosas e capazes de se pasmarem perante muita coisa. As audiências no estúdio são compostas de mulheres de meia-idade ou velhotas com penteados grandes e pullovers justos, que seguem as deixas dos apresentadores para se rirem ou fazerem caras tristes nos sítios certos.
Depois, aos fins de semana, há os programas que seguem as festas dos santos pelo país todo, com apresentadores-palhaços entusiasmados pelos produtos do região, entrevistando os produtores de enchidos e cerâmica, tal como fazem em todas as cidades, todas as semanas, como se ainda ninguém soubesse o que é um chouriço ou um prato decorado. Quando a música pimba começa a tocar, a multidão salta devidamente e bate palmas, com as velhotas aparentemente indiferentes ao facto de o cantor estar apoiado por bailarinas, moças com idade para serem suas netas, e que não dançam muito bem mas que, praticamente nuas, mexem bem os cabelos, os rabos e os dentes para as câmaras.
A pior praga são as telenovelas, um disparate emitido durante horas, horas e horas em todos os canais terrestres durante a semana toda. Aos guiões falta quase tudo, de timing a interesse. Tudo consiste em histórias de homicídio, vingança e discussões de dinheiro e/ou amantes e, sem qualquer explicação, toda a gente parece ter criados que usam fardas. A representação é escandalosamente horrível, dando à nação (e a todas as nações onde se vendem as telenovelas portuguesas) a ideia de que a ficção televisiva é isto. Mas isto não é ficção televisiva. Nem é representação. Os solilóquios são especialmente hilariantes: os actores entram num quarto e falam com eles próprios. É que na telenovelalândia portuguesa não há diálogos internos expressos através da representação, porque ninguém sabe representar.
Esta infantilização do país que se chama televisão é pontuada por pausas para publicidade que são mais longas do que os programas, e durante as quais perdemos a vontade de viver, depois de vermos o mesmo anúncio três ou quatro vezes. Ou desligamos a televisão ou enfiamos um tijolo pelo écran.
Há, obviamente, uma audiência para estas tretas do dia e da noite… por enquanto. As pessoas que veem e gostam disto não conhecem outras coisas, e continuam a ver e a gostar, e a acreditar que isto é que é televisão. As velhotas sem curiosidade devem gerar rendimentos suficientes para que os canais continuem. Para já. Mas no futuro, o que poderá acontecer?
O que será quando a geração das velhotas sem curiosidade desaparecer, para ser substituída por uma geração mais sofisticada que nunca viu a televisão terrestre porque está agora a ver os canais americanos? Na televisão terrestre, não há uma evolução visível nas espécies de programação feitas. Não há ficção nacional (não… repito, telenovela não é ficção, é treta), não há comédia que valha uma menção, os documentários são tão raros como os dentes de uma galinha, e quando existem são entediantes até chega.
Um dia, a pimbalhada vai deixar de cativar as pessoas, ninguém ligará mais para as linhas de valor acrescentado para ganhar €1000, os “game shows” deixarão de receber autocarros das aldeias e talvez, um dia, as pessoas comecem a não apreciar a humilhação das audições dos “talent shows”.
Não haverá rendimento. E a televisão terrestre deixará de ser viável.
O que é que eles julgam que estão a fazer exatamente?