quinta-feira, fevereiro 08, 2024

Advogados: salteadores da verdade formal!

 Ainda a propósito da entrevista do advogado Tiago Rodrigues Bastos ao Observador, importa dizer o seguinte:

Os advogados, defensores de arguidos, procuram isso mesmo: defender os seus clientes buscando na lei os expedientes adequados a tal desiderato. 

No portal da Ordem dos Advogados há um pequeno artigo, apresentado num congresso do ditos, em 2011,  sobre ética e deontologia dos advogados, cujas conclusões integram estes princípios:

1. – No moderno Estado de Direito, a função jurisdicional surge como complemento indispensável da função legislativa não sendo resultado de um dado processo inteiramente estranho ao interesse público, pelo que o papel do advogado é essencial à aplicação da Lei. 
2. – Exige-se que o advogado seja um homem recto e cumpridor da Lei, segundo os princípios éticos e morais, impostos pelo quadro de valores profissionais/deontológicos em que se insere.

Uma das traves-mestras do direito penal que é o que aqui interessa, é um princípio básico enunciado nas faculdades de Direito, como o da "verdade material", logo é esse inequivocamente um dos princípios a que os advogados estão adstritos no seu múnus, na tarefa de defesa do seu constituinte e por isso, a denegação consciente, manhosa, dolosa e subvertida de tal verdade, coloca ao advogado o dilema: como defender alguém, segundo princípios éticos, usando a mentira como arma? 

Há tratados sobre o tema e proponho aqui num estudo académico de 2020, uma definição quase negativa que atenta mais aos direitos dos suspeitos e arguidos que outra coisa.

Talvez não seja equivocado dizer que todo processo penal, de qualquer que seja o seu ordenamento jurídico, existe porque alguém está afirmando que, no passado, foi praticado um facto por alguém a que a lei comina uma sanção. Assim, ainda que de diferentes formas, todo processo penal deve investigar a ocorrência ou não de um evento pretérito, descobrir se se está diante de seu autor (seja uma pessoa física, seja uma pessoa jurídica caso prevista esta forma de responsabilização pelo direito vigente), para saber se deve ser aplicada ou não a sanção que a lei vinculou como consequência daquele facto

Obviamente não compete aos advogados indagar e investigar a verdade material, mesmo nesse sentido apontado. Tal compete às magistraturas e é nisso que se distinguem dos advogados e é nesse campo que os choques éticos se digladiam, quando o cinismo não vence a discussão em audiências judiciais.
Porém, há um campo vasto de justificação de substituição da verdade material pela simples verdade formal que pode muito bem comprometer aquela, de modo inequívoco e ainda assim operante e efectiva. 

Basta ler outro parágrafo do estudo em causa para entender a complexidade do que se deve entender por "verdade material", a qual é apenas uma verdade entre muitas outras, até a ontológica!

À medida em que se aprofunda o estudo sobre a verdade na literatura processual penal, confronta-se com um grande conjunto de adjetivos. 
Durante a investigação, defrontamo-nos com inúmeras designações que perpassaram o pensamento dos autores que estudam o tema – verdade real, ontológica, absoluta, histórica, substancial, certa, objetiva, material, formal, relativa, aproximativa, processual (fática e jurídica), judicial, prática, processualmente válida, adequação, afinidade , exilada4, fundante, contingente (ou contingencial), correspondente, intrassistemática processualmente válida , certeza jurídica, verdade da prova, verdade da evidência.

É nesta semântica que viceja a aldrabice e os advogados ganham a sua vida: relativizando a verdade que todos conhecem, porque derivada da sensatez e da experiência comum, da vida, substituindo-a pelos ersatz que lhes servem para justificar o exercício do mandato, na defesa dos clientes que lhes pagam. 

A entrevista a advogados revela este artifício permanente de cinismo e que acantona os mesmos a um limbo de mercenarismo conhecido por toda a gente desde tempos imemoriais e portanto os desacreditam na nobre tarefa acima enunciada com pompa e circunstância como sendo de exigência que o advogado seja um homem recto e cumpridor da Lei, segundo os princípios éticos e morais, impostos pelo quadro de valores profissionais/deontológicos em que se insere.

Logo, o que os advogados dizem tem o seu valor muito relativo porque estou convencido que nem eles mesmos acreditam no que dizem quando falam sobre os problemas dos clientes. 

Duas provas disto mesmo: 

A primeira está no que o advogado Tiago Rodrigues Bastos disse a propósito do seu cliente, Escária, chefe de gabinete do primeiro-ministro A. Costa, ao ser confrontado com o facto evidente, indesmentível e conhecido de todos, ao ter sido apanhado com as calças na mão e com 75 800 euros toscamente escondidos no respectivo gabinete em envelopes e lugares improváveis. 

É sabido e não foi desmentido que o dito suspeito, logo que apanhado com as calças na mão e após lhe ser apontado o poio descrito, foi lesto em dizer que "isso não é meu!". Ou seja, o dinheiro não era dele, não lhe pertencia e portanto estava ali para algo que ninguém poderia explicar legalmente. 
Como tal parece uma evidência de verdade material, altamente encalacrante não só para o visado mas para quem o empregou no referido gabinete, ou seja o próprio primeiro-ministro, a versão dessa verdade material modificou-se para uma verdade, digamos, formal. Logo após algum tempo, ainda no decurso das diligências de busca, o advogado Tiago Rodrigues Bastos declarou urbi et orbi que afinal o dinheiro era mesmo do cliente, do Escária que, coitado, escondeu aquilo naquele lugar por razões imponderáveis e insondáveis. Não disse quais eram porque só lhe interessou, na defesa do cliente, apontar a verdade formal exibida perante as câmaras: o dinheiro afinal era mesmo do Escária que o ganhou no exercício da actividade de consultor, sem tempo determinado, mas em Angola, portanto há anos atrás! Em duas tranches, segundo agora se sabe, em euros em vez de dólares e contra toda a evidência de costumes que apontam em sentido de denegar veracidade a tal verdade formal. 
Por isso mesmo, em consequência, o desgraçado Escária, a quem um correligionário até sugeriu que merecia um par de estalos, por tal conduta, lá se apresentou de baraço ao pescoço e declarou ao Fisco a importância sonegada para efeitos de cobrança de IRS por tal verdade formal. Vai pagar o preço da verdade formal em euros e com juros moratórios e compensatórios, livrando-se de crimes como fraude fiscal, branqueamento de capitais ou pior que isso. 

