segunda-feira, janeiro 14, 2019

Comunistas convertidos

Observador, José Luís Andrade:

Dolores Ibárruri Gómez, mais conhecida por la Pasionaria, foi uma encarniçada militante comunista espanhola, membro do Bureau Político do Partido Comunista de Espanha desde 1932, e sua presidente desde 1960 até à sua morte em 1989. Nascida em 1895, crescera numa família basca de simpatias carlistas, entranhadamente católica. Os parcos recursos do pai, mineiro, e a sua larga prole (11 filhos), levaram-na a ter de sair da escola aos 16 anos para ganhar a vida e ajudar a família. Pouco depois, conheceu o seu primeiro companheiro, Julián Ruiz, um militante socialista filo-bolchevista, com quem casaria em 1916. Ruiz foi determinante na sua conversão ao comunismo e, com ela, e com outros defensores da inscrição do PSOE na Internacional Comunista, fundaria o PCE, em Novembro de 1921.

Ao escrever o seu primeiro artigo em El Minero Vizcaíno, adoptou o pseudónimo de Pasionaria, ou porque o tivesse redigido durante a Semana Santa, como sugere a maioria dos seus biógrafos, ou porque o usasse nos seus anteriores textos de colaboração no boletim paroquial, como defendem alguns. Mercê do seu papel na revolução das Astúrias de 1934, iniciada pelo PSOE mas a que o PCE se anexara oportunisticamente, foi «eleita» para o Comité Executivo da Komintern, no 7º (e último) Congresso da Internacional Comunista, em Agosto de 1935. Foi nesta reunião magna dos comunistas estalinistas que foi aprovada a estratégia das Frentes Populares que, poucos meses depois, daria frutos em Espanha. A Pasionaria seria uma das principais intérpretes dessa orientação política e uma das figuras de proa da eficaz máquina de propaganda de Moscovo.

A Dolores são atribuídas afirmações que lhe não pertencem originalmente; apenas a força da máquina propagandística lhas colou. «¡No pasarán!» tornou-se tão emblemática que os próprios adversários, quando entraram em Madrid cantavam jocosamente «¡Ya hemos passa[d]o!»; na realidade a frase foi proferida num contexto de exaltação por um ex-subordinado do marechal Pétain (o general Robert Nivelle), em Verdun, durante a Grande Guerra. E «Para vivir de rodillas, es mejor morir de pié» parece não passar de uma paráfrase do que o seu adversário José Calvo Sotelo, a quem ameaçara de morte em pleno Parlamento, lhe respondera: «Es preferible morir con gloria a vivir con vilipendio». Consta, contudo, que a afirmação «Más vale matar a cien inocentes que dejar escapar a un solo culpable» é mesmo dela.

Ora, no passado dia 8 de Janeiro, pela pena de Jesús Ruiz Mantilla, o El País noticiou que la Pasionaria acabou os seus dias reconciliada com a sua fé de infância e juventude, tendo regressado à Igreja Católica. Vários foram os relatos que testemunham que, depois de se confessar, comungava com o padre operário José María de Llanos, assistindo à missa e participando nos cânticos. Segundo uma ex-carmelita, a «madre» Teresa, Dolores «era uma mulher educadíssima, muito crente e devota da Virgem». Numa Europa cada vez mais marcada pela teofobia, tais narrativas causam certamente estupefacção. Mas não são inéditas. O próprio responsável pelo maquiavelismo da «hegemonia cultural marxista», Antonio Gramsci, o cominterniano fundador do Partido Comunista Italiano, acabou por se deixar tocar pela graça divina. Segundo relatos fidedignos da época, tendencialmente silenciados pelos curadores da memória histórica de Gramsci, este pensador comunista morreu depois de receber os sacramentos, rodeado por imagens religiosas que solicitara. Na prisão hospitalar, no Natal anterior, pedira mesmo para beijar a imagem do Menino Jesus.

Este tipo de salto para os antípodas das convicções, pouco publicitados pela natureza discreta e intimista do processo de conversão, preferida não só pela Igreja Católica mas também pelos ex-correligionários dos convertidos, não é contudo, um fenómeno novo. No último quartel do século XIX causou escândalo a conversão ao catolicismo, nos derradeiros instantes da sua vida, de Émile Littré. Discípulo de Saint-Simon e de Comte, Littré recusara aquilo que chamava os desvios místicos deste seu último mestre, sendo um profundo crente no materialismo tout-court. Poliglota e lexicólogo, foi autor de um grande dicionário da língua francesa, complementar ao movimento enciclopedista, pelo que bem cedo lhe fora assegurado um lugar de destaque na hagiografia anticlerical. As suas traduções de obras de filosofia, fossem da Antiguidade Clássica, fossem de ensaios contemporâneos, iam sempre acompanhadas de Notas ou Prefácios de negação da ordem sobrenatural e de afirmação do materialismo. A sua posterior conversão ao catolicismo, negando as convicções que defendera, levou a que fosse praticamente eliminado das referências axiais da militância anticristã, a partir de 1881.

