domingo, junho 05, 2016

Um ídolo com pés de barro, Ali, no Público










O jornal Público de hoje deu a capa toda a um pugilista americano que faleceu agora e foi campeão do mundo da modalidade há mais de 50 anos, voltando a sê-lo alguns anos depois. Dizia-se "o maior" sendo essa uma retórica  de marca que nem um Ibrahimovic dos tempos modernos consegue imitar.

Porém, a capa não aparece por causa desse feito antigo, mas em virtude de outros feitos, fora do ringue, porque o Público é assim mesmo: o simbólico é capa permanente de notícias ideologicamente enviesadas. A explicação para a capa reside no artigo acima publicado sob a epígrafe Ali tinha a Marcha de Washington nos dois punhos". É essa a razão da capa e do artigo de cinco páginas. Quanto à grafia "Muhammad" é o habitual parolismo nacional de publicar os nomes foneticamente originais, presumindo que o inglês é a língua franca do mundo inteiro.

O pugilista em causa chamava-se por nascimento Cassius Clay e assim foi conhecido pelo menos até meados da década de sessenta do século passado, há 50 anos, quando ainda era treinado por um branco de origem italiana, Angelo Dundee.
Depois de vencer o título mudou o nome para Moamed Ali e assim ficou, ligando-se à seita dos Muçulmanos Negros, tornando-se islamita por opção.
Em 1967 ou por aí, quando já tinha sido campeão de boxe, categoria de pesados, e decidira objectar problemas de consciência para não ir para a tropa, no Vietnam, Cassius Clay-Moamed Ali foi destituído dos títulos e arriscou pena de prisão prolongada, conseguindo safar-se em 1971, por decisão judicial do Supremo americano, altura em que fez um regresso triunfal aos ringues, com o "combate do século" que aliás perdeu, com Joe Frazier.
É deste "combate do século" que ainda me lembro bem e do ruído mediático que então provocou, muito por causa das tiradas retóricas do boxeur.
No entanto, tudo isto aconteceu há mais de 45 anos e não me ocorre nada de especial para perceber o actual ruído mediático à volta deste ídolo com pés de barro que sendo americano, jogava boxe e nada mais.
A não ser a tal pertença à irmandade islâmica, a recusa em cumprir serviço militar e a defesa dos direitos civis dos negros norte-americanos, o que fez nessa altura, sendo semi-analfabeto, mas sabendo bem de que lado soprava o vento da História.

Em Abril de 1967, a jornalista italiana Oriana Fallaci, uma entrevistadora de grande gabarito, foi a Miami ver e ouvir  Cassius-Moamed e a revista Século Ilustrado de 8.4.1967 publicou a entrevista que mostra bem como era e como pensava O Maior, nessa altura, a propósito e certos assuntos, como o racismo, as mulheres, etc etc.

Lendo o que o Público escreve agora sobre a razão da mudança de nome de Cassius para Moamed, fica uma dúvida: o jornal diz que o nome original de Clay provinha de um político americano "defensor da emancipação dos negros  no séc. XIX" .
Na entrevista, Clay-Moamed explica que afinal mudara de nome porque o que tinha era de escravo, Cassius Marcellus Clay era um branco que dava o seu nome aos seus escravos. E por isso mudou, para ter o  nome de um deus...
Quanto às mulheres ( "as mulheres perderam a moral")  ou a sua particular concepção de futuro de vida, a sua instrução ( próxima do analfabetismo voluntário) , o seu patriotismo ( "talvez chegue a presidente de qualquer Estado africano porque eu nada tenho a ver com a América nem com os americanos, eu sou muçulmano", apesar de algumas linhas antes dizer que dali a uns anos seria rico e teria avião, casas em vários sítios, limusines etc etc, tudo na América) é ler a entrevista e depois ajuizar como é que os jornalistas de agora conseguem escrever o que escrevem sem se questionarem acerca da realidade das coisas e das pessoas reais que transformam em mitos por causa de símbolos e ideologia avulsa. Virá tudo da Wikipedia? Não, não virá, mas é assim que este sistema triste funciona. É tudo espectáculo ideológico e de esquerda, sempre. Gramsci vence.











Em Outubro de 1975 a revista americana Rolling Stone que já lhe tinha dado um destaque em Março de 1971 por ocasião do tal "combate do século" deu-lhe outra  primeira página por causa da sua biografia ( escrita por um "nègre" uma vez que Cassius-Moamed quase nem sabia escrever)...




Em 26 de Dexembro de 1969, outra revista americana de grande difusão, a Life, publicou um número especial acerca do fim dos sessenta. No miolo dos artigos nem uma única menção a Cassius-Moamed, então em quarentena por causa da recusa de cumprimento do serviço militar. Na capa aparecia, porém, a sua imagem...


Questuber! Mais um escândalo!