O que disse o advogado Tiago Rodrigues Bastos sobre isto, na entrevista? Isto: 


Portanto, o advogado carrega a verdade do seu cliente, mesmo que tal verdade atente contra princípios básicos de lógica, coerência e no final de contas contra a veracidade real e material.
Antes apresssou-se a desmentir o que o cliente tinha dito em primeira reacção espontânea e humanamente compreensível e que naturalmente era que o dinheiro não era dele. Como efectivamente não será e nunca poderia ser naquele tempo e lugar. A experiência comum não pode aceitar que alguém como o Escária guarde durante anos, dinheiro no gabinete ao lado do primeiro-ministro, sem explicação cabal para tal. Só para advogados que acreditam em verdades formais o será...e por isso lhes repugna o alargamento da prova indirecta para factos como este.

É isto que um advogado faz: coser-se com os argumentos dos clientes, mesmo que atentem contra a sua própria inteligência e princípios éticos. Nada mais e foi isto que o advogado que esportulou altíssimas considerações de ordem jurídico-moral contra os magistrados fez: mentir, a meu ver. Em nome do cliente. 

Outro exemplo, ainda mais flagrante e ridículo pelas justificações e princípios violados, atentando contra a verdade material mais comezinha, a das evidências gritantes: 

O advogado Paulo Sá e Cunha, rato velho dos tribunais e andanças judiciárias, patrono repetido de clientes entalados em lugares excelentíssimos foi contratado pelo entalado da Madeira, o autarca caído em desgraça Pedro Calado. 
Em vez de se remeter ao silêncio estatutário e não falar dos actos processuais como a lei o obriga, foi lesto em comentar para televisões verem que um pretendo diamante encontrado na posse do dito era afinal um artefacto com valor "desprezível".
Perante os factos que denotam o contrário do que disse, como justificou tal advogado o injustificável? Assim:



Há muitos milhares de euros em jogo. E não são os do pobre Calado: são os dele...

[Aditamento: a Casa da Moeda veio agora, hoje à tarde, esclarecer que afinal não avaliou diamante nenhum...o que deixa em aberto a questão de se saber de onde veio a informação que desmentia o advogado, o que não o exime de duas coisas: o de ter falado no assunto sem ter legitimidade legal para o fazer e ainda a dúvida que para ele é certeza acerca do "desprezível". Veremos quem o será...]

O que estes e os demais advogados fazem no processo penal não é nada mais que isto, versado no estudo académico citado:

A verdade formal é aquela que não necessariamente coincidirá, revelará ou corresponderá ao que efetivamente ocorreu no mundo dos fatos. 
Chega-se à verdade formal não pela investigação oficial dos acontecimentos pretéritos, muito menos pela investigação a qualquer preço; chega-se a ela através do contributo trazido pelas partes envolvidas no conflito originário, e só por elas, ao processo.
 Uma destas partes será o imputado, a defesa; a outra, poderá ser a própria pessoa ofendida ou, mais comumente, um órgão público e oficial que represente os interesses da persecução penal, do particular lesado ou da coletividade lesada (pensando-se num bem jurídico coletivo): de um lado do “duelo”, a versão acusatória; do outro, a versão defensiva, contestando aquela. 
A verdade formal obtida ao final do processo não revelará necessariamente o que de fato aconteceu; revelará do que o julgador  se convenceu ou concluiu a respeito do que de fato aconteceu, nos termos e de acordo, exclusivamente, com o material informativo-probatório e as declarações das partes28. Por isto, não raro, refere-se a ela como verdade “meramente” formal.

Por causa destas e doutras é que há uns séculos atrás Gil Vicente escreveu o Auto da Barca do Inferno e Shakespeare, noutras paragens disse a propósito dos advogados e numa peça de teatro, aqui melhor explicada no seu contexto:

“The first thing we do is, let’s kill all the lawyers.” It’s said by a character called Dick the Butcher in Act IV, Scene II of William Shakespeare’s Henry VI, Part II, which was (we think) written between 1596 and 1599.

A frase, no seu contexto semântico, significa o contrário do exposto e uma defesa acérrima do papel dos defensores da lei, na veste de advogados. Porém, tem sido interpretada literalmente e sem atender a quem a profere ( um do vilões da peça), emprestando-lhe o seguinte sentido:

One reading of this strange quote suggests, therefore, that society could not exist in a state of fairness and peace without the protectiveness of both the law and its staunch guardians. Dick is suggesting that, in order for their coup to prevail, they must eradicate society of the very defenders of justice who could both stop the revolt he intends to help spur and then remove the power he hopes to grab for Cade.

Portanto, os advogados são essenciais ao exercício do poder judicial no seu todo, na medida em que defendem clientes de potenciais abusos de poder judicial. Mas...em nome de quê? Da "verdade material" ou apenas da sua verdade formal que lhes convém adoptar para tal defesa?

É essa a questão e relativamente aos dois advogados citados a minha resposta já foi dada. Haverá mais que não sejam assim?!

Nota: eventuais comentários a este e outros postais, estão sob moderação completa e não serão publicados. 

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