quinta-feira, agosto 30, 2018

Montes de BD no vendaval dos setenta

Aqui deixei a história da descoberta do aparecimento da revista francesa Métal Hurlant, no primeiro trimestre de 1975.

O veículo anunciador foi a revista Rock&Folk que em Fevereiro de 1975 assim anunciava a nova revista nascente, em França.


Apesar da preparação psicológica que ao longo do ano anterior tivera com a leitura de números antigos da Pilote,  compilados em "recueils" que fora comprando ao longo do ano, esperava encontrar a revista um dia desses num escaparate qualquer, da Bertrand, habitual distribuidora ou vendedora de tais revistas. Esperança vã porque a revista nunca esteve à venda em Portugal nos seus mais de vinte anos de existência.
Ainda não sabia, mas a produção e distribuição era independente das empresas habituais e por isso, nicles. Ou se assinava ou se ia lá fora comprar. Por cá nem menção a tal revista, nesses anos em que a bd de produção nacional era nula ou quase e se resumiu à apresentação de duas revistas de conteúdo demasiado extremo e semelhante ao que em França se produzia na chamada bd para adultos.
Estas duas saíram no início de 1975.

A segunda tem a particularidade de conter ilustrações de Carlos Zíngaro, o ilustrador  do primeiro disco da Banda do Casaco, saído em finais de 1974, Dos Benefícios de um vendido no reino dos bonifácios.



Ao longo do ano de 1975, aliás, os acontecimentos em Portugal tornaram-se literalmente revolucionários e particularmente no Verão.
A música popular era nessa altura de produção mais interessante do que aconteceria na década seguinte. Todos os meses apareciam obras musicais dignas de relevo e que ainda hoje são importantes. Tal compensava a ausência de informação sobre a bd que então aparecia em França e que era inovadora relativamente ao passado do Tintin e da Pilote, traduzida em publicações como a Fuide Glaciale ou L´Écho des Savannes ou mesmo a Mormoil , para não falar da Charlie ou Actuel e Hara-Kiri que já vinham de trás.

Evidentemente que havia em Portugal quem conhecia e lia tais publicações, mas o assunto era de interesse reduzido ou nulo para os media em geral.

Devido à Revolução do PREC , o Rádio Renascença esteve em greve desde o mês de Fevereiro até Maio de 1975 e perdi a oportunidade de ouvir o Página Um que passava as novidades da música anglo-saxónica, além do mais.
Em  Abril e Maio de 1975 comprei na Bertrand mais dois volumes dos tais recueils da Pilote, o 70 e depois o 68. E porque comprei primeiro o 70? Por causa disto, destas imagens de Tardi, essencialmente e que me tinham espantado pelas cores e desenho:


Estas duas primeiras e duas últimas páginas da historieta de dez, de JacquesTardi que conhecia já do ano anterior,  valia bem um novo Moebius e tornou-se motivo de interesse suplementar.  Nesse recueil 70 ainda aparecia a historieta L´homme est-il bon ?,  daquele Moebius e cuja temática prenunciava o que viria a seguir, do artista, nos anos a seguir e na Métal Hurlant.

Por contra, no recueil 68 aparecia esta ilustração de Solé:


E mais esta história completa de Jacques Tardi:


Para além disso, em tal recueil ainda apareciam estas páginas, da Pilote de 31.1.1974,  cuja composição gráfica ainda hoje admiro. E o desenho sobre SF é de Moebius, embora sem assinatura. Quem escreve o texto é Jean-Pierre Dionnet que se tornaria um dos fundadores da Métal Hurlant.


Foi através da Rock&Folk que fui descobrindo as capas ( a preto e branco)  da Métal Hurlant dos primeiros números e que nesse ano ainda era de publicação trimestral. Em Maio de 1975:


A capa a cores era uma maravilha que só nos anos oitenta vi como era, relativamente aos seis primeiros números.

Rock&Folk Julho de 1975:



Rock&Folk Maio 1976:


As capas a cores eram uma maravilha que só nos anos oitenta vi como eram, relativamente aos seis primeiros números.


Quando saiu o número seis, já em 1976, e ainda com a publicação em ritmo bimestral, fiquei com interesse em procurar porque tinha uma imagem de  Moebius que  me atraía a atenção, mesmo a preto e branco. Se a tivesse visto a cores, o que sucedeu anos depois, ainda teria mais.


