domingo, março 24, 2024

O Ministério Público na fronteira política

 Esta notícia do Público suscita várias perplexidades que se concentram numa: o Ministério Público na defesa da legalidade dos interesses difusos, neste caso ambientais, sobrepõe-se a decisões políticas em nome de uma ideologia política concentrada numa legalidade discutível e penosa para o senso comum. 

O mesmo argumento poderia ser usado no caso Influencer em que o desfecho se concentra na manipulação política do Executivo de instrumentos legais do mesmo género, por concluir que afinal podem atentar contra o mesmo senso comum. A diferença gritante, mesmo ululante é apenas a de que no caso Influencer o tráfico de influências e abuso de poder, para além do mais, é evidente e criminosa até ao mais alto nível, na minha opinião e neste caso não será assim.

A contradição nestas situações é também evidente uma vez que é o poder político que legisla e ao mesmo tempo tenta contornar as próprias regras do que legislou, por verificar que atentam contra o sentido geral da comunidade e dos bens públicos em presença. Sinal inequívoco de incompetência legislativa e sem válvulas de escape que prevejam o que o deveria ser. 

Leia-se o artigo para se compreender melhor:


Há um projecto de construção de uma central solar que se afigura ser a maior da Europa, em Santiago do Cacém, no Alentejo. 

Uma associação cíviva, das que lutam pelas causas ambientais com projecto político escondido e omisso, contestou desde logo a iniciativa e apresentou queixa e acção contra o poder político que licenciou tal empreendimento gigantesco que abrange cerca de mil hectares ( mil vezes dez mil metros) e a implantação de dois milhões de painéis fotovoltaicos. Tudo para produzir energia "limpa" com destino a consumo, eventualmente doméstico- cerca de 430 mil residências podem usufruir de tal produção energética solar. 

O Ministério Público no âmbito das suas atribuições cíveis de defesa de interesses difusos, ambientais, analisou o projecto e as condições de licenciamento do mesmo e conclui que foram violados pelo próprio Estado licenciador, "um conjunto alargado de instrumentos de gestão territorial e de regimes jurídicos de protecção de recursos naturais", incluindo por exemplo o abate de eucaliptos, mais de um milhão deles, os tais que secam tudo à sua volta e são contestados como monocultura em determinadas regiões, por causa dos mesmíssimos argumentos agora usado de modo camuflado: servirem interesses privados. 

Para além disso sobram as tecnicalidades do costume em que os juristas do Ministério Público podem ser exímios no respectivo uso processual: o referido leque alargado de instrumentos de gestão territorial num sítio pejado de eucaliptos afinal inclui a transformação do terreno de eucaliptal em parque solar em violação de regras definidas como Reserva Ecológica Nacional. Foi por estas e por outras que se inventou no tempo de José Sócrates, a famigerada designação de "PIN" para abranger lugares em que os tais instrumentos de gestão territorial impediriam a construção de empreendimentos entendidos como necessários e convenientes para o bem estar geral das pessoas e portanto para manter um ambiente com a qualidade exigível sem prejudicar o bem estar geral, desígnio político central na actividade do executivo. 

Os "pareceres negativos das várias entidades como o ICNF, o LNEG e uma directora de impacte ambiental da APA" não foram suficientes para evitar ou inviabilizar o empreendimento e por isso o Ministério Público entrou na liça em defesa da legalidade estrita, desgarrado completamente dos considerandos de oportunidade que no direito penal não são negociáveis por força da lei,  mas em direito civil e administrativo evidentemente que o podem e devem ser, principalmente quanto estão em jogo interesses da comunidade conflituante como são evidentemente estes que se apresentam. 

Neste caso não o foram e o Ministério Público actuou em modo autónomo e independente do poder político, como deve ser mas nem sempre será aconselhável que o seja porque depende do poder político executivo, desde logo dos departamentos governamentais para sustentar acções do género. 

Os processos e dossiers administrativos servem para se ponderarem previamente os interesses em jogo e analisar os factos, leis e adequação e proporcionalidade das actuações. Pelos vistos foi sempre a abrir...e sem tais considerandos, sequer contemplados por quem decidiu. 

Torna-se relativamente simples e é fácil impugnar judicialmente, pelo Ministério Público, decisões político-executivas que não respeitem estritamente o estipulado no "conjunto alargado de instrumentos de gestão territorial e regime jurídico de protecção de recursos naturais"  

 A questão porém, mantém-se: deve o Ministério Público fazê-lo à outrance, sem outra legitimidade que não seja a de defensor de interesses difusos em prol da comunidade que eventualmente não os queira defendidos de tal modo, quando pode sentir, através dos seus órgãos representativos e politicamente eleitos, que há outros interesses difusos, e não só, a defender, igualmente legítimos? Que afinal é preciso ponderar e reflectir nas consequências do legalismo à outrance e sem atender à particularidade de legislação mal concebida e inadequada a proteger situações concretas, apesar de aprovada pelo poder legislativo e tornada lei executiva? 

Ou seja e resumindo: quem deve escolher entre dois interesses, sejam eles difusos ou não, igualmente legítimos, optando em modo político? O Ministério Público ou o poder que existe para tal, ou seja o poder político, no caso executivo?

Será este o problema central da acção cível proposta pelo Ministério Público, se descontarmos um autismo que pode muito bem justificar uma actuação contraditória ou até um modo de pensamento demasiado isolado dos próprios interesses em jogo, para sugerir o lado mais benevolente de tal situação. 

Os tribunais, como entidade independente, decidirão e será difícil a decisão porque terão necessariamente que sair da zona de conforto do legalismo estrito e entrar a direito pelo direito e pela justiça, já que o Ministério Público actuou em modo jacobino e a defender uma parte da parte dos interesses em jogo. 

E não é seguro que tenha sido a melhor parte...

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