Mas também entre nós se verificaram (e verificam) casos de surpreendentes conversões. Um deles foi a conversão, no Outono de 1909, de António Duarte Gomes Leal. Perante as comemorações do sétimo centenário do nascimento de Santo António em 1895, dos centros socialistas de Lisboa partira a ideia de organizar um conjunto de festividades alternativas, nomeadamente um Congresso Anticatólico, em 18 de Junho desse mesmo ano. Azedo Gneco, na abertura dos trabalhos, salientou que «é ao partido socialista que compete dar batalha a essa seita nefasta; se o capital esmaga, o clero embrutece». Reunindo pouco mais de meia centena de congressistas, nele se destacaram Francisco Gomes da Silva, da «loja» Cavaleiros da Paz e Concórdia, Ernesto da Silva, que criticou a Rerum Novarum e, sobretudo, o poeta Gomes Leal, que traçou as linhas gerais do que se poderia chamar o guião da missionação laica dos livres-pensadores, um autêntico catecismo anticatólico.

Sobre Gomes Leal, Raul Brandão diz «quem não viu n’outro tempo este homem extraordinário não conheceu um verdadeiro, um autêntico poeta satânico. […] Escreveu as páginas das Claridades do Sul, da Traição e d’O Anti-Christo. […] Agora vai todas as manhãs ouvir missa à Pena ou ao Resgate». Muitos jornais parodiaram-no, sobretudo após a publicação, em Janeiro de 1910, de A Senhora da Melancolia. Em A Capital, na edição de 3 de Abril de 1910, o caricaturista António de Sousa, com grande desumanidade, desconsidera-o, afirmando que «duas vezes somos crianças» e pondo-o, qual mendigo, «a pedir… para o Santo António». N’A Lanterna, Paulo Emílio (pseudónimo do jornalista Avelino de Almeida que anos depois experimentaria grande comoção perante o Milagre do Sol, em Fátima) dedica-lhe extensa prosa achincalhante, espalhada por vários números do periódico. Depois da sua espantosa conversão ao catolicismo, aquele que havia sido o mais radical, o mais extremista dos anticlericais republicanos, viu-se ostracizado por todos os seus anteriores correligionários até acabar por morrer na miséria.

Também o caso de Manuel Ribeiro, o presidente da Federação Maximalista Portuguesa, órgão fundado em 1919 e percursor do Partido Comunista Português, do qual Ribeiro seria dirigente com o pelouro da Educação, causou viva estupefação. Escritor de mérito, Manuel Ribeiro foi um activo divulgador das teses pró-soviéticas, tendo traduzido várias obras comunistas para português. Esteve detido alguns meses no Limoeiro como resultado da sua liderança na greve ferroviária de Junho de 1919 e sê-lo-ia, de novo, em 15 de Outubro de 1920, na sequência da ilegalização do Bandeira Vermelha de que era director. Foi no cárcere que o activo dirigente sindicalista ferroviário, e romancista anticlerical, se deixou «tocar» pelo padre Cruz, vindo a converter-se mais tarde ao catolicismo. Posteriormente, foi director da revista católica Renascença e fundou, com o padre Joaquim Alves Correia, uma outra denominada Era Nova.

Embora haja convertidos nos dois sentidos, é muito mais significativo o número dos que renegam as suas convicções teofóbicas e escolhem morrer no seio da Igreja, onde, em muitos casos, iniciaram os primeiros passos. Sobretudo quando a hora derradeira se aproxima, a fome de eternidade conduz à comunhão que liberta. Tenho um amigo nessas circunstâncias – o Luís Fernandes; provavelmente, até nem nunca recusou a Graça. Mas percebe-se que a sua esperança de eternidade o aproxima mais de Deus. A verdade é que no cair do crepúsculo da vida quando a conspícua e poluída espuma dos dias se abate, todas as glórias, orgulhos, ignomínias, desilusões, tristezas, dores, frustrações e paixões se esbatem perante a ansiedade de ser acolhido no regaço eterno de Deus. Que Ele, o Senhor da Boa Morte, te acolha, Luís, na Sua tertúlia; e, quem sabe, até talvez possas encontrar lá a Pasionaria. Seguramente, terão muito que conversar…

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A obscenidade do jornalismo televisivo