quarta-feira, outubro 30, 2019

Abusos de poder e crimes no Estado

A revista Sábado entrevistou Carvalhão Gil um antigo agente do SIS que foi condenado por corrupção e violação de segredo de Estado numa pena de sete anos de prisão.

Para se defender de tal condenação ataca agora os serviços a quem serviu durante anos e revela algo que é muito grave se for verdadeiro: o SIS actua à margem da lei, efectua intercepções em comunicações privadas sem suporte legal suficiente e tem mesmo um sistema de computadores, um servidor secreto onde guarda a informação que não pode ser divulgada sob pena de se extinguir tal serviço tal é a enormidade da ilegalidade.

No fundo, este antigo agente do SIS revela o que o americano Edward S. revelou: os serviços secretos portugueses cometem crimes graves de intromissão na vida privada de cidadãos, sem qualquer motivo legalmente justificativo e violam as leis do país que protegem tais cidadãos.

Se for verdade isto é muito piro que o caso de Tancos, que aliás foi considerado gravíssimo por tudo quanto é komentador nacional.
O caso de Tancos à beira disto é uma brincadeira entre polícias que nem deveria ter chegado onde chegou e só lá foi parar por motivos ínvios e esconsos que um dia provavelmente serão melhor esclarecidos.

Só resta perguntar onde anda o MºPº nestas coisas. Será que há um inquérito para apurar estas ilegalidades e crimes cometidos, alegadamente, pelos serviços secretos nacionais, com a complacência, no mínimo e cumplicidade provável dos seus directores presentes e passados? E tais directores podem continuar por aí a serem nomeados para tribunais superiores para julgarem pessoas?

Se não há um inquérito conduzido por magistrados experientes e de isenção à prova de bala e técnicas de investigação próprias, sem passar pela PJ necessariamente, então algo vai muito mal no Ministério Público português. E acho que vai...




Por outro lado, o entrevistado defende-se dizendo que foi condenado por ter sido julgado "à porta fechada", alegadamente em função de revelação de segredos de Estado que viriam a efectuar-se em audiência.
Não se compreende, de facto: se eram segredos de Estado não podiam ser revelados e se não eram não se entende a decisão de excluir a publicidade de um julgamento deste género que interessava obviamente o público e o povo em nome de quem os tribunais administram justiça.
Não se percebe, de facto.

Como não se percebe o que aconteceu ontem no TCIC onde José Sócrates se encontra a prestar declarações e a ser interrogado pelos magistrados e advogados que assim o requeiram.

Por causa disto que foi noticiado hoje no Observador:

Era um interrogatório que deveria ter ficado marcado pelas explicações do arguido José Sócrates sobre os alegados favorecimentos ao Grupo Lena mas que acabou por ter como principal protagonista o juiz Ivo Rosa e a sua revolta contra as notícias sobre o primeiro dia do interrogatório do ex-primeiro-ministro. O magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal zurziu nos advogados, acusou-os de serem as fontes da comunicação social e ameaçou-os com buscas e apreensão dos telemóveis feitas pela Polícia da Segurança Pública na própria sala do tribunal.

(...)

Além de acusar os advogados presentes de serem as fontes dos jornalistas, Ivo Rosa acabou mesmo por dar uma lição de moral ao afirmar que os causídicos que tinham passado informação aos jornalistas sobre o primeiro dia do interrogatório a José Sócrates deveriam pensar na sua profissão porque enquanto profissionais do foro não estavam a cumprir os seus deveres de cumprirem o sigilo da diligência.

Com José Sócrates sentado à sua frente a ouvir atentamente as suas palavras, o juiz Ivo Rosa ainda perguntou: “Quem se acusa?”

Mesmo após uns pesados, sentidos e igualmente revoltados trinta segundos de silêncio dos advogados dos 28 arguidos presentes na sala, nenhum mexeu os lábios. Pior: alguns dos juristas mais experientes na sala ficaram mesmo ofendidos pela atitude do juiz de instrução. Um magistrado que, refira-se, tem sido elogiado de forma quase unânime pelas defesas.

Pior: Ivo Rosa ameaçou mesmo os advogados com revistas executadas pela Polícia da Segurança Pública no próprio local para apreensão dos telemóveis. O objetivo era evitar as comunicações com o exterior para evitar o que foi apelidado de jornalismo ao segundo.


Isto, salvo o erro é um claríssimo caso de abuso de poder por um juiz de direito. E ressalvo o erro por um motivo: 
Este processo já não está em segredo de justiça e a publicidade dos actos de instrução que decorrem, como é o caso do interrogatório do arguido tem que se garantir a não ser que se justifique devidamente quaquer sigilo ou exclusão de publicidade. 

Foi justificado devidamente pelo juiz, a não autorização de presença de jornalistas aliás constituídos constituídos assistentes no processo?
Pelos vistos e segundo se informou no outro dia, uma jornalista do SOl viu deferido por decisão do tribunal da Relação o direito a assistir ao interrogatório. 
E o direito a relatar o mesmo? Será que existe na mesma? Se há publicidade para uns, comam todos, seria caso para dizer, mas parece haver decisões contraditórias na Relação e pelos vistos outro jornalista foi impedido de exercer tal direito. 
Por outro lado segundo a notícia do Expresso, mal redigida, a decisão da Relação ainda não transitou em julgado...não esclarecendo se tal se ficou a dever pura e simplesmente ao facto de ainda não constar oficialmente no processo, por não ter ainda "baixado" o recurso. 
Seja como for é público e notório que tal jornalista do SOl pode assistir a tais diligências de prova. 
E pode relatar as mesmas se o processo não for considerado sigiloso. Como parece que não é.

Quanto ao demais: parece que houve pessoas na sala de interrogatório que gravaram o depoimento ou teor de declarações prestadas, através de telemóveis e passaram tal informação aos jornais, "cá fora". 

Será ilegal tal prática ou não é e o juiz extravasou os seus poderes e abusou criminalmente dos mesmos?

Parece-me que sendo o processo sujeito a restrições de publicidade, com a excepção apontada, tal restrição pode efectivamente condicionar o relato público de diligências.

Mas foi mesmo assim? Alguém informou devidamente? Segundo o CM de ontem  o que sucedeu foi "jornalistas barrados", mas como a informação é da jornalista "pente-fino" vale o que vale, ou seja pouco porque informa menos. 

Assim, terá que se evidenciar através do conteúdo do despacho qual o sentido da proibição de presença dos jornalistas: se foi em consequência de exclusão de publicidade ou se foi por outro motivo cuja sindicância se pode requerer...

Vejamos então como se deve configurar este problema que o jornalismo nacional de pente fino não alcança: 

A publicidade do processo, actualmente e há mais de dez anos a esta parte, é a regra. A exclusão de publicidade é a excepção. No Inquérito há vários actos que estão excluídos de tal publicidade.
Porém, na fase de instrução tal já não ocorre. Como se escreve aqui neste apontamento universitário Nuno Brandão, que era então, em 2008,  assistente em Coimbra) :

 Donde, a instrução é pública e não é possível sujeitá-la a segredo externo, nem mesmo quando o arguido o requeira expressamente . 
Nesta hipótese não parece ser possível a aplicação analógica do disposto no n.º 2 do art. 86.º, que concede ao arguido, em inquérito, o direito de requerer ao juiz de instrução a sujeição do processo a segredo de justiça em virtude de a publicidade ser prejudicial aos seus direitos. 
A analogia legis pressupõe a verificação de uma lacuna, que aqui não se vislumbra ter existido, dado que é nítida a intenção do legislador em circunscrever o segredo à fase do inquérito. 
Trata-se, portanto, de um silêncio legislativo que não configura uma omissão inconsciente de regulação, mas antes um propósito deliberado de não estender o regime excepcional de segredo para lá da fase do inquérito. Acresce ainda que precisamente por a publicidade aparecer como a regra e o segredo como a excepção, está vedada a referida aplicação analógica (art. 11.º do Código Civil).

E também noutros escritos se coloca o problema da legitimidade de intervenção do JIC na definição do sigilo, na fase de inquérito, ou seja, nem sequer na instrução!

A razão principal deste entendimento, até neste caso concreto do processo Marquês é precisamente o entendimento dos arguidos em fazer da instrução um prè-julgamento porque consideram que este juiz de instrução lhes oferece mais garantias de isenção do que qualquer outro. 
Assim, mais uma razão para que esta instrução fosse pública e bem pública. 

Mas...afinal, foi restrita a publicidade ou não? E com que fundamento, já agora?! Se não foi devidamente restrita então... subscrevo o que vem aqui escrito e os presentes podem gravar e passar a outrém tal informação: 

Os órgãos de comunicação social podem fazer a narração circunstanciada do teor dos actos processuais ou reproduzir os seus termos, desde que estes não se encontrem cobertos pelo segredo de justiça ou a cujo decurso for permitida a assistência do público em geral. Assim está previsto nos artigos 86º, nº 6, alínea b) e 88º, nº 1 do Código de Processo Penal. Sobre os jornalistas impende o direito de informar. Por sua vez, os cidadãos gozam do direito a serem informados.

Logo, se o juiz Ivo Rosa não respeitou tais parâmetros legais poderá ter cometido um crime. Porque tem obrigação de saber que não poderia fazer o que eventualmente terá feito. O abuso de poder, nesse caso é grave. 

O que se passou ontem e anteontem no TCIC é grave por vários motivos. Espero que os juristas presentes o tenham percebido.

ADITAMENTO:

No CM de hoje esta pequena crónica, sobre o assunto em causa,  vale a leitura pelo que revela de falta de senso jurídico e não só.


Num livro recente de Ernesto Manguel que comprei precisamente por recomendação escrita deste cronista de pequenos fait-divers literários e afins, deparei com uma passagem que define estas pessoas literatas:

"Para os leitores, o mundo revela-se frequentemente através das páginas dos livros. (...) Os leitores sempre souberam que os sonhos da ficção engendram o mundo a que chamamos real.(...) Aprendi a minha experiência no mundo - amor, morte, amizade, perda, gratidão, desconcerto, medo, angústia, tudo isto e a minha própria identidade em mutação- com personagens imaginárias que conheci nas minhas leituras"....

Comparem-se estes pequenos apontamentos do livro de Manguel ( Monstros Fabulosos) com o escito acima e ficamos com a ideia precisa de que os serviços de informações do SIS são algo do domínio de uma ficção e que as leis que temos, republicanas, democráticas e laicas são apenas uma ficção para estes espiões de meia-tigela que temos em arquivo.

Crimes? Não existem porque os espiões só os cometem se forem apanhados.

O excesso de leitura conduz a isto: uma miséria intelectual travestida de sabedoria de conhecimento livresco.
A realidade? Que importa, mesmo se for mais estranha que tal ficção?

Que pena! 

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