No Verão de 1976 tive oportunidade em arranjar um número da Métal Hurlant através de um amigo de infância que fora passar férias com a família, de emigrantes. Pedi-lhe que me trouxesse esse número que já era mítico.

A desilusão à chegada, no início do mês de Agosto de 1976, traduziu-se neste número:


Afinal era já o nº 7 e não o nº 6. Este já não havia à venda nos quiosques e o Zé Gomes bem andou à procura, conforme me disse, para meu desconsolo.

Para além disso pedi-lhe para me trazer um pequeno livro sobre Gir e Moebius que tinha visto neste pequeno artigo na Rock&Folk de Abril de 1976.


A capa era desenhada por...Tardi. Outra maravilha gráfica.


E de Tardi, nesse Agosto de 1976, também arranjei outra obra-prima, Le Démon des Glaces, album original de finais de 1974.


E o que trazia esse primeiro número da  Métal Hurlant que tive nas mãos, o nº 7?  Bem, com os anos tornou-se um dos grandes números da revista.

Em primeiro lugar a sensação táctil do papel  e do cheiro característico que mais nenhuma outra revista tinha. A impressão vinha da Itália,  desde o nº2 e que se aguentou com pequenas variações durante os primeiros 40 números, até ao início de 1979. Depois passou para Espanha, particularmente a Litoprint e já não era a mesma coisa, tendo durado até ao fim da publicação, em 1987, altura em que vendia cerca de 20 000 exemplares.
 O papel inicial era uma espécie de couché, em acabamento mate, de grande qualidade e semelhante ao que era utilizado já nessa altura nas revistas de bd italianas como a Linus. Os espanhóis, a partir de 1979,  imprimiam num papel mais brilhante e fino, de menor qualidade.
O primeiro número que tem esta capa fabulosa ( inspirado numa ilustração de Parrish) , fora impresso em França e o papel não tem a mesma qualidade que o dos seguintes números.


O grafismo e a "maquette", ainda não o sabia mas deviam o estilo básico a um certo Etienne Robial que tinha trabalhado na Filippachi.

A equipa inicial era esta, conforme foto publicada no livro Métal Hurlant, la machine a rêver, de 2005:

Da esquerda para a direita, Farkas, Jean-Pierre Dionnet, Jean Giraud e Philippe Druillet.



Ao chegar à página 19 um primeiro baque gráfico que me ficou como referência da ficção científica. Nunca tinha visto nada assim, desenhado:


E a página seguinte faz lembrar o que certos cineastas fizeram depois  ( por exemplo em Blade Runner) :


Havia mais seis páginas desta historieta de Moebius e  no centro da revista, estas duas páginas do mesmo Moebius e numa história cuja sequência traria desenhos impressionantes, no futuro.


Pelo meio mostravam-se os primeiros desenhos de um artista que viria também a dar que falar: Serge Clerc.


Depois deste número passaram 4 anos até pôr a vista em cima de outro, da revista.  Só em Junho de 1980, com o número 54 voltei a ver a revista. E novas surpresas surgiram que serão relatadas a seguir.

Para já, na mesma altura, em Setembro de 1980 mandei vir de França este álbum que entretanto se publicara por lá:



Ao folhear e entre as inúmeras imagens de perder o fôlego artístico, deparei com esta:


Puro Rembrandt:


Assim começou a aventura da "máquina de sonhar"...

Por cá que me recorde ninguém sonhou nos jornais estas coisas. Passaram completamente despercebidas na época e mesmo depois.
Publicaram-se álbuns e até historietas em suplementos de jornal ( no Expresso, por exemplo) e nos alfarrabistas ainda se podem encontrar algumas destas coisas ( nas Escadinhas do Duque, por exemplo) mas foi tudo serôdio, fora de tempo, desgarrado e sem contexto.
A aventura da "máquina de sonhar" não parou em Portugal.  Em Espanha, por exemplo, foi tudo muito diferente e nos anos oitenta houve uma autêntica febre pelos comics de proveniência francesa e tinham várias revistas que aliás também soçobraram com o tempo e o desinteresse dos leitores.
Tal como a Métal Hurlant que se aguentou até 1987 e depois acabou.
O tempo glorioso da revista começou algures no final dos anos setenta e foi em 1982 que a assinei. Até ao fim. É história para contar porque houve desenhadores que apareceram e marcaram uma época.

Sem comentários:

O Público activista e